O rádio dos anos cinqüenta no Nordeste do Brasil ...



O rádio dos anos cinqüenta no Nordeste do Brasil: produtores e ouvintes em perspectiva[1]

Profa. Dra. Roberta Manuela Barros de Andrade - Universidade de Fortaleza-Ce[2]

Profa. Dra. Erotilde Honório Silva- Universidade de Fortaleza- Ce[3]

O presente estudo é parte de uma pesquisa que reflete sobre os significados potenciais do rádio a partir de duas perspectivas distintas: a dos produtores do rádio nos anos cinqüenta e a de seus ouvintes no mesmo período, na cidade de Fortaleza, localizada na região Nordeste do Brasil. A pesquisa funda um espaço dialógico entre os sentidos potenciais do rádio naquele período e as transformações que a sua trajetória trouxe às percepções desses sujeitos que atualmente estão inseridos em um outro contexto sócio-político-econômico diferenciado daquele presente nos anos cinqüenta. A pergunta-chave que move este estudo é: como sujeitos sociais pertencentes a um mesmo contexto histórico, criam suas chaves de representação a partir da incorporação de um lugar social específico. Para materializar esta pesquisa, utilizamos a história de vida das comunidades interpretativas do rádio naquele período. Selecionamos para tal, vinte produtores e receptores daquela década, hoje entre 60 e 80 anos de idade. Este estudo está, pois, centrado nos mecanismos de construção da memória individual e coletiva mediados pela mídia.

Palavras-chave: rádio, memória, comunidades interpretativas, gerações.

O rádio dos anos cinqüenta no Nordeste do Brasil: produtores e ouvintes em perspectiva

Erotilde Honório Silva

Roberta Manuela Barros de Andrade

Os caminhos percorridos

No Brasil dos anos 50, o rock e a Coca-Cola já haviam se incorporado à de vida de milhares de jovens que seguindo à moda, exibiam o topete, o rabo de cavalo, o sapato bicolor e a meia soquete. A revolução sexual comandada pela pílula anticoncepcional acirrava as discussões sobre o papel da mulher no espaço público e trazia sub-repticiamente uma nova realidade no interior das famílias. As mulheres se incorporavam lentamente ao mundo do trabalho em atividades nunca dantes imaginadas. A guerra do Vietnã sacudia o mundo numa avalanche de informações do além mar propiciadas pelo advento dos artefatos tecnológicos. Somados a esses eventos, havia o aumento da produção e consumo de bens e serviços que marcaram a ‘Idade da Inocência’ ou ‘Anos Dourados’, como ficou conhecida a década no Brasil.

Neste período, o rádio revolucionava a vida brasileira e vivia também a sua ‘época de ouro’. Os jingles, os reclames, os noticiosos, os programas de auditório traziam uma modernidade alicerçada na expansão do capital. Os seriados como "Jerônimo, Herói do Sertão" reatualizavam os protagonistas rurais para o dia-a-dia do receptor urbano e as radionovelas, como o ‘Direito de Nascer", resignificavam experiências emocionais no melhor estilo folhetinesco que passavam a se mesclar ao imaginário dos ouvintes, já fidelizados a este novo veículo de difusão da indústria cultural.

A importância do rádio na configuração desta nova sociedade é, enfim, indiscutível. No entanto, poucos estudos têm abordado as interações do rádio com a sociedade brasileira. Haussen (2001), em uma pesquisa recente, faz um levantamento das publicações científicas que trazem o rádio como temática central e reafirma ainda hoje o seu papel coadjuvante como objeto de estudo na academia frente aos outros meios de comunicação de massa como o jornal, a televisão, o cinema e recentemente, a própria internet. Mesmo quando o rádio é tema central dos estudos na área, a maior parte das abordagens se situa em pesquisas que dão conta de seu impacto, abrangência, produção e recepção apenas no eixo sul e sudeste do País, esquecendo que sua importância foi, e continua sendo, se não maior, mas de grande relevância nos universos regionais e locais mais distanciados dos grandes centros desenvolvidos do Brasil. É numa tentativa de dar conta deste vazio que entabulamos esta pesquisa. Um estudo de tal ordem se insere no que a literatura cunhou de história do cotidiano.

Como afirma Ludtke (1994), entende-se, aqui, que o termo história do cotidiano não se define unicamente por tentativas de considerar uma nova forma de pesquisa histórica e de escrita da história. Este trabalho se inscreve em uma empreitada mais global: trata-se de reajustar o olhar sobre as aquisições de uma época em um sentido que leve em consideração os significados potenciais do rádio em uma década específica, a de cinqüenta, a partir da percepção de seus produtores e receptores em Fortaleza, capital do Ceará, estado do Nordeste do Brasil. A importância de uma pesquisa de tal ordem está não só na compreensão do rádio como uma mediação essencial para o entendimento do imaginário que constituiu uma dada época, mas também, para o desvendamento de sua interação com as rotinas diárias de seus produtores e consumidores.

Em geral, os estudos de comunicação em rádio contemplam primordialmente o próprio meio e suas especificidades, dando ênfase a seus conteúdos, às suas vinculações ideológicas, ao papel de seus produtores neste processo e deixam a descoberto as configurações de sentido produzidas quando os receptores entram nestas reflexões. Mesmo mais recentemente, quando os receptores são postos como elemento real em algumas pesquisas, eles quase sempre aparecem como uma equação isolada que não leva em conta sua interação com as formas de agir e pensar dos produtores. Assim, o pressuposto deste trabalho é a noção de que ainda que ocupem posições e locais diferenciados no jogo social, ambos - produtores e receptores, fazem parte de um mesmo processo de intertextualidade, pois, atuam como elementos indissociáveis no interior da cultura midiática.

A pergunta-chave que move este estudo é, pois, como sujeitos sociais pertencentes a um mesmo contexto histórico, criam suas chaves de interpretação a partir da incorporação de um lugar social específico. Essas negociações de sentido, ressaltamos, respondem a um sistema de práticas e crenças que regulam distintos âmbitos da vida cotidiana dessa comunidade. Para materializar esta pesquisa, nos baseamos em depoimentos das comunidades interpretativas do rádio naquele período. Selecionamos para tal, vinte produtores e receptores daquela década, hoje entre 60 e 80 anos de idade. Demos prioridade às falas dos receptores porque entendemos que estas têm, apesar dos avanços teórico- metodológicos da área[4], sido negligenciadas pela tradição nesta literatura. No entanto, devido ao espaço exíguo deste texto, sintetizamos suas falas em alguns depoimentos que melhor espelharam as idéias que desejávamos pôr em discussão. Este estudo[5] está, pois, ainda centrado nos mecanismos de construção de uma memória[6] individual e coletiva mediada pelos meios de comunicação de massa.

A partir das entrevistas com essa comunidade fomos encontrando pistas para compreender que confrontando ouvintes e produtores estávamos num campo de múltiplas interpretações que se opunha necessariamente à idéia de um difusionismo linear e causal. Percebemos nessa interação complexa de significações entre produtores e receptores que, se em determinados momentos, suas visões divergiram, na maior parte do tempo, se assemelhavam ou se completavam nos dando dados importantes para a percepção do que era a sociedade fortalezense daquele período.

Enfocamos para tal, alguns eixos temáticos como os usos diferenciados que homens e mulheres davam ao consumo do rádio; a interação doméstica que as radionovelas propiciavam às ouvintes daquele período; as distinções estabelecidas entre gerações na escuta radiofônica; as sociabilidades que os programas de auditório e os bailes dançantes proporcionavam aos ouvintes; as intertextualidades do rádio com as revistas de fofocas; as relações entre os noticiosos e a postura política dos produtores e finalizando, o impacto das propagandas como carro-chefe da inserção do capital em uma cultura ainda provinciana.

1. O Rádio é uma questão de gênero?

A percepção, difundida pelos produtores entrevistados para esta pesquisa, de que o hábito de escutar rádio nos anos cinqüenta era uma atividade em família encontra variações entre os ouvintes de Fortaleza. Se o hábito de escutar rádio nos anos cinqüenta acontecia em família, as audiências reunidas ao redor do aparelho eram primordialmente as femininas. A reunião para a escuta estava condicionada prioritariamente a uma questão de gênero. As mulheres costumavam se reunir para escutar seu programa predileto, mas o acompanhamento das audiências masculinas não seguia necessariamente este circuito familiar.

A maioria das pessoas passavam o dia escutando rádio, mas não se reuniam para isso. Abria ali, já ouvia, os que passavam ouvia, mas não se reunia para assistir, a não ser minha mãe e minha irmã que gostavam quando passou uma novela aqui chamada “Renúncia” e religiosamente, no horário da novela, me parece que era sete/oito horas da noite, estavam ali no pé do rádio para ouvir a “Renúncia”. (Nirez, 71, funcionário público).

Esta mesma questão de gênero se estabelece quando se trata da seleção para a escuta dos programas radiofônicos. As mulheres e crianças escutavam, em geral, as novelas e os programas de auditório. Os homens ouviam os noticiários, mas, compartilhavam também o gosto pelos programas de auditório. As expectativas, pois, dos ouvintes, seus níveis de atenção, seus quadros cognitivos e afetivos durante as emissões variavam, pois, em função da adaptação dos produtores aos gostos de gênero de seus ouvintes. A preferência dos homens pelos programas jornalísticos aparece com clareza no depoimento de Neide.

A transmissão chegava aos rádios e era uma chiadeira, falava um pedaço e cortava outro. Mesmo assim, a gente ia a todas as casas com aqueles rádios velhos e horrorosos ligados na Hora do Brasil, porque os homens, os senhores, gostavam de saber as notícias da política. (Neide Garcia, 61, professora aposentada).

O rádio já nascia, pois, segmentado, com uma programação destinada a reafirmar a divisão de papéis sociais entre homens e mulheres. A própria elaboração da memória da programação daquele período pelos ouvintes desta pesquisa se apresenta com uma seletividade que se apóia nesta divisão de gênero. Não é a toa que os homens contam em filigramas os elementos constitutivos das performances dos apresentadores daquele período bem como a forma de funcionamento dos noticiosos. Enquanto isso, as mulheres quase nada lembram dos noticiários daquele período, no entanto, contam os detalhes o processo de produção de uma radionovela. Aliás, de todos os programas veiculados naquele período, são as radionovelas os mais lembrados por todas as depoentes.

Eu me lembro, quando já era adulto, pouco depois da adolescência, 18/19/20 anos, existia, de manhã, um noticiário, “PRENOL”, que era apresentado por Gerson Braz e tinha um companheiro, que eu não me lembro quem era. Era Gerson Braz. Ele e outro apresentavam um noticiário. Um lia uma notícia e o outro lia outra. A rádio Iracema, quando entrou, também tinha esse mesmo estilo. Tinha o “Jornal Iracema” e, pela manhã, meio dia, de hora em hora, tinha um noticiário relâmpago de cinco minutos, notícias de hora em hora. Depois, tinha o noticiário da “Casa das Máquinas”, que era do José Nascimento, também era um noticiário, assim, de pouco tempo, de vez em quando entrava. Aí, ao meio dia, tinha um longo, que eu não me lembro. Às 6 horas da tarde tinha outro longo, mas à noite não tinha. (Nirez, 71,funcionário público)

As novelas não eram feitas na hora. Eram gravadas. Mostrava duas quengas de coco em cima da mesa, e dizendo “o fulano vem a cavalo” e eu ouvindo como era. O barulho da chuva, tudo isso já tinha gravado. Na hora que dizia que vinha o cavalo, se colocava a parte e tinha o diálogo. (Neide, 61, professora aposentada)

As radionovelas se apresentaram, de fato, neste período, como o carro-chefe da programação radiofônica. No Brasil, patrocinadas por fábricas de detergentes, produtos de beleza e higiene corporal, a radionovela aparece somente em 1941, pois só na década de 30, o rádio inicia seu percurso realmente comercial. Aqui, o caminho trilhado foi semelhante a outros países da América Latina. Estas surgem como um produto importado, o que significa no Brasil o reforço do padrão folhetinesco e melodramático cujo público alvo preferencial é a dona de casa.

Assim, como no resto da América Latina, o sucesso das radionovelas é imediato, o que fez aumentar desmesuradamente a sua produção. Entre 1943 e 1945, foram transmitidas 116 novelas pela Rádio Nacional. Na década seguinte, a Rádio Nacional chegou a apresentar 20 novelas, simultaneamente, em capítulos diários de meia hora. Como o rádio se popularizou durante toda a década de 40, o custo do aparelho se tornou bem mais acessível, facilitando a consagração da radionovela como um gênero efetivamente popular, o que não havia acontecido com seu antecessor, o folhetim.

Deste modo, na medida em que as radionovelas se consolidavam no gosto popular, foi pouco a pouco, se fazendo necessária a criação de equipes especializadas em sua produção. Se no início elas eram importadas, com o passar do tempo, começam a surgir os textos exclusivamente escritos por autores nacionais e, posteriormente, locais. Aqui, a primeira novela local estreou no início da década de cinqüenta. Chamou-se Aos pés do Tirano, de autoria de Eduardo Campos, à época, diretor dos Diários Associados. A novela alcançou um índice de audiência não esperado pelos produtores e repercussão surpreendente nos meios impressos locais. As radioatrizes e os radioatores ostentavam status de verdadeiras estrelas, motivo de inúmeras reportagens nos jornais locais.

2. Radionovelas e Imaginário Social

As radionovelas incitavam a imaginação, propondo um lugar específico para a fantasia. Os efeitos especiais, a interpretação do artista, o seu timbre de voz, tudo isso iria construir um imaginário peculiar que se adaptava perfeitamente à ordem melodramática. As novelas davam suporte à imaginação e criavam mundos próprios, alicerçados nos cânones do imaginário já devidamente incorporado da regra culta, nos romances e contos difundidos pela própria indústria cultural, por intermédio das revistas femininas.

E tinha uma coisa das pessoas que trabalhavam em novela que era a grande diferença da televisão. Você imaginava a beleza das pessoas pela voz do artista. Uma pessoa hoje em dia com a minha voz já afônica e grossa só podia fazer papel de bruxa (risos). Exigia-se da personagem uma voz adequada. Por exemplo, a mocinha tinha que ter uma voz suave, tranqüila para que você pudesse imaginar e criar imitando os contos que líamos nas revistas (Neide Garcia, 61, professora aposentada).

Esta ordem narrativa no melodrama nasce historicamente na Revolução Francesa[7]. O melodrama aparece em um mundo onde os imperativos tradicionais de verdade e ética foram violentamente postos em xeque. Um novo mundo cria a necessidade de uma nova cronologia e de uma nova moralidade. Segundo Brooks (1976), nesse contexto, é preciso produzir melodrama para justificar a incessante luta contra inimigos, vilões, subornadores da nova moralidade que devem ser expurgados e confrontados para que a virtude triunfe, tornando as novas representações legíveis e claras para todos.

Podemos dizer que o melodrama é um dos modos de demonstrar, de tornar operativa a essência moral de um universo pós-revolucionário. Assim, ele representa ambos, a necessidade em direção a uma nova moralidade e a impossibilidade de conservar esta moralidade em termos tradicionais. Essa moralidade se revelava nas radionovelas pelo predomínio do bem, da beleza e do amor e pelo castigo aos culpados.

Eram pequenos contos e às vezes tinham contos que eram seriados e pela descrição que o autor ou a autora fazia você ficava imaginando aquela pessoa linda. Sempre são lindas, bem sucedidas e termina sempre tudo muito bem. E os ruins ou morrem ou vão para cadeia. (Neide, 61, professora aposentada).

As radionovelas influenciaram ainda nas rotinas domésticas das audiências daquele período. Essas rotinas são, como bem o disse Lüdtke (1994), produtos de uma prática social marcada por numerosas variações que permitiram o consumo de certos produtos culturais. No caso, o consumo das radionovelas incorporou-se a estas rotinas e delas passou a fazer parte, modificando hábitos sociais anteriores. Como revela Neide:

Novela tinha todo dia e eu só lembro desse horário. Eu lembro que eu fazia ginásio e chegava correndo do colégio, porque 5h30 tinha “Jerônimo, o Herói do Sertão”, que era a primeira que começava. Era uma novela nacional, mas tinha também as feitas aqui.(Neide, 61, professora aposentada).

No entanto, o consumo de radionovelas, assim como de outros produtos radiofônicos congêneres estava associado a um tipo de escuta particular que se relaciona diretamente a uma questão de geração.

3. Escuta Radiofônica e Geração

Os depoimentos revelam ainda uma divisão de geração explícita no hábito da escuta radiofônica. Para Neide, 61 anos, as pessoas mais velhas gostavam de ouvir rádio, mas os jovens e as crianças não. Obviamente, que a depoente está fazendo referência a uma escuta atenta, fixada no aparelho, focada exclusivamente nos meandros da trama. Para os mais jovens, os adolescentes e as crianças, com exceção dos horários destinados às radionovelas, a escuta do rádio funcionava como pano de fundo para outras atividades, como brincar, conversar e contar histórias. Os mais velhos, segundo ela, teriam repassado aos mais jovens, o hábito da escuta cativa.

Quando comecei a ouvir rádio, era por volta dos treze, quatorze anos, pelo que eu me lembro. Eu já fazia primeira série do ginásio, por aí. Tinha aquela “Jerônimo, o Rei dos Sertões”, que era uma novela rural. Depois tinha o “Direito de Nascer”. Essa era um pouco mais tarde. Era aquele dramalhão de chorar e a gente, adolescente, assistia porque os mais velhos assistiam.

Esta noção que se vincula à produção de um habitus[8], isto é, uma gramática generativa relacionada a um conhecimento adquirido e incorporado à uma série de disposições para agir no mundo social, tornando-se um valor determinante na conduta de seus agentes, pôde ser notada no depoimento de Gil Furtado que ressalta o fato de que sua escuta do rádio fazia parte da uma rotina diária que se formou na geração de seus pais ainda na década anterior.

Desde menino, eu gostava de ouvir rádio. Esse meu interesse ainda menino foi porque durante a Segunda Guerra Mundial meu pai era jornalista e também gostava. Como ele trabalhava em dois expedientes, eu, sempre que tinha oportunidade, ligava um rádio antigo, mas que pegava as estações estrangeiras, porque era um rádio potente. Meu pai gostava muito de ouvir a BBC de Londres na parte noturna. Depois, passados esses cinco anos dessa fase, já na década de 50, eu continuei com o hábito de ouvir rádio e até hoje permaneço com esse hábito.( Gil Furtado, 76, professor aposentado).

Se é verdade que foram os mais velhos que induziram os mais jovens à escuta radiofônica em Fortaleza, a idéia de que o consumo de produtos culturais mediados por novas tecnologias esteja relacionado a um sensorium, oriundo de novas gerações, pode ser posta na berlinda. Aqui, o consumo foi a criação de um habitus que se constituiu primeiro entre as gerações mais velhas e, só posteriormente, chegou às mais jovens.

No caso das radionovelas, o consumo rápido das gerações mais velhas pode ser explicado pelas próprias características estruturais do novo bem. As radionovelas reatualizavam uma memória narrativa oriunda do teatro melodramático[9], da literatura de cordel, das narrativas orais comuns no sertão, dos efeitos sonoros provenientes da arte circense. Estes elementos, híbridos, ajudaram a constituir um novo gênero de extrema popularidade.

Em contraponto à escuta segmentada Maria José Braz, 72, radioatriz, testemunha momentos de sua carreira relembrando que ao sair da emissora encontrava na calçada um amontoado de pessoas de todas as idades, algumas a enxugarem as lágrimas, emocionadas pelo desfecho do capítulo da novela que acabaram de ouvir. E ali, estavam para propiciar um encontro com as radiotrizes e radioatores ‘’objetos de admiração e endeusamento’’, para este público. Era um momento privilegiado de atenção para essa escuta que precisava materializar o que o meio e as mensagens antecipavam como configuração de sentido.

Essa forma de se inserir no mundo no qual a emotividade se torna o foco central das relações sociais representa, segundo Barbero (1988) formas de recepção típicas da cultura popular. É esse sabor emocional que definirá o melodrama radiofônico, colocando-o ao lado do popular justamente quando a marca da educação burguesa se manifesta oposta, voltada para o controle dos sentimentos que, divorciados da cena social, se interiorizam e configuram a vida privada[10].

5. Os Programas de auditório e as fofocas de revistas

     A partir de meados dos anos quarenta até meados dos anos cinqüenta, o rádio no Brasil atingiria seu ponto culminante com os programas de auditório. Os programas de auditório nasceram com os primeiros programas de calouros, chegando a se transformar numa nova modalidade de espetáculo de palco. Em especial, a década de cinqüenta, ficou marcada pela acirrada competição pelo título de "Rainha do Rádio" que envolveu em disputas memoráveis cantoras como Emilinha Borba, Marlene e Ângela Maria. Nessa década, os programas de auditório das emissoras tornaram-se tão concorridos que era cobrado ingresso até para assisti-los, ainda que em pé.

Mistura de show musical, espetáculo de teatro de variedades, circo e festa de adro, esses programas chegaram a alcançar uma dinâmica de apresentação que conseguia manter o público nos auditórios em estado de excitação contínua durante três, quatro e até mais horas. Para isso, os animadores contavam não apenas com a presença de cantores de sucesso, mas ainda com o suporte musical de grandes orquestras, conjuntos regionais, músicos solistas, conjuntos vocais, humoristas e mágicos, aos quais se juntavam números de exotismo, concursos à base de sorteios e distribuição de amostras de produtos entre o público (Tinhorão, 1981).

Em Fortaleza, os programas de auditório foram os responsáveis pela popularização do rádio. Na década de cinqüenta, a disputa entre as duas rádios – Radio Iracema de Fortaleza e a Ceará Rádio Clube - se fazia por intermédio desses programas, aqui também chamados de programa de animação. Segundo os produtores, a Ceará Rádio Clube dispunha de um auditório de 500 lugares, em nada perdendo para os auditórios dos grandes centros do Sul e Sudeste do País. Os programas Divertimentos em Seqüência, Fim de Semana da Taba, Clube das Gargalhadas, Festa na Caiçara, Clube Papai Noel, Programa de Calouros eram disputados pelos freqüentadores em longas e demoradas filas que antecediam ao seu início para desfrutarem da proximidade dos seus ídolos, quer fossem os ídolos nacionais, regionais ou locais.

Tinha na tarde de sábado um programa de auditório chamado “Divertimentos em Seqüência”, que trazia vários tipos de divertimento, assim como esse programas que tem na televisão do Silvio Santos, tinha adivinhações, tinha perguntas e respostas, tinha apresentação de cantores, apresentação de orquestras, apresentação de músicos, tinha calouros, eram vários tipos de divertimento, chamado de “Divertimentos em Seqüência”. (Nirez, 71, funcionário público).

Os rapazes viam no show de calouros a oportunidade para tentar uma vaga no mundo mágico das celebridades. Para as ouvintes, aquele era um espaço privilegiado para ‘’flertar, tirar linha, namorar, noivar, casar’’, com um dos artistas locais ou nacionais que ali se apresentavam. Nesses espaços se cunhou o termo popular “macaca de auditório” devido à superlotação dos espaços. As pessoas chegavam inclusive a ficar penduradas nas colunas, nas janelas, onde o corpo se adaptasse.

Numa cidade de poucas opções de lazer e carência de transporte - a freqüência às praias era rara, o acesso aos clubes seletos e aos bailes dançantes com vitrolas ou orquestras interditados a maioria - os programas de auditório com suas brincadeiras, com as seções de perguntas e respostas, com o direito a prêmios ocupavam o espaço deixado pelas diferenças de classe e pelas políticas públicas que não preenchiam a esta demanda. Nesse sentido, a distribuição de prêmios bem como a participação efetiva dos ouvintes nos espetáculos foram elementos comentados em todos os depoimentos realizados durante esta pesquisa.

Eu ia esporadicamente à Ceará Rádio Clube que tinha mais práticas de curiosidades e perguntas com prêmios. A Rádio Iracema, que funcionava na Praça José de Alencar, tinha programas com as rádios musicais com cantores. Ela sempre trazia cantores de fora. A Rádio Iracema tinha programas com as rádios musicais com cantores. Ela sempre trazia cantores de fora, mas depois que passou minha adolescência eu deixei de freqüentar, mas continuo com o hábito de diariamente ouvir rádio. É uma cachacinha que eu tomo antes de dormir. (Gil, 76, professor aposentado).

Se esta participação era motivada pela aquisição de brindes, estes últimos eram, em geral, para as audiências femininas, concretizados no ganho de revistas como Capricho que contava as fofocas dos cantores e cantoras daquele período cujo acesso era difícil dado às condições econômicas das poucas ouvintes alfabetizadas, e, portanto, sonho de consumo da maioria.

Eu já estava no fim do ginásio, com 16 para 17 anos, e a gente ouvia os programas musicais. Escrevia para os programas, pedia músicas, dava vários nomes falsos, porque a gente mandava várias cartas para serem sorteadas para ganhar revistas, como Querida e Capricho. A Querida era uma revista muito boa de contos. A Capricho era de fotonovela. A Querida era uma revista de reportagens e contos. O tamanho delas era pequeno, mas bem grossas. Hoje em dia, eu vi numa dessas bancas de revista a Capricho, uma revista deste tamanhinho. Antes era uma revista grande e boa que vinha com fotonovela, reportagens, histórias, fofocas de rádio, que naquela época eram das cantoras e dos cantores.( Neide, 61, professora aposentada).

Estamos, pois, diante do que podemos chamar, assim como Barthes (1972) e Fiske (1987), de intertextualidade, ou o que Bahtkin (1998) chama de dialogismo. Isso é, a concepção de que nenhum texto pode ser lido sem relação com outros e que, portanto, quando interpretamos um bem cultural qualquer, estamos colocando em jogo, direta ou indiretamente, um amálgama de outros conhecimentos que vêm de outros textos trazidos inevitavelmente para o primeiro.

A intertextualidade, nesse caso específico, consiste na relação dos argumentos dos programas radiofônicos, aqui denominados de primários, com outros textos que se referem especificamente a eles, chamados de secundários. Estes textos secundários, como a crítica, a publicidade, e a fofoca trabalham para promover a circulação de significados difundidos pelos textos primários. O texto terciário será, então, o texto final, que circula no plano das audiências e de suas relações sociais.

Os textos secundários tinham, pois, forte influência nos significados difundidos pelos programas radiofônicos. O caso das revistas especializadas daquele período ilustra bem este ponto de vista. Capricho podia até não fazer parte do conglomerado das emissoras de rádio, mas trabalhava em cooperação com elas, fazendo circular significados importantes para cimentar o interesse pelos bens culturais inseridos na nova tecnologia. As fofocas sobre os artistas, os comentários e entrevistas, as fichas biográficas, bem como o enaltecimento do “trabalho duro” das estrelas, de seu profissionalismo e dos segredos de produção dos programas visavam a estabilizar os sentidos preferenciais difundidos por estes. Esta promoção de uma estratégia de leitura ajuda a reforçar a idéia de que o mundo das cantoras e cantores de rádio, das atrizes e dos atores e dos apresentadores se tratava de um mundo real e não de uma construção imaginária.

As revistas diziam era com quem estavam namorando, se tinham casado ou descasado. Era o novo disco que estava lançando na época, porque era disco, ainda não tinha esse negócio de CD e fita.(Neide, 61, professora aposentada).

Era, obviamente, como é até hoje, uma tentativa de controlar a natural polissemia dos textos midiáticos. Essas “informações”, por outro lado, iriam entrar no circuito social, através das conversas cotidianas dos ouvintes, que teriam lugar tanto na esfera pública como na privada, instituindo uma rede de sociabilidades complexa.

Um exemplo dessa sociabilidade eram os programas religiosos. A Hora do Pobre, programa voltado para a família cearense, e grande receptor de donativos, apresentado pelo famoso Padre Paixão, na Ceará Radio Clube, celebrava uma aliança entre a profanidade midiática e a sacralidade das instituições eclesiais.

Bom mesmo era a Hora do Pobre, celebrada pelo bondoso sacerdote Padre Paixão, autor de frases como “ A morte não avisa, faça seu testamento e deixe qualquer coisa para a Hora do Pobre”. “O aniversário de um filho, de um parente, o casamento da filha, comemore com um donativo para a hora do Pobre”. Está triste. Mande um donativo para a Hora do Pobre”. (Narcélio Lima Verde, 72, locutor de rádio).

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O sucesso do programa e a enorme quantidade de donativos recebidos levavam os próprios funcionários da emissora, os mais carentes ou os mais sabidos a se misturarem aos doadores, fazendo-se passar por assistentes eclesiais, ou população assistida, recebendo assim, as oferendas, dinheiro ou donativos outros, antes que eles chegassem ás mãos do bondoso padre.

Em Fortaleza, as alianças entre líderes religiosos e donos dos meios de comunicação sempre foram claras na cidade. A Hora do Pobre transmitia os valores e crenças do catolicismo alicerçados na bandeira da caridade cristã, do respeito à família e do cumprimento das obrigações religiosos publicizadas e, portanto, reconhecidas socialmente o que dava um status social importante para os doadores da sociedade daquele período.

5. Os programas musicais e os bailes dançantes

No início dos anos cinqüenta, já se difundia a diversidade musical existente no Brasil. A consolidação do rádio no sul/sudeste do País, a grande repercussão da Rádio Nacional do Rio de Janeiro tornara conhecidos compositores e intérpretes do porte de Ari Barroso e Araci de Almeida. Cantores como Dick Farney faziam contatos com músicos norte-americanos e com eles se apresentavam, ganhando fama internacional e credibilizando seu nome no cenário brasileiro. O samba invade os espaços antes ocupados apenas pela música clássica e pelos ritmos oriundos da música norte-americana. Fato relevante no cenário musical acontecido na década de 40 foi a criação do baião pelo músico e intérprete Luiz Gonzaga. Vindo do Nordeste, Gonzaga fazia uma releitura da música popular de uma região conhecida apenas pela pobreza e o analfabetismo. Nesta década, a descoberta de Luiz Gonzaga que exibia um instrumental, um ritmo e uma forma de apresentação criativa, portanto diferenciada do que se conhecia até então, foi um grande acontecimento, logo apropriado pela indústria cultural, pela fonografia e, em especial, pelo rádio, novidade ainda para a grande extensão do território brasileiro. Em 1952, um compositor local, Humberto Teixeira, recria o baião com a música Kalu, interpretada na voz de uma cantora de sucesso, campeã dos programas de auditório, Dalva de Oliveira. A música popular que falava de um universo rural passa a fazer parte do repertório de artistas tipicamente urbanos.

Outros grandes cantores e intérpretes iniciaram suas carreiras na década de 50, como Tom Jobim, Billy Blanco e o nordestino Antonio Maria que, além de compositor, exercia as atividades de roteirista de shows e espetáculos de revista e principalmente, de jornalista e de cronista das noites da boate Vogue, responsável pela descoberta de vários talentos da música popular brasileira como compositores, músicos, letristas e intérpretes. Esse broadcasting nacional chegava até os nossos arribais por intermédio das famosas caravanas de artistas. As caravanas eram compostas por artistas contratados pelas rádios como atração principal dos programas de auditório[11].

Esses artistas antigos todos apareciam por aqui.. Todos eles homens e mulheres. Quem você citasse aqui eles vinham. Não vinham assim com freqüência, mas todos eles apareciam e era aquela festa. Eu não gostava de ir pessoalmente, porque aquilo era mais para o pessoal da gritaria que quando chegava o cantor ou a cantora ficavam gritando. Eu gostava de ouvir. (Gil, 76, professor aposentado).

Para as audiências, tanto femininas quanto masculinas aquela era uma oportunidade ímpar de conhecer o protagonista de um universo distante, quase irreal, uma vez que os grandes artistas eram cultuados apenas pelas suas vozes ou pelas suas fotografias em cartazes e revistas de circulação nacional.

Naquele tempo, os artistas de fora eram os mais desejados porque ninguém quase conhecia, porque não existia televisão, só ouvia a voz, zné, através de discos, etc, e quando muito se conhecia por fotos, quem tinha acesso, né ou então a voz se conhecia, mas e só quem também tinha um bom rádio. (Neide, 61, professora aposentada).

As canções desse broadcasting se popularizavam por intermédio dos bailes dançantes produzidos via programas musicais. Esses bailes divulgados com muita ênfase nas chamadas durante a programação ao longo da semana era uma outra oportunidade de lazer dantes não existente para as classes populares. Os mais famosos programas neste estilo, em Fortaleza, foi o Bazar da Música, e o Rádio Baile lembrado tanto por produtores como por receptores.

Por exemplo, à noite, às nove horas da noite, tinha o “Bazar da Música”, era o único programa de discos para dançar. Tocava duas horas de programa, que as pessoas aproveitavam para ter festinhas em casa, se chamava “Bazar da Música”. Os bailes aconteciam no sábado ou domingo, não lembro bem, mas sei que eram uma vez por semana.(Nirez, 71, funcionário público aposentado).

Mas, não era só de programas musicais que o rádio fortalezense de alimentava. Também ocupava lugar de destaque nessa programação, os programas noticiosos.

6. Os Noticiosos e a Política

No Ceará, Os Diários Associados (a Ceará Radio Clube, o Correio do Ceará e o Unitário e posteriormente, a TV Ceará) gozavam de destaque especial entre as elites empresariais. Numa terra onde as principais empresas eram de refinamento de óleo, de produção de cigarros e de revenda de máquinas de costura, as empresas relacionadas à produção de informação e entretenimento se destacavam como ícones da modernidade que finalmente chegavam à província. Essas empresas eram responsáveis pela transmissão de um imaginário que trazia à cultura local um fervilhar de idéias inovadoras que eram mediadas pelo trabalho dos locutores, apresentadores, radioatores e radioatrizes, e, conformavam uma opinião pública que se nutria da credibilidade sustentada no poderio econômico dos Associados.

Hoje tantos anos depois fico pensando no poder que tinha nesta cidade Os Associados, Ceará Radio Clube, Correio do Ceará E unitário. A força que desempenhava na cidade a opinião da crônica do Ceará, dos programas de crítica como Bate Papo na Praça, a celebre Carrocinha, a popularidade dos radio atores e das radio atrizes do radio teatro Pré-9. A a credibilidade dos noticiosos da pré-9 como noticiário relâmpago, repórter alfa, matutino pré-9, grande jornal pré-9 chegou ao ponto de quando a emissora da cidade divulgasse qualquer informação mais importante os ouvintes telefonavam para o 55525 (telefone da pré-9) pedindo da confirmação ou não. (Narcelio Lima Verde, 72, locutor de rádio).

Essa credibilidade antes como agora levou, inclusive, um dos mais populares locutores daquele período _Paulo Cabral_, aos 28 anos, a ser eleito prefeito de Fortaleza e, em seguida, Deputado Estadual. Além disso, pertencer ao quadro de funcionários das empresas associadas era por si só um passaporte ou um cartão de visita para a entrada num universo interditado às pessoas comuns. Ou seja, apresentar o crachá da emissora em qualquer banco era garantia de um atendimento de excelência, uma vez que, os empréstimos bancários podiam ser feitos para eles sem cadastro. A própria entrada em clubes seletos dos quais participavam apenas a elite cearense era permitida e desejada para estes funcionários.

E quem eram os escolhidos para serem apresentadores, locutores radioatores? Os critérios eram vários. Os produtores reforçam a idéia de que para serem admitidos no rádio passavam por provas muito severas. Eles eram submetidos a testes de leitura em duas línguas estrangeiras (inglês e francês). Deveriam possuir uma tonalidade de voz sonora, grave, empostada, pausada que os diferenciassem dos homens comuns e ao mesmo tempo incitasse a imaginação dos ouvintes. Além disso, tinham que conhecer as regras da língua portuguesa e usá-las adequadamente[12].

Esta mesma visão era compartilhada pelos ouvintes daquele período, em especial, os masculinos, pois, eram eles, os que sonhavam com a perspectiva de um dia ter o privilégio de ser admitido como locutor de rádio enquanto que as mulheres não se preocupavam em saber como os sapos se transformavam em príncipes. Os critérios para a seleção de locutores eram assim detalhadamente conhecidos pelas audiências masculinas, como demonstra o depoimento de Gil e Nirez.

Tinha testes que eram anunciados. Existia uma seleção, mas eu nunca concorri. Os critérios de seleção eram não gaguejar e ter uma voz que agradasse, porque se um locutor não agradasse, aí era difícil. Eles não tinham uma formação, mas era um pessoal de gabarito. Não sei se eles tinham títulos de formação acadêmica, mas tinham base. Ainda hoje tem o Augusto Borges, Moreira Campos que é um intelectual e foi locutor de rádio. (Gil, 76, professor aposentado).

Havia um concurso para virar locutor na Ceará Rádio Clube Naquele tempo, se exigia muito. O locutor tinha que saber ler francês e inglês. Tinha que ter a pronúncia correta, isso era uma exigência. Para você entrar hoje no rádio ou na televisão, basta você entrar, não tem mais essas exigências. (Nirez, 71, funcionário público).

Os noticiosos dispunham de informes nacionais e internacionais que eram repassados nas edições das oito da manha, das treze horas, das dezenove horas e das vinte e uma e trinta. As noticias locais não ganhavam repercussão na grade de programação do rádio, exceto em casos de tragédias ou nos períodos eleitorais. O rádio tinha, então, mais a função de fazer penetrar na terra os interesses da política nacional do que de fazer circular aqui informações sobre os eventos locais. Este modus operandi, freqüente na produção das noticias, foi reafirmado por todos os produtores entrevistados. Esta visão era também compartilhada pelos ouvintes daquele período.

Eram muito restritos. Eram de notícias e estas não eram como as de hoje. Eram notícias radiofônicas, por exemplo, não era ao vivo, não tinha esse negócio de você falar direto do Rio de Janeiro uma notícia que aconteceu. Primeiro, era retransmitida a notícia, e depois eles anunciavam que tinha acontecido no Rio de Janeiro, em São Paulo e no mundo. Hoje não, você pega um rádio e escuta ao vivo o que esta acontecendo. (Gil, 76, professor aposentado)

O foco da atenção dos produtores estava voltado para fora: eventos, fatos políticos, novidades comerciais, crimes, modismos, entretenimentos que se originavam nos grandes centros. A nova mídia estava engajada na construção de um novo mundo sustentado pelo consumo, quer seja de bens, quer seja de informações. Essa centralização em eventos além dos nossos arribais levava aos ouvintes a pensar que os locutores praticamente não tinham opinião sobre as notícias lidas. Eles só relatam a interferência política dos locutores nos períodos eleitorais.

Naquela época, praticamente não tinham opinião, liam o que vinham escrito no papel. Mas, na época da propaganda política se fazia política. Fazia transmissão radiofônica de comícios, fazia transmissão radiofônica de eventos diversos, se transmitia posse de governador, posse de N coisas. (Gil, 76, professor aposentado)

A idéia de que os locutores não participavam da vida política porque não falavam mal dos políticos no ar era compartilhada tanto por produtores como por receptores. Este contrato de silêncio se baseava numa aliança secular entre as elites políticas, empresariais e religiosas cearenses, explicitada no chamado pacto dos coronéis. Esse equilíbrio só era quebrado quando, obviamente, interesses particulares eram postos na berlinda. Quando tal fato se dava, os locutores viravam porta-vozes desses interesses contrariados. Neste momento, estes profissionais abriam espaço em seus programas para fazerem tácitas criticas ao poder que naquele momento lhes negava alguma demanda. Como afirmava Nirez:

O locutor não falava mal do político. Não, só quando tinha o programa que era a “Voz da Estação”, dizendo se a estação era contra aquele tipo de político, o redator fazia e o locutor lia. O primeiro caso aqui foi com Faustino Albuquerque, que era governador do Estado, e, na rádio Iracema, fizeram acirrada oposição ao governo dele. E o locutor fez várias crônicas contra o governo dele e gravaram um disco, uma paródia em cima de uma música famosa na época, chamada Chiquita Bacana, porque o Faustino Albuquerque tinha um sítio em Pacatuba, um sítio lá e lá tinha uma vaca chamada Chiquita Bacana, então fizeram uma paródia. A letra dizia: “Chiquita Bacana lá da Martinica, se veste com a casca de banana nanica”. Eles fizeram: “Chiquita Bacana lá da Pacatuba...”. (Nirez, 71, funcionário público)

Lembramos aqui que as notícias eram intercaladas pelos chamados reclames, símbolos mais do que óbvios da expansão do capital em uma sociedade ainda de cunho tradicional.

7. A propaganda e sua repercussão local

A partir do pós-guerra e durante toda a década de 50, consolida-se a sociedade de consumo, multiplicando produtos como eletrodomésticos, cosméticos, veículos e confecção. A grande novidade da época foi o lançamento do refrigerante. Surge também a facilidade de compra, o crediário, que insere parte significativa da população no consumo de bens e serviços. O mercado publicitário cresce e os profissionais da área imprimem uma nova estética à propaganda seja para os meios impressos sejam para os radiofônicos com os spots e jingles. Neste período, cerca de 60% do capital destinado à publicidade, pelas empresas, é aplicado no rádio na forma de publicidade e/ou de patrocínio de programas. O rádio torna-se o principal veículo de propaganda, configurando-se numa mídia que já atendia a uma segmentação de público. As radionovelas anunciavam os produtos eletrodomésticos, os programas de auditório sorteavam brindes que variavam da colônia Aqua-velva aos óculos ray-ban, os humorísticos distribuíam o refrigerante Grapette e os radiojornais recebiam o patrocínio de grandes empresas. Os principais anunciantes eram lojas de departamentos, restaurantes, lanchonetes, farmácias e produtos alimentícios.

De acordo com os produtores daquele período, existiam na época, em Fortaleza, firmas cujos dirigentes eram homens de visão e reconheciam a força da promoção comercial. No Ceará, tínhamos empresas com slogans específicos que caíam bem no gosto popular, como Casa Vilar, a mais antiga do Ceará; Flama Símbolo de Distinção; Lojas A Cruzeiro, as mais completas da cidade e Casa das Máquinas, o maior crediário do Ceará. Ao lado desses testemunhos, havia a produção de jingles que todos, produtores e ouvintes, repetem de memória, cantarolando, e emitindo juízos de valor sobre a beleza da musica, da eficácia dos locutores e de sua adaptabilidade aos gêneros radiofônicos no qual se inseriam.

Por exemplo, você estava escutando um programa de música erudita, a propaganda era de acordo. Hoje em dia não, você tá assistindo numa televisão um disco, seja bíblico, aí entram: “Casas Bahia, não sei o quê...”, ou seja, não há respeito da parte comercial ao programa que está sendo exibido. Naquela época, tinha sim. (Gil,76, professor aposentado)

Tanto produtores como receptores lembram que naquele tempo, quando a música que antecedia a fala do jingle soava, já se sabia a qual produto estava se fazendo referência. Glice Sales 65, rádioatriz, quando entrevistada, repete de memória, dramatizando, uma verdadeira avalanche de anúncios e reclames. Um exemplo: Ela é linda! Aaah!, Usa Pond’s! Aaah! Está noiva! Ooooh! - Fiu... Fiu... É uma uva! - Quem: Eu, cavalheiro: - Não! GRAPETTE!

O suporte econômico advindo da venda de comerciais transformou as duas rádios, Ceará Rádio Clube e Rádio Iracema em grandes competidoras no que se refere à contratação de artistas nacionais e internacionais. De parceria com os clubes de entretenimento freqüentados apenas pela elite, realizaram contratações que envolviam somas consideráveis em dinheiro no sentido de garantir a presença da atração, aumentando a audiência da emissora e angariando mais anunciantes. Assim, a cultura local entrava em contato com os artistas, músicos, compositores que se apresentavam preferencialmente no sul e sudeste, permitindo uma atualização com o gosto nacional. Outras formas de atualização eram as revistas e o cinema. Tinhorão (1981, 43), qualifica este momento do rádio comercial moderno como o estabelecimento de uma radiofonia destinada a atender ao gosto massificado dos ouvintes para maior eficiência da venda das mensagens publicitárias.

À guisa de conclusão, o que podemos afirmar, baseados nas memórias dos depoentes desta pesquisa, é que o rádio, quando relembrado hoje, adquire, no período em questão, uma tonalidade de artefato mágico para esses indivíduos. O tom emocionado, presente em todas as entrevistas, quer seja na posição de produtores, quer seja na situação de ouvintes, espelha, uma intensa relação emocional com o então novo meio. O passado é, para estes indivíduos, mediado pela lembrança dos programas e anúncios vistos e ouvidos nos anos cinqüenta em Fortaleza. Logicamente, que este é um passado reconstruído uma vez que esta memória mediada midiáticamente, ao mesmo tempo que inclui, exclui determinados elementos.

Assim, destacamos a. o rádio como formador de uma comunidade imaginária no qual se estabelecia uma fronteira difusa entre os valores dominantes daquela sociedade e sua necessidade de adaptação a novos contextos, b. Seu papel inequívoco como mediador na construção de uma idéia de urbanidade para uma sociedade ainda de hábitos rurais, c. As novas sociabilidades oriundas da intermediação dos programas radiofônicos e o papel político na medida em que fornecia uma opção de lazer à uma classe social_ a popular_ até então marginalizadas das benesses dos processos produtivos, d. Os discursos, que supostamente pertenciam individualmente a cada um dos informantes, na verdade, configuraram diálogos que saíram do âmbito do privado e entraram no âmbito público e vice-versa.

Na visão dos entrevistados a forma intensa como o rádio marcou a década de cinqüenta em Fortaleza não se compara com a inserção de nenhuma outra tecnologia que veio a posteriori. Os ventos de mudança que com ele vieram não puderam ser vistos, segundo os depoentes, como dissociados da efetiva participação do meio em suas rotinas diárias. Com certeza, o rádio foi capaz de produzir os textos que alimentaram a memória destes indivíduos.

Este foi um pequeno panorama dos sentidos potenciais do rádio em uma cidade do Nordeste do Brasil. Este estudo nos ajuda a pensar o rádio como uma prática significante de espaço de produção e sentido, de dialogicidade, de experiência cultural. Com esta pesquisa, apresentamos algumas das possibilidades de pensar estas questões. No entanto, ressaltamos a sua ainda exigüidade frente à pluralidade de sentidos que tal perspectiva teórico-metodológica nos traz. Neste aproche, trata-se de se considerar a distância entre nós e os outros, entre o tempo atual e o tempo histórico como um elemento que nos leva a perceber esta pesquisa como um trabalho de reconstrução que deve ser considerado em toda a rede de complexidade que carrega consigo.

Bibliografia

bakhtine, M. La poétique de Dostoievski. Paris, Seuil, 1998.

Barbero, J. M. De los medios a las mediaciones- comunicacion, cultura e hegemonia. México, Gustavo Gili, 1988.

Barthes, R. Mitologies. Londres, Paladin, 1972 .

Bourdieu, P. O Poder Simbólico, Lisboa, Bertrand, 1989.

Brooks, P. The melodramatic imagination, London, Yale University Press, 1976.

Elias, N. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro, Zahar, 1995.

Enriquez, J. La telenovela y el fin del melodrama, in: Diálogos de la comunicacion, Felafax, Lima, 1990.

Haussen, D. F. Mídia e Política. Porto Alegre, Ed. Pucrs, 2001.

Ludtke, A (org). Histoire du quotidien. Paris, Maison des sciences de l’homme, 1994.

Tinhorão, J.R. Música Popular: do gramofone ao rádio e TV. São Paulo, Ática, 1981.

Silverstone, R. Por que estudar a mídia?. São Paulo, Loyola, 2002.

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[1].Trabalho destinado ao GT História da Mídia Sonora- IV Encontro Nacional de História da Mídia São Luís ( MA ), Brasil - 30 de maio a 2 de junho de 2006

[2]. E-mail: manubarros@.br.

[3]. E-mail: eroh@unifor.br; eroh@.br

[4]. Os estudos na área na América Latina se centram, modernamente, nas propostas radiofônicas que consomem os setores populares, nos usos populares do rádio, nas rotinas produtivas e nas ideologias profissionais, nas relações entre audiências e processos de construção de identidades, nas mediações, nas formas e nos espaços de produção e de consumo, nas questões do poder e sua interação com os setores populares. No entanto, estes estudos ainda não se difundiram devidamente no universo acadêmico.

[5] Este trabalho é parte de uma pesquisa sobre a radiodifusão cearense tomando como suporte a memória dos velhos radialistas, radioatores, radioatrizes, técnicos, empresários, locutores que fizeram sua história e se realiza junto com os estudantes de jornalismo da Universidade de Fortaleza, em Fortaleza, capital do Ceará.

[6] . A memória é, de acordo com Silverstone (2002) o que se faz recordar pelo testemunho oral e pelo discurso compartilhável. É onde os fios privados do passado se entrelaçam no tecido público, oferecendo-nos uma visão alternativa às versões oficiais da academia e dos arquivos.

[7] . Ver mais sobre as relações entre melodrama e Revolução Francesa em Barbero (1988).

[8] . O conceito de habitus nos remete a uma estrutura estruturante mas simultaneamente a um sistema de esquema inconsciente de pensamento, de percepção e de ação (Bourdieu, 1989).

[9]. Como nos lembra Cano (apud Enriquez, 1989, 78), o melodrama era um espetáculo musical, poético-literário que girava ao redor de dramas sentimentais e individuais, rico em momentos de conflito e sentimentos profundos (dor, ira, prazer, amor) na qual o texto e a música gozavam da mesma importância e se reforçavam mutuamente na busca da expressão perfeita do sentimento.

[10] . Ver mais em Elias (1995).

[11] . Na própria inauguração dos estúdios da Ceará Rádio Clube foram convidados dois artistas famosos da época: Orlando Silva e Dorival Caymi.

[12]. Neste período, havia uma categoria de profissional na produção dos noticiários denominada de rádioescuta. Este tinha a função de copiar o noticiário das rádios dos grandes centros e disponibilizá-lo para os locutores que tornavam essas notícias o centro dos noticiosos locais. No entanto, como lembra todos os produtores entrevistados, esses profissionais, mal pagos, não tinham preparo na língua portuguesa, cometendo muitas vezes erros de ortografia e gramática. Cabia, pois, aos locutores a correção do texto, demonstrando sua perícia em relação ao domínio da norma culta.

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