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TEMPO DE VÉSPERAS DE DESASTRE

Por Luís Fernandes

Na recta final do tempo previsto para o términus da minha comissão de serviço na Região Militar de Moçambique, requeri e obtive uma licença de trinta dias, acrescidos de cinco, para gozar na Metrópole, em Março/Abril de 1974.

Encontrava-me na cidade da Beira, onde iria embarcar num voo regular da T.A.P. para Lisboa. O ambiente era tenso entre muitos oficiais do Quadro Permanente. Tinha verificado entre os capitães oriundos da Academia Militar a existência de um clima conspiratório, que levara alguns a subscrever um documento, com características de manifesto contestatário da política ultramarina prosseguida na defesa da soberania portuguesa nos nossos territórios africanos. O caso era extremamente grave e envolvia camaradas meus, capitães dos Grupos Especiais Paraquedistas, de quem eu era amigo mas com quem naturalmente não era solidário, nessa sua atitude que revestia, para mim, características de traição à Pátria, sem que eles próprios se apercebessem disso.

Passando pelo bar da Messe de Oficiais da Beira, nas vésperas da data prevista para o meu embarque, deparei com um grupo de capitães que celebravam animadamente a notícia que lhes acabara de chegar, provavelmente através do telefonema de algum camarada na Metrópole, da eclosão de um movimento militar contra o Governo. Estávamos a 16 de Março e tinha entrado em rebelião o Regimento de Infantaria n.º 5, aquartelado em Caldas da Rainha. As forças sublevadas teriam iniciado um movimento sobre Lisboa e aguardariam que outras unidades se lhes juntassem. A desilusão espelhava-se-lhes no rosto quando, no final do dia, foi publicado e lido aos microfones das emissoras de radiodifusão o comunicado oficial do Governo que informava da rendição e prisão dos revoltosos. Então o medo de possíveis represálias por terem subscrito o tal manifesto que os tornaram cúmplices dos rebeldes, apoderou-se de muitos deles e, um após outro, vieram ter comigo para pedir-me que em Lisboa, ao avistar-me com o General Kaúlza de Arriaga, que me honrava com a sua amizade, e que também os conhecia como combatentes, lhe fizesse sentir que não haviam de modo algum interpretado o tal documento por eles subscrito como significando vontade de abandonar o Ultramar, que eles sempre defenderam.

Quando cheguei a Lisboa, e depois de visitar os meus Pais, dirigi-me imediatamente à Junta de Energia Nuclear, onde o General Kaúlza de Arriaga tinha retomado as suas funções de Presidente, depois de regressar da sua missão em Moçambique. O General a quem, por carta ou por mensageiro, já havia comunicado as minhas inquietações acerca das movimentações conspiratórias que se tinham verificado em Moçambique, tomou nota dos nomes dos capitães que me haviam manifestado o seu “arrependimento” e bons propósitos para o futuro. Tivéramos, finalmente, uma longa conversa, tal como já tinha acontecido em tempos no seu gabinete em Nampula.

Debelada a primeira ameaça directa à Autoridade do Estado, que fora a sedição de Caldas da Rainha, e as suas ramificações descobertas naquela altura, o perigo não tinha passado e era indispensável e urgente reforçar as defesas, na Metrópole e no Ultramar. Considerávamos, o General e eu, como muitos outros nacionalistas, que a culpa maior do que estava a acontecer cabia inteiramente ao Doutor Marcello Caetano, cujas ambiguidades punham seriamente em risco a segurança do Estado, a conservação do Regime, e a própria sobrevivência nacional, visto colocar em perigo a defesa do Ultramar. Era urgente convencer o Chefe do Estado, Almirante Américo Thomaz, a demitir o Doutor Marcello Caetano das suas funções de Presidente do Conselho, que manifestamente não exercia com a competência e a autoridade que a gravidade da situação exigia. Assim, em ligação com o General Kaúlza de Arriaga, aproveitei a minha estada em Lisboa para restabelecer contactos com personalidades que se haviam sempre mantido fiéis a Salazar e à sua doutrina política, muito particularmente quanto à defesa intransigente da integridade territorial de Portugal, do Minho a Timor.

O meu primeiro contacto foi com a Força Automóvel de Choque/Agrupamento Especial de Oficiais (F.A.C./A.E.O.) da Legião Portuguesa, de que eu era oficial havia já bastante tempo, e que reunia um certo número de velhos e jovens camaradas que denunciavam vivamente as transigências inadmissíveis que a “Primavera Política” de Marcello Caetano havia ocasionado, face à descarada propaganda subversiva que se infiltrava nos liceus, faculdades, quartéis e sacristias.

Desloquei-me ao Porto, onde encontrei muitos camaradas que haviam participado no Movimento Vanguardista e nos cursos de formação política “Estudo e Acção” realizados com o apoio da Legião Portuguesa e da Liga dos Antigos Graduados da Mocidade Portuguesa. Reforçámos as ligações já existentes sob a orientação superior do Professor António José de Brito, que fora meu mentor político. Com esse mestre do Nacionalismo Português, herdeiro espiritual de Alfredo Pimenta, almocei, correspondendo ao seu convite, no Club Portuense, onde passámos em revista as últimas evoluções da situação política em Portugal. Numa mesa próxima da nossa estava a almoçar o ex-deputado da “Ala Liberal” marcelista, Francisco Sá Carneiro, que obviamente não cumprimentámos.

De regresso a Lisboa, encontrei-me com o Professor Pedro Soares Martinez, então director da Faculdade de Direito, que nos acompanhava nos nossos esforços, e almocei no Grémio Literário com o deputado Gonçalo de Mesquitela, que também pertencia à Liga dos Antigos Graduados da M.P. Finalmente, almocei em casa do Dr. António da Cruz Rodrigues, que dirigia a revista católica “Resistência” e lutava denodamente contra as infiltrações progressistas no seio da Igreja, também alvo da subversão antiportuguesa na Metrópole e no Ultramar.

Em dada altura recebi um telefonema de um velho amigo e correligionário, o Dr. João Ferreira de Almeida, que conhecera quando exercia as funções de Director-Geral do Ensino Superior e das Belas Artes e presidia agora à Junta Nacional de Educação. Esse velho amigo, que já fora Presidente da Assembleia Geral do “Círculo de Estudos Alfredo Pimenta” pedia-me que o visitasse em casa, para me transmitir uma informação urgente. Quando me recebeu, comunicou-me que um afilhado seu, que era soldado e se encontrava a prestar serviço na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, lhe havia dito que uns oficiais do Quadro Permanente colocados na unidade, lhe mandavam dactilografar uns textos que lhe pareceriam ser circulares do tal “movimento dos capitães”, que afinal ainda permanecia activo, não obstante as prisões efectuadas na sequência da intentona de 16 de Março. Era uma notícia preocupante que tinha de ser rapidamente investigada. Tendo sido convidado para almoçar no dia seguinte pelo deputado Francisco Cazal-Ribeiro, que fora meu comandante na F.A.C./A.E.O., comuniquei-lhe logo a informação e ele colocou à minha disposição o seu carro e o respectivo motorista, para que fosse imediatamente informar o comandante da Escola Prática de Infantaria daquilo que se estaria a tramar na sua própria Unidade. Assim segui para Mafra, uniformizado, e pedi para ser recebido pelo Comandante, Brigadeiro Artur Henriques da Silva, a quem comuniquei a identidade do soldado que fora a fonte de informação, a fim de que ele investigasse e tomasse as medidas de segurança apropriadas. Despedi-me do Brigadeiro, convicto de que tomaria as providências necessárias.

Aproveitei ainda as visitas de cortesia que costumava efectuar durante as minhas deslocações a Lisboa para entrevistar-me com o Professor Adriano Moreira que me conhecia desde os meus dezasseis anos e fora director do Instituto Superior de Ciências Sociais e Politica Ultramarina, onde eu me licenciara. Também ele manifestou a sua profunda inquietação pelo rumo catastrófico a que a condução política do Professor Marcello Caetano conduzia o País. Concordava plenamente connosco sobre a urgente necessidade do seu afastamento.

De visita ao Ministro do Ultramar, Dr. Baltazar Rebello de Sousa, que eu já conhecia há longos anos como membro da Liga dos Antigos Graduados da Mocidade Portuguesa, informei-o da situação verificada em Moçambique e disse-lhe ainda que um dos principais mentores do tal movimento dos capitães era o próprio Coronel Pinto Ferreira, que exercia as importantes funções de Comandante-Geral dos Grupos Especiais, e se encontrava nessa altura, também ele, em gozo de férias em Lisboa. Procurou tranquilizar-me, declarando que já tinha conhecimento do caso e que ele já não voltaria para o seu posto em Moçambique. Convidou-me depois para ingressar nos quadros do Ministério do Ultramar, como Inspector do Gabinete de Negócios Políticos, logo que fosse dada por finda a minha comissão em Moçambique. Este convite vindo de alguém que conhecendo-me bem e sabendo a minha oposição à política seguida pelo Prof. Marcello Caetano, não deixava de ser curioso, devendo-se talvez ao facto se sermos antigos graduados da Mocidade Portuguesa.

Pouco dias depois tive um longo, muito longo, almoço com o Engenheiro Jorge Jardim que também se encontrava na altura em Lisboa. O almoço teve lugar no Comodoro, onde casualmente se encontrava também, numa mesa próxima, o Dr. Luis de Avilez que estava a almoçar com o Comandante Sacramento Monteiro. Tivemos um aberto e franco debate sobre a situação explosiva que se vivia. E, não obstante certas iniciativas que aquele meu prezado amigo tinha protagonizado e sobre as quais evitámos, ambos, de aludir, porquanto ele já sabia que, fiel ao meu pensamento nacionalista não era susceptível de alterar o meu comportamento, estivemos completamente de acordo sobre a necessidade de afastar do Poder o Professor Marcello Caetano, e de pressionar o Chefe de Estado para encarregar o General Kaúlza de Arriaga de disciplinar a tropa e efectuar as indispensáveis purgas na oficialidade insubordinada.

No meio de tantos contactos, reuniões, entrevistas, ainda arranjava algum tempo para conviver com os Pais, jantar com eles, assistir a espectáculos e, sobretudo, acompanhar mais de perto o meu Pai, a quem acabara de ser diagnosticado um cancro do cólon, o que face aos meios terapêuticos então usados no Instituto Português de Oncologia (I.P.O.) (cobalto) não permitia acalentar muitas esperanças de cura.

Estava a esgotar-se o meu tempo de licença e teria de regressar a Moçambique para passar alguns dias em Lourenço Marques com a Família Mesquitela antes de me apresentar na minha Unidade, no Dondo.

Na antevéspera do meu voo para Lourenço Marques, ia jantar a casa do Coronel Alves Morgado, que também estava de licença em Lisboa e tinha sido o meu comandante no Comando Operacional das Forças de Intervenção no Guro. Antes de me dirigir a casa do meu amigo e antigo Comandante, recebi um telefonema de um velho camarada da F.A.C., José Rebordão, que trabalhava na R.T.P. e me pedia para ir ter com ele aos estúdios, sitos na Alameda das Linhas de Torres, porque tinha importantes novidades para me contar. Acontece que a residência do Coronel Alves Morgado estava situada precisamente nessa Alameda, pelo que me dirigi primeiro aos estúdios da R.T.P., apresentando-me ao meu amigo, de modo algo insólito, fardado com o uniforme n.º 1 e com um ramo de flores que iria oferecer à esposa do meu anfitrião. Mas realmente o nosso contacto revestia-se de especial importância. Informou-me que um seu irmão que tinha seguido a carreira militar e era capitão em Évora e onde tinha vindo a participar em reuniões organizadas pelo grupo conspirativo estava agora preocupado com a evolução dos acontecimentos, tendo-lhe contado que estaria prestes a ser desencadeado um movimento de grande amplitude por capitães afectos ao tal movimento sedicioso. Forneceu-me a lista das unidades supostamente envolvidas mas ignorava a data exacta do início das operações. Tudo parecia apontar para uma data iminente. Estávamos a falar no final da tarde de 23 de Abril de 1974.

Fui então jantar a casa do Coronel Alves Morgado, que estava acompanhado da esposa e da filha. O Coronel Alves Morgado era um extraordinário militar, de estilo prussiano, oficial de Cavalaria, que gozava de muito prestígio entre os seus superiores e subordinados. A conversa decorreu sobre temas da história e estratégia militares e não abordámos questões políticas, ainda que soubesse que ele não estava ligado ao tal movimento dos capitães. Informei-o, no entanto, que acabava de me ser dada uma informação extremamente importante que, como militar, tinha o dever de transmitir ao Ministério da Defesa, pelo que tomava a liberdade de lhe pedir que me permitisse ligar ao Major Joaquim Arnaud Pombeiro, que estava colocado como Adjunto no gabinete do Ministro. O Major Arnaud Pombeiro, que o Coronel já conhecia bem, fora, em Moçambique adjunto militar dos Serviços Especiais de Informação e Intervenção, dirigidos pelo Engenheiro Jorge Jardim. O Coronel disse-me então para fazer o telefonema e convidar o Major a vir tomar café connosco no fim do nosso jantar. Assim sucedeu e levando-me a casa no seu carro, o Major Arnaud Pombeiro soube através do meu relato pormenorizado o previsível plano de acção dos rebeldes. Ficou em informar logo na manhã seguinte o Professor Silva Cunha.

Nesse dia, 24 de Abril, fardei-me, enquanto a minha sempre dedicada Ama, Catarina, preparava a minha mala para a viagem de regresso a Moçambique e, depois de tomar o pequeno-almoço com os meus Pais, dirigi-me à Cova da Moura onde funcionava o Departamento da Defesa Nacional, onde perguntei ao Major Arnaud Pombeiro se já tinha transmitido a mensagem ao Prof. Silva Cunha. Perante a sua resposta afirmativa, despedi-me e dirigi-me ao Largo da Misericórdia, onde estava à minha espera no seu gabinete o deputado Francisco Elmano Alves, meu velho amigo e camarada da Liga dos Antigos Graduados (L.A.G.), que na altura presidia à Comissão Executiva da Acção Nacional Popular (A.N.P.).

Depois dos cumprimentos da praxe, fui-lhe transmitindo as notícias que obtivera e que esperava fossem tidas em conta pelo Ministro da Defesa. O meu amigo Elmano ficara muito preocupado e disse-me antes de nos despedirmos, que iria também ele informar imediatamente o Ministro do Interior, Dr. César Moreira Baptista. Quando anos depois das supervenientes prisões e exílios, nos voltámos a encontrar, confirmou-me que, de facto, havia falado com o Dr. Moreira Baptista, alertando-o para a gravidade da situação, mas que o então Ministro lhe havia dito displicentemente que não se preocupasse porque “tudo estava sob controlo”. Na manhã do próprio 25 de Abril, o Dr. Elmano Alves, segundo me disse mais tarde, ainda telefonou para o Quartel-General da Legião Portuguesa, na Penha de França, a fim de falar com o seu Comandante-Geral, o General Raul Pereira de Castro, mas que lhe foi dito que o Sr. General estava à procura de um papel para assinar o auto de rendição…!

Do Largo da Misericórdia desci até ao Chiado e dirigi-me à sede da Direcção-Geral de Segurança, sita na Rua António Maria Cardoso, onde tive uma longa conversa com o director dos Serviços de Informações, Álvaro Pereira de Carvalho, a quem comuniquei as informações recolhidas ao longo dessas três semanas de licença e, particularmente as últimas notícias que, como militar, já havia transmitido ao Departamento de Defesa. Agradeceu o meu empenhamento e garantiu-me que seriam tomadas medidas com carácter de urgência.

Voltei então a casa para almoçar com os meus Pais e passar a tarde em família porquanto antes de embarcar tinha ainda marcado um jantar de despedida com muitos amigos e camaradas. Esse encontro de confraternização nacionalista teve lugar no Restaurante Munique, sito no Areeiro, já perto do aeroporto. Nele participaram, entre muitos outros amigos, o Padre Francisco Videira Pires, o Dr. Cruz Rodrigues e o Dr. Zarco Moniz Ferreira que tinha liderado em tempos o Movimento Jovem Portugal, a que também pertenci.

Embarquei, portanto, no avião da T.A.P que levantou voo para Lourenço Marques, pouco antes do aeroporto da Portela ser ocupado às ordens de um tal capitão Costa Martins, oficial comunista do M.F.A. que haveria ainda de singularizar-se como ministro do Trabalho de um governo provisório chefiado pelo radical coronel Vasco Gonçalves, e pela sua participação na tentativa gorada de assalto ao Poder por forças da extrema-esquerda ocorrida em 25 de Novembro de 1975.

À chegada a Luanda, para uma escala técnica, pelas oito horas da manhã, ainda não chegara aí a notícia do golpe de Estado em curso em Lisboa, mas quanto aterrámos em Lourenço Marques, por volta da hora do almoço, já os amigos que aguardavam a minha chegada no aeroporto tinham conhecimento dos graves acontecimentos que ocorriam na capital do Império.

Como foi possível que tal acontecesse depois de tantas informações colocadas à disposição das autoridades, alertando para os perigos iminentes? Porque desistiram de lutar? Por cobardia, cumplicidade ou oportunismo? Os Impérios perdem-se nas suas capitais. Portugal merecia outro final.

TEMPO DE RESISTÊNCIA NACIONALISTA

Eram escassas as notícias que no final da manhã de 25 de Abril tinham chegado a Lourenço Marques. Sabia-se que tinha eclodido um movimento militar na Metrópole. Tinha-se conhecimento que forças militares sublevadas tinham convergido sobre Lisboa, mas ignorava-se a amplitude do movimento sedicioso. Ingenuamente alguns camaradas ventilavam a hipótese que se poderia tratar de um golpe dirigido pelo General Kaúlza de Arriaga destinado a afastar do governo o Professor Marcello Caetano. Tirei-lhes as ilusões porquanto tinha conhecimento directo que o objectivo do General Kaúlza de Arriaga e dos seus apoiantes era de realmente afastar Marcello Caetano mas de forma institucional, confiado essa tarefa à decisão do Chefe do Estado que podia livremente exonera-lo das suas funções, e estaria prestes a exercer essa sua competência. Tinha também conhecimento directo da preparação de um golpe de Estado por elementos afectos ao chamado movimento dos capitães. Não tinha dúvidas, portanto, que os acontecimentos de Lisboa se enquadravam nesse esquema conspiratório que eu próprio havia denunciado às autoridades. No entanto, ainda acalentei por momento a esperança que as autoridades talvez tivessem deixado eclodir o movimento sedicioso para melhor o esmagar, conforme tinha acontecido com a recente sublevação do Regimento das Caldas da Rainha.

Em busca de informações mais concretas dirigimo-nos, os meus amigos e eu, para o Palácio da Ponta Vermelha, sede do Governo-Geral da Província do Índico. O movimento nas ruas da cidade reflectia o clima de paz e ordem habitual em Lourenço Marques. A cidade parecia ignorar os graves acontecimentos que estavam a ocorrer em Lisboa. O Palácio, ligado por telex aos centros de comunicação mais próximos do Governo, reflectia uma agitação que era pronúncio da extrema gravidade da situação. Foi-nos dito pelo Ajudante de Campo do Governador-Geral, um jovem alferes miliciano que era seu genro, que o Eng. Pimentel dos Santos já tinha entrado em contacto telefónico com o seu homólogo, o Governador-Geral de Angola, Eng. Fernando Santos e Castro. No intuito de estabelecer uma estratégia que, se por efeito de uma impossibilidade de exercício do Poder pelo Chefe de Estado e pelo Governo Central, o Governador-Geral mais antigo passaria a exercer interinamente a Suprema Magistratura da Nação. Deste modo, se a Metrópole viesse a ser ocupada e neutralizados os órgãos de soberania, o Ultramar Português constituiria o Portugal Livre, que seria chamado a promover a resistência e a reconquista do território metropolitano. Tudo dependia, porém, da atitude das Forças Armadas nas províncias ultramarina onde continuava a guerra contra os movimentos terroristas anti-portugueses.

Precavindo o desenrolar dos acontecimentos em Lourenço Marques, o Dr. Eugénio Brandão, do Centro de Informação e Turismo, e o Dr. Luís Rosa, ambos antigos combatentes do Ultramar, e eu dirigimo-nos à sede da Acção Nacional Popular, de onde extraímos os ficheiros e parte dos arquivos, a fim de evitar que viessem a cair nas mãos das forças adversas. Fiquei acantonado em casa do Dr. Eugénio Brandão, um velho amigo e camarada da Legião Portuguesa, pregados à telefonia para acompanhar as notícias provenientes de Lisboa. As emissoras locais de radiodifusão filtravam as notícias mas captando a Rádio RSA da vizinha África do Sul fomos informados da humilhante rendição de Marcello Caetano às forças rebeldes na pessoa do General António de Spínola. Não se podia imaginar fim mais ignominioso para aquela nefasta criatura.

No final do dia, foi anunciada a formação de uma “Junta de Salvação Nacional”, constituída por sete militares dos três ramos das Forças Armadas, alguns deles promovidos “revolucionariamente” ao generalato, presidida pelo General Spínola. Na declaração então lida por este último foram demitidos o Chefe de Estado, todos os membros do Governo, bem como todos os Governadores Civis da Metrópole e os Governadores do Ultramar, sendo esses substituídos interinamente pelos Secretários-Gerais das Províncias, como encarregados do Governo. Esta medida foi prontamente acatada pela generalidade dos secretários-gerais que eram quase todos militares, que na ocasião traíram os seus chefes. Acabou-se a hipótese de resistência institucional no Ultramar.

Fiquei colocado perante um dilema: encontrava-me ainda na situação de licença registada mas teria de me apresentar dentro de escassos dias na minha Unidade, onde previsivelmente seria preso. Podia, claro, refugiar-me na vizinha África do Sul, onde seria bem recebido, mas isso significava, além de me colocar na situação de deserção, ter de abandonar à sua sorte os meus subordinados dos Grupos Especiais Paraquedistas (G.E.P.). Hesitei, tanto mais que fora informado pelos meus Pais, a quem consegui falar pelo telefone, que elementos da Marinha já tinham estado na nossa casa de Lisboa para me prender. Decidi, no entanto, apresentar-me no dia e hora previstos no quartel do Dondo. Logo veríamos qual seria a atitude dos meus camaradas capitães a meu respeito. Dois dias antes dessa data, ainda fomos, o Eugénio Brandão e eu, acompanhados pelo nosso amigo Abel Tavares de Almeida, dos Serviços Especiais de Informação e Intervenção, esperar o Dr. Gonçalo Mesquitela que regressava de Lisboa, já demitido das suas funções de deputado na Assembleia Nacional, que fora dissolvida. Reunimo-nos na sua residência no Monte Atalaia, em Vila Salazar (Matola) e decidimos acompanhar a situação mantendo uma estreita ligação.

Quando me apresentei, conforme o previsto, no Quartel do Dondo, fui recebido, de braços abertos, de modo esfusiante, pelos meus camaradas capitães, pelos quais tinha intercedido, a seu pedido, junto do General Kaúlza de Arriaga, semanas antes. E logo perguntaram-me: “Então, Luís, agora aderes?” Muito contrariados com a minha resposta negativa, porque estavam realmente preocupados, como meus amigos, do que poderia vir a acontecer-me, disseram-me que “só os burros não mudam”. Respondi-lhes que preferia que me considerassem burro do que camaleão.

Junto do Comandante interino da Unidade, Major G.E.P. Luciano Alexandrino, reafirmei a minha decisão de não aderir ao M.F.A., situação inesperada e perturbadora para ele, mas sempre avesso a assumir responsabilidades, disse-me para me manter discreto e não “fazer ondas” para evitar problemas, visto que já pouco tempo faltava para terminar a minha comissão, e que brevemente passaria à disponibilidade. Retomei as minhas funções meramente formais de Adjunto do Comandante do Batalhão de Instrução, Major G.E.P. Serra Pinto, no Quartel Novo, em Mafambisse, suficientemente longe para não dar nas vistas.

Dias depois regressou ao seu posto o Coronel Pinto Ferreira, armado em “Miles Gloriosus”, que se tornara um dos mais radicais elementos do M.F.A.. Tão pouco tomou medidas contra mim, ignorando evidentemente que na Metrópole já fora emitido um mandato de captura a meu respeito, por ser oficial da F.A.C.. Entretanto, discretamente, ia continuando a “catequizar” os meus subordinados contra o M.F.A. e o desvario esquerdista que protagonizava. Participei com alguns dos meus oficiais, trajando civilmente, e com o meu camarada da F.A.C. Carlos Veiga, na manifestação tumultuosa de numerosos elementos da população da Beira contra o General Costa Gomes, que se deslocara a Moçambique, no decorrer da qual fora aclamada a D.G.S., para escândalo dos oficiais do M.F.A. que o acompanhavam.

Regressado ao comando formal do Quartel Novo, onde tinha sido colocado como meu assessor o tenente do Quadro Permanente Riquito Soares, aderente ao M.F.A., pouco podia fazer, mas mantinha ligação com os oficiais que eram meus correligionários e procuravam estar a par dos acontecimentos. Vim a saber, por portas travessas, confidencialmente que o M.F.A. estava a preparar uma vasta operação no decorrer da qual seriam presos todos os elementos da D.G.S. ainda em serviço em Moçambique. Convidei para jantar discretamente no sector reservado do Restaurante Sheik da Beira, o Inspector Poço que chefiava a delegação da D.G.S. na cidade. Alertei-o para o perigo que corriam e disse-lhe insistentemente para passar logo que possível para a Rodésia, onde seria bem acolhido. Não quis acreditar, segundo os seus termos que “os militares que tanto deviam à D.G.S., pelas informações que lhes transmitiam sobre as actividades subversivas, fossem capazes de os prender”. Não querendo seguir o meu conselho, foram todos presos no dia seguinte e transferidos para a Cadeia Penitenciária de Lourenço Marques. O que lhes valeu depois foi a revolta da população em 7 de Setembro de 1974 que, após ocupar o Rádio Clube de Lourenço Marques, assaltou a Penitenciária e soltou os elementos da D.G.S. que puderam assim refugiar-se na África do Sul. O Inspector Sabino que dirigia a D.G.S. em Tete, esse acreditou na informação que lhe consegui transmitir e fugiu numa avioneta para a Rodésia, evitando de ser preso.

Iam assim passando os dias, quando li publicado no semanário “Expresso” um artigo que me colocava directamente em causa. Tive de tomar uma atitude. Escrevi em 26 de Junho de 1974, uma carta ao director do “Expresso” que a publicou na edição de 6 de Julho, sob o título “Vanguarda fascista repudia revisionismo marcelista.”

Eis o teor da minha carta integralmente reproduzida no “Expresso”:

“Encontrando-me a prestar serviço militar na Província de Ultramarina de Moçambique, como Capitão Miliciano, dos Grupos Especiais de Paraquedistas, só casualmente tive a oportunidade de adquirir um exemplar do número 74 do Expresso, em que vinha publicado um curioso artigo sobre a nova estratégia da direita em Portugal.

Por preocupação de coerência e por respeito pela verdade dos factos, julgo de meu dever solicitar-lhe que publique no próximo número do jornal que dignamente dirige algumas rectificações que reputo importantes.

Quando criei o jornal “Vanguarda” (de resto, mera publicação aperiódica) com um escasso número de jovens universitários, quase todos eles antigos graduados da Mocidade Portuguesa, foi nossa intenção dar corpo a um movimento de índole fascista, que acentuasse a oposição dos meios nacionalistas portugueses ao desviacionismo prosseguido pelo prof. Marcello Caetano em relação à política ultramarina, de integração e unidade e que defendesse os princípios da Revolução Nacional, proclamados por Salazar no limiar do Estado Novo. Não houve, portanto, qualquer complacência nossa em relação ao revisionismo marcelista nem, logicamente, qualquer tipo de compromisso com a Acção Nacional Popular, que servia de suporte ao presidente do ministério. Verificou-se, apenas, que sendo o então subscretário de Estado da Juventude dr. Elmano Alves, também membro da Liga dos Antigos Graduados da M.P. e meu amigo pessoal, houve encontros para troca de impressões, de carácter informal, que não são de molde a permitir que se afirme levianamente que a “Vanguarda funcionou junto da Subsecretaria da Juventude e Desportos em 1968 e 69.”

Quanto à ulterior ligação com a Acção Nacional Popular, trata-se de uma afirmação que carece de fundamento, dada a hostilidade manifestada de parte a parte, que caracterizou as relações entre a Vanguarda e aquela agremiação política.

Permanecendo fiel aos ideais que sempre defendi, devo acrescentar que me mantenho hoje na mesma disposição de espírito que me levou a enfileirar nas hostes nacionalistas. De resto, não sou o único a pensar deste modo e disposto a actuar em consequência…

Luis Fernandes

Capitão miliciano

(Moçambique)”

A publicação desta carta num importante órgão da comunicação social de Lisboa, teve um certo impacto junto de muitos nacionalistas que se achavam desorientados. O jornalista Carlos Dugos, no seu livro “MDLP e ELP o que são” publicado em 1976 nas Edições Acrópole, em Lisboa, refere na página 28: “Nesta carta encontramos como que o primeiro sinal vindo a público que a direita iria combater a revolução em moldes de resistência e com vista ao que declara ser a libertação do povo português.” Esta mesma carta é ainda referida no livro Portugal depois de Abril escrito pelos jornalistas Avelino Rodrigues, Cesário Borga e Mário Cardoso, e publicado em 1976, que referem na página 70: “Segundo estes direitistas, o consulado de Marcello consolida o processo de traição que viria a ter o seu desfecho no 25 de Abril (palavras de Pacheco de Amorim). Por isso, reagindo à escolha de Marcelo Caetano em 1968, esta direita busca organizar-se, com vista ao combate ideológico de degenerescência do regime, sendo apoiada por organizações nazis da Europa agrupadas na Convergência Ocidental. Precisamente em 1968, realizou-se discretamente em Portugal o encontro internacional da Convergência.”

Como não podia deixar de ser, a repercussão que teve imediatamente a publicação desta carta, enfureceu o Coronel Pinto Ferreira, que me convocou para recriminar a minha atitude e dizer que “responderia por isso”.

Mandou levantar um Auto de Averiguação e nomeou o Capitão G.E.P. Picão de Abreu, meu amigo e capitão mais antigo, para me ouvir em declarações, nos termos do Regulamento de Disciplina Militar. Sabendo de antemão que iria ser castigado, considerei que a melhor defesa era o ataque, mesmo que a decisão do Comandante já houvesse sido tomada.

Apresentei, como defesa e resposta, um texto escrito que, por ser meu amigo, o Capitão Picão de Abreu, tentou convencer-me a não juntar aos autos, interrompendo até a audição para irmos “beber uns copos”. Teve, no entanto de aceitar juntar ao auto de declarações, que a seguir se reproduz:

13 JUL74

“Declarou o arguido que:

- julga que se para se estabelecer o escrito incriminado constitui ou não matéria passível de estar inclusa no dever 4 do RDM com referência no n.º 2 do art.º 6 do Cap. II do EOE, se torna necessário analizar criteriosamente a sua forma e o seu conteúdo,

- que, nesta ordem de ideias, considera que a missiva por ele enviada ao Sr. Director do jornal “Expresso” não contém, de forma alguma, matéria susceptível de se enquadrar no referido artigo do Estatuto, porquanto refere apenas factos facilmente comprováveis, muito anteriores à sua incorporação no Exército, ocorridos na altura em que dirigiu um jornal posto em causa num artigo contendo afirmações falsas, que ele tinha a obrigação moral de desmentir, respondendo, para esclarecer a opinião pública sujeita a uma informação unilateral.

- que, nesse esclarecimento afectuado à opinião pública, tratava de assuntos relativos às pretensas ligações do jornal “Vanguarda”, que dirigiu, ou seja de assuntos internos de administração jornalística, e não de assuntos relativos à política interna ou exterior da Nação, ou que respeitassem à defesa nacional, pelo que considera a matéria de facto não carecer de prévia autorização do titular da pasta do Exército.

- que, a ser porém considerado, embora na sua opinião indevidamente, tal esclarecimento como um assunto de política interna, externa ou de defesa nacional, teria usado, na circunstância, da liberdade de expressão de pensamento cujo garantir se encontra consignada na Constituição Política e proclamada na Declaração Universal dos Direitos do Homem.

- que essa liberdade de expressão tem sido amplamente usada, a partir de 25 de Abril de 1974, para, na Província Ultramarina de Moçambique, se fazer a apologia do movimento terrorista denominado de Frente Libertação de Moçambique, na rádio, na imprensa, e em comícios e manifestações e, até, numa circular interna do chamado Movimento das Forças Armadas.

- que, na circular acima referida, se afirmava a necessidade de reconhecer urgentemente a “justa luta” (sic) que teria sido desencadeada pelos chamados movimentos de libertação.

- que o movimento terrorista intitulado da Frente de Libertação de Moçambique tem sido ultimamente apresentado, no Centro de Instrução de Grupos Especiais, às praças africanas, em palestras e conversas; por vários graduados, deixando supor que tal facto se integra numa orientação superior, como provável governo futuro de Moçambique, de que hão-se ser depois soldados, e que tais palestras se realizam em simultaneidade com os ataques e emboscadas que continuam a ser perpetrados pelos bandoleiros, e de que resultam mortos, feridos e mutilados nas nossas tropas e nas populações, situação que considera, pelo menos, contraditória.

- que a apregoada liberdade de expressão que o chamado Movimento das Forças Armadas diz ter restaurado, deu origem, na Metrópole, a que militares, uniformizados participassem em manifestações de ruas e comícios políticos, contra o disposto nas ordens e regulamentos militares, factos bem mais graves do que o escrito produzido, e isso sem que qualquer medida disciplinar tenha sido tomada contra os mesmos.

- que, a verificar-se desejo de incriminar o escrito base deste processo de averiguações, pode concluir-se que se trata de uma perseguição política, visto que parece haver dois pesos e duas medidas para julgar os factos conforme os seus autores se situem no leque político.

- que se reserva o direito de, ulteriormente, prestar mais declarações sobre este assunto.

- que, do ponto de vista jurídico, das duas uma: ou o escrito incriminado não contém matéria política e, neste caso, não pode constituir motivo ou pretexto para uma punição, ou então, pela ideologia expressa, esse escrito representa um crime político e, colocado perante essa hipótese, afirma que tem sérias dúvidas se a jurisdição militar pode ter sob a sua alçada o caso, visto que, abolidos os tribunais especiais, os crimes de natureza política são do domínio do foro civil, que passou a ter competência exclusiva para os julgar.

- que não se encontra integrado no programa do Movimento das Forças Armadas e que continua a considerar Moçambique como parte integrante de Portugal, uno, indivisível e inalienável”

- E mais não disse.

Luís Fernandes

Cap. Mil. GEP

Estas declarações produzidas em auto de averiguações, enfureceram ainda mais o Cor. Pinto Ferreira que, por despacho de 25 de Julho de 1974, impôs-me a punição de cinco dias de prisão disciplinar, mas, curiosamente, não por ter escrito a tal carta que constituía a matéria de base do auto “mas por me ter permitido em Auto de Averiguações que me fora levantado, emitir afirmações que constituem crítica a directivas do Comandante (…) discutindo assim ordens superiores e manifestando, portanto, por escrito ideias prejudiciais à boa execução do serviço e atentatória da disciplina.”

Recebi, então, guia de marcha para o Quartel-General do Comando-Chefe e da Região Militar de Moçambique, em Nampula, onde viria a cumprir a minha punição, só podendo reclamar da mesma depois do seu cumprimento. Segui num avião dos Transportes Aéreos Militares para Nampula onde, feita a minha apresentação, instalei-me no Hotel Portugal que servia de Messe de Oficiais para os militares do Exército de patente igual ou superior a capitão. Foi lá que encontrei alojados vários amigos e entabulei relações de amizade com o Juiz Auditor do Tribunal Superior Militar de Moçambique, Dr. Sobral, nacionalista ferrenho, que fora leitor habitual do jornal “Agora” de Lisboa, onde dirigi em tempos a “Página de Juventude”. Acompanhado por este novo amigo tive o privilégio de jantar à mesa do Comandante-Chefe, Gen. Orlando Barbosa (por sinal antigo Chefe do Estado-Maior da Legião) e do Coronel tirocinado Sousa Meneses (por sinal antigo deputado da União Nacional, na Assembleia Nacional).

Durante a minha breve permanência no Hotel fui visitado pelo Capitão Miliciano dos serviços jurídicos, o advogado portuense Hugo Pinheiro Torres, que me ajudou a elaborar a reclamação que entreguei no Quartel-General, depois dos cinco dias de prisão disciplinar (no Hotel), e que a seguir se reproduz:

“EXMO SENHOR COMANDANTE DO CENTRO DE INSTRUÇÃO DE GRUPOS ESPECIAIS

Luis Manuel Fernandes Carasso, capitão miliciano n.º mec. 16199568, da CCS/CC, tendo sido punido, por despacho de V. Ex.ª de 25JUL74, em 5 (cinco) dias de prisão disciplinar, vem, ao abrigo dos artigos 141 e 142 do RDM, respeitosamente, reclamar dessa punição, pelos motivos seguintes:

– 1 –

Lê-se no texto da punição que foi imposta por o reclamante “se ter permitido, em auto de averiguações que lhe foi levantado produzir afirmações que constituem crítica a directivas emanadas do Comandante, em cumprimento da circ. 6768 – pª 18/2/74 de 27MAI74 do EMG das FA, discutindo assim ordens superiores a manifestando, portanto, por escrito, ideias prejudiciais à boa execução do serviço e atentatórias da disciplina”.

– 2 –

Ora, as afirmações que o reclamante fez foram-no em auto de averiguações, no qual estava a ser ouvido, nos termos do artº 130 do RDM e portanto no legítimo exercício do seu direito de defesa, no qual poderá livremente fazer as declarações que entender, sem que tal facto, sob pena de ver coartado esse mesmo direito, possa vir a ser punido.

– 3 –

Julga portanto o reclamante que, não podia, fossem quais fossem as afirmações feitas nesse momento, ter cometido ao produzi-las qualquer falta.

– 4 –

Acresce, por outro lado, que em nenhum local o RDM proíba que se critiquem directivas superiores e menos o faz no n.º 26 do artº 4.º

– 5 –

Criticar por si só, não implica imoderação na linguagem, discussão ou murmúrios de ordem de serviço ou menos falta de respeito.

– 6 –

Sendo, aliás, certo, que o reclamante não faz qualquer crítica às directivas superiores, mas simples e respeitosamente, emitiu acerca delas a sua opinião pessoal, ou melhor, o que honesta e intimamente sentia.

– 7 –

E fá-lo num processo de averiguações cujo conteúdo, em princípio, não deve ser divulgado e portanto, das suas declarações, de modo algum, poderia resultar desprestígio para os seus superiores ou obstáculo ao melhor cumprimento dessas directivas.

– 8 –

Mas não pode, parece ao reclamante, obrigar-se alguém a calar o que pensa, e muito menos, em processos onde lhe é facultado o direito de defesa e, precisamente por isso, onde lhe é dada a oportunidade de dizer o que entender conveniente para as mesmas.

– 9 –

Por outro lado, as declarações feitas pelo reclamante, ainda que consideradas como críticas às directivas superiores, de modo algum poderiam ser prejudiciais à boa execução do serviço ou à disciplina, na medida em que, repete-se, não foram feitas para serem conhecidas por mais ninguém que não fosse quem tivesse de decidir no processo de averiguações onde foram proferidas.

– 10 –

Portanto, julga o reclamante que também não foram infringidos os deveres nº 26 e 49 do artº 4.º do RDM.

Nestes termos, solicito de V. Exa a anulação da punição que lhe foi imposta.

Quartel em Nampula, 30 de Julho de 1974

Luís Fernandes

Capitão Miliciano

Esta reclamação, no ambiente revolucionário em que estava mergulhada a Província, não tinha, porém, qualquer hipótese de ser atendida. O General Orlando Barbosa, para salvaguardar a minha segurança, deu por finda a minha comissão, que entretanto já tinha acabado, e mandou passar-me guia de marcha para Lisboa. Ao embarcar num voo dos Transportes Aéreos Militares de regresso à Metrópole, não deixava de presumir que, ao chegar ao aeroporto militar de Figo Maduro teria o COPCON. à minha espera. No entanto, fiz a minha apresentação formal aos militares destacados do Depósito Geral de Adidos que me forneceram os documentos de licença de trinta dias a que tinha direito no final da minha comissão, passando automaticamente à situação de disponibilidade no seu termo, com data de 8 de Setembro de 1974.

Quem estava realmente à minha espera, fora das instalações militares, eram os meus camaradas da F.A.C. ainda em liberdade José Rebordão, António Rodrigues, e também o Rodrigo Emílio, para casa de quem nos dirigimos. No dia seguinte fui a minha casa, onde só estava a minha querida Ama, Catarina, que se dedicou a mim desde o meu nascimento até à sua morte e que considerava como um verdadeiro Anjo da Guarda. Os meus Pais tinham-se refugiado nas Caldas da Rainha, onde a minha Mãe costumava todos os anos, durante o Verão, fazer tratamento no Hospital Termal. Aí os encontrei absolutamente siderados pelo vendaval esquerdista que ameaçava os próprios fundamentos da sociedade portuguesa. Andava sempre fardado, para despistar, porque ninguém se atreveria então a interceptar um capitão do Exército presumivelmente do M.F.A.. Fui à praia de São Martinho do Porto, situada a poucos quilómetros, onde reencontrei o Dr. Elmano Alves, que fora por altura do 25 de Abril deportado para Cabo Verde, mas que havia sido restituído à liberdade algum tempo depois. Não imaginava sequer que voltaria a ser preso em 28 de Setembro de 1974 e que só seria solto em Janeiro de 1976.

De regresso a Lisboa, enquanto os meus Pais continuavam nas Caldas da Rainha, restabeleci o contacto com o General Kaúlza de Arriaga, que fora passado à reserva compulsivamente, pelo M.F.A., conjuntamente com a grande maioria dos oficiais generais do Exército em serviço activo em Abril de 1974. Também fora “saneado revolucionariamente” da presidência da Junta de Energia Nuclear. O General não abandonara, porém, o combate e à sua vontade de organizar um contra-golpe, juntou-se a vontade de muitos oficiais e militantes nacionalista que acreditavam ainda possível reverter a situação.

No planeamento de uma acção militar que estava a ser preparada para eclodir simultaneamente em Lisboa, Luanda e Lourenço Marques, estávamos reunidos com o empresário António Champalimaud na sua casa da Lapa, o General Kaúlza de Arriaga, o Tenente-Coronel Comando Gilberto Santos e Castro e eu, quando um dos filhos do dono da casa bateu à porta do gabinete, para nos dizer que a R.T.P. estava a transmitir a notícia que a população de Lourenço Marques revoltada com a perspectiva de Moçambique ser entregue à Frelimo, havia ocupado o Rádio Clube e desfilava com bandeiras portuguesas por todas as ruas da cidade. Este acontecimento singular apanhou-nos a todos desprevenidos porquanto se tratava efectivamente de algo não previsto nem planeado e que punha em risco, por antecipação, um movimento que estávamos a planear mas que deveria surgir sincronizadamente em Lisboa, Luanda e Lourenço Marques só no final do mês.

Dado, porém, que o movimento espontâneo surgido em Lourenço Marques avançava e que, para grande preocupação do general Costa Gomes, parecia estender-se a outras cidade importantes da Província, teríamos claramente de apoiar in loco o seu desenvolvimento. António Champalimaud pediu então ao General Kaúlza de Arriaga que ligasse para Luanda, onde se encontrava na altura o Coronel Paraquedista Costa Campos para lhe determinar a sua deslocação imediata para a costa do Índico. Isso dito por palavras veladas porque já era uma imprudência efectuar essa ligação telefónica a partir de um número que poderia estar sob escuta. Quanto a mim ficou acordado que seguiria no dia seguinte num voo regular da T.A.P. para Luanda onde o Dr. Raposo de Magalhães, director bancário da absoluta confiança de António Champalimaud, me aguardaria no aeroporto e providenciaria para que um táxi-aéreo me levasse a Lourenço Marques.

Sem poder sequer despedir-me dos meus Pais, a não ser por telefone, segui para Luanda, evitando o controlo da Guarda Fiscal graças a um camarada meu da F.A.C., António Rodrigues, funcionário da T.A.P, que me levou, através da pista, directamente para o avião. Iria então iniciar-se para mim uma nova e perigosa aventura na África Portuguesa.

NOVOS COMBATES POR PORTUGAL EM ÁFRICA

Ao desembarcar em Luanda, onde os bons ofícios do Dr. João Raposo de Magalhães evitaram a passagem pelo corredor de controlo das autoridades, dirigi-me ao Hotel Continental, onde fiquei alojado no quarto 104. Era um velho e confortável hotel que conservada todo o encanto colonial da primeira metade do século vinte. Reunimo-nos, logo a seguir à minha instalação na sede local do Banco Pinto & Sotto Mayor, dirigido pelo Dr. Raposo de Magalhães, com o director do Centro de Informação e Turismo, Dr. Fernando Amaro Monteiro, conceituado especialista de política ultramarina. Soubemos que entretanto, após ter recebido a mensagem do General Kaúlza de Arriaga, o Coronel Costa Campos, em vez de seguir para Moçambique, tinha voado para Lisboa, a fim de obter mais esclarecimentos sobre a estratégia a desenvolver. Nesta contingência teria de avançar sozinho para Lourenço Marques. Teria de aguardar que me disponibilizassem um táxi aéreo para efectuar a viagem clandestinamente, tanto mais que as linhas regulares tinham interrompidos os seus voos para a capital da Província de Moçambique. Desloquei-me à Pastelaria Versalhes, onde me encontrei com o Alferes Miliciano Rui Sommer de Andrade, colocado no Grafanil e meu camarada da F.A.C.. Regressado ao Hotel Continental também me reuni com o Alferes Miliciano Galvão, e seguidamente, na mansão do Dr. Francisco Sousa Machado, da Companhia Mineira do Lobito, com o Capitão Comando Aparício, que também fazia parte do nosso grupo de resistência e se dispunha a actuar em Angola. A população de Luanda seguia com entusiasmo e renovada esperança os acontecimentos de Lourenço Marques, estando na altura psicologicamente motivada para seguir o exemplo de Moçambique e “defenestrar” o alto-comissário do M.F.A., “almirante” Rosa Coutinho, tomando de assalto o Palácio do Governo

Entretanto, o Dr. Francisco de Sousa Machado tinha mobilizado um piloto profissional chamado Guimarães para a missão clandestina de me levar até Lourenço Marques. Embarcámos num pequeno avião de turismo e levantámos voo sem problemas a partir do aeroporto de Luanda. Tivemos de efectuar uma escala técnica no Luso para reabastecer de combustível o aparelho. Os guardas fiscais que estavam de serviço no local, sabendo perfeitamente do que se tratava, porque eles próprios acompanhavam os anseios da população de Lourenço Marques, desejaram-nos boa sorte e despediram-se com um sorriso rasgado.

Ao aterrar para reabastecer, já no crepúsculo, em Salisbúria, foi-nos dito pelas autoridades rodesianas que nos seria impossível prosseguir a nossa viagem porquanto tudo à volta do aeroporto de Lourenço Marques estava em chamas e que seria inviável qualquer tentativa de aterragem. Os acontecimentos na cidade tinham-se precipitado e a população negra dos subúrbios, incentivada por agentes subversivos da Frelimo, apoiados pelo M.F.A., tinham atacado os brancos, provocando inúmeras vítimas mortais entre os colonos, que viviam nas proximidades.

Não tivemos outro remédio senão desviar a nossa rota inicial para a África do Sul, onde aterrámos no aeroporto Ian Smut, situado entre Pretória e Joanesburgo. Aí fiquei aos cuidados das autoridades sul-africanas, enquanto o piloto Guimarães voltava para Angola.

Os sul-africanos instalaram-me num hotel junto do aeroporto, enquanto aguardaria a vinda dos elementos do BOSS (polícia de segurança do Estado) para um primeiro contacto. Apareceu-me então um sujeito que julguei ser sul-africano e não o reconheci porque estava equipado de uma grande cabeleira postiça, a quem comecei a falar em inglês, com muito custo porque, seguindo o preceito queirosiano, falava patrioticamente mal inglês. De tal modo que o meu interlocutor, já não conseguindo evitar o riso, tirou a peruca e reconheci então o meu amigo e camarada da F.A.C. António Gomes Lopes, Inspector da D.G.S. em Lourenço Marques, que evitara a tempo a sua captura pelo M.F.A. refugiando-se na África do Sul. Trabalhava agora para o BOSS, com o qual antes do 25 de Abril já colaborava no âmbito da Operação Alcora que reunia os serviços de inteligência de Portugal, África do Sul e Rodésia.

Face às informações do que dispunha, Gomes Lopes descreveu-me o panorama da situação que se vivia em Moçambique. Os ocupantes do Rádio Clube tinham sido obrigados a retirar e tinham-se juntado a muitos dos habitantes de Lourenço Marques que fugiam de automóvel, camioneta e outros meios de transporte em direcção da África do Sul, que abrira as suas fronteira aos refugiados. Muitos outros vinham de comboio. No aeroporto da cidade, ocupado por militares portugueses enfeudados ao M.F.A., aterravam aviões chegados do Norte da Província, carregados de guerrilheiros da Frelimo, colocados à ordem de uma Comissão Militar Mista, de oficiais do M.F.A. e responsáveis da Frelimo, conforme acordado em Lusaca. Mais tarde chegariam ao porto navios da Marinha de Guerra Portuguesa trazendo da Tanzânia guerrilheiros da Frelimo, porque eram escassos aqueles que se encontravam no território português de Moçambique.

Não havia dúvidas que tínhamos perdido esta primeira batalha de resistência portuguesa. Mas a luta continuava e nós não iriamos desistir. Era preciso agora acolher os refugiados, que vinham revoltados e desmoralizados, incentivá-los e contar espingardas.

Tivemos, a seguir, uma reunião de trabalho na sede central do BOSS, em que estava presente, além dos generais sul-africanos, o director António Vaz que fora o responsável máximo da D.G.S. em Moçambique e o Sub-Inspector Artur Craveiro Lopes, que estava colocado em Angola e se tinha também refugiado na África do Sul. Os sul-africanos pareciam mais interessados em obter informações sobre o que se passava em Lisboa do que fazerem-me perguntas sobre a situação em Moçambique. Um brigadeiro da polícia sul-africana com um bigode muito britânico e a fumar cachimbo, interrogava-me insistentemente sobre as unidades militares com as quais se poderia eventualmente contar em Lisboa, parecendo ainda acalentar esperanças na viabilidade de um contra-golpe conduzido pelo General Kaúlza de Arriaga.

Quando saímos da sede do BOSS, encontrei-me num hotel de Pretória com o Inspector-Adjunto Gilberto Campos que havia sido o responsável da D.G.S. para todo o distrito de Manica e Sofala, e se tinha escapado da Cadeia de Lourenço Marques antes do 7 de Setembro. Estava acompanhado pelo Inspector Sabino que era o responsável do distrito de Tete e, alertado a tempo, se havia refugiado na Rodésia. Aproveitei para telefonar ao General Kaúlza de Arriaga para lhe dizer, sem muitos comentários porque suspeitava que o seu telefone pudesse estar sob escuta, que me encontrava na África do Sul, que não tinha desistido e me encontrava disposto a aproveitar todas as minhas oportunidades de intervenção. Liguei também aos meus Pais, que tinham regressado a Lisboa, para lhes dizer que estava na África do Sul e me encontrava bem de saúde.

Antes de me deslocar a Joanesburgo, onde tinha chegado o maior grupo de refugiados de Lourenço Marques fui encontrar-me no Hotel Holiday Inn do aeroporto Ian Smut, com Carlos Ribeiro, um dos colaboradores do Eng. Jorge Jardim, que informou que ele conseguiu eclipsar-se da Embaixada do Malawi em Lisboa, onde se refugiou quando fora emitido um mandado de captura contra ele, por iniciativa do general Costa Gomes. Muito brevemente chegaria à África do Sul para se juntar a nós. Desloquei-me a seguir a Nelspruit onde se achava a estação de caminho de ferro junto à fronteira entre a África do Sul e Moçambique. Aí encontrei, na casa onde se refugiara, o Professor Carlos Eduardo de Soveral, director da Faculdade de Letras da Universidade de Lourenço Marques, e antigo Subsecretário de Estado da Educação Nacional num governo de Salazar. Aguardávamos a chegada à estação de Nelspruit do Dr. Gonçalo de Mesquitela e da sua família, tendo então tido conhecimento da triste notícia que o seu filho mais velho, Gonçalo Nuno, assistente da Faculdade de Engenharia e um dos mais importantes protagonistas do assalto ao Rádio Clube havia sido detido pelo M.F.A. na estrada para a África do Sul e se encontrava preso na antiga cadeia da D.G.S. na Machava com outros activistas.

Já em Joanesburgo, fomos assistir a uma importante reunião, na moradia do Dr. Artur Santos Dias, um médico que havia combatido em Angola e devolvido a suas condecorações como forma de protesto pelo 25 de Abril.

Aí encontrei Carlos Veiga, meu camarada da F.A.C., que pertencera aos Serviços Especiais de Informação e Intervenção, com quem partilhava um apartamento na Beira. Nessa reunião participaram, além do próprio Jorge Jardim, os principais protagonistas dessa magnífica aventura que fora a revolta de Lourenço Marques, o Segundo-Tenente Fuzileiro Especial António Amaro Monteiro, Armindo Malosso, Manuel Gomes dos Santos, António Santos Gil, Alferes José Reis, Engenheiro Pires de Carvalho, Engenheiro Vasco Ferreira Pinto, António Pereira Cabral, Sara Cabral, Augusto Pereira Cabral, o Dr. João Pinto Fernandes, meu camarada da F.A.C. e anterior comissário provincial da Mocidade Portuguesa em Moçambique, o Alferes piloto-aviador Ribeiro e ainda o Inspector da D.G.S. Poço, que bem podia ter evitado de ser preso se tivesse dado o devido crédito ao meu alerta.

Mais do que chorar sobre o leite derramado, convinha nestas difíceis circunstâncias adoptar medidas concretas para iniciar novas ofensivas. Convinha, antes de tudo, saber com quem podíamos contar. Tratava-se de contar espingardas. Uns diziam poder contar com setenta homens seguros. Outros diziam que garantiam uma centena de voluntários de confiança. Outros ainda comprometiam-se a disponibilizar cinquenta antigos combatentes e membros da Organização Provincial de Voluntários e Defesa Civil (O.P.V.D.E.) com experiência operacional. Tudo somado seria um efectivo muito razoável para iniciar as operações de luta armada contra a Frelimo o M.F.A. coligados. Só que muito dos supostos aderentes ao movimento de resistência armada que nos propunhamos organizar eram os mesmos que constavam das declarações de vários intervenientes. Haveria certamente duplicações nas contagens, o que reduzia significativamente o número real dos combatentes operacionais. Acrescia a esta circunstância que estavam dispersos. Muitos já se encontravam na África do Sul mas outros ainda estariam em Moçambique. Era necessário e urgente providenciar o seu reagrupamento, mentalizá-los e, era necessário preparar campos de treino e ainda estabelecer a ligação com aqueles que ainda estivessem do outro lado da fronteira. Havia, pois, muito trabalho a fazer para se poder criar um movimento semelhante à O.A.S. francesa. Já antes do 7 de Setembro, Sérgio Cardiga e outros tinham esboçado a criação de uma organização secreta, com antigos combatentes e jovens activistas, os chamados “Dragões da Morte”, mas o insucesso do movimento iniciado com a tomada do Rádio Clube tinha alterado drasticamente a situação no terreno, com a chegada maciça nos furgões do M.F.A de centenas ou talvez milhares de guerrilheiros da Frelimo a uma Lourenço Marques mergulhada no medo.

Feito o ponto de situação, Carlos Veiga e eu deslocámo-nos no dia seguinte à Agência Albatroz, que era propriedade de dois emigrantes portugueses, José e Manuel Ramos, onde era canalizado o apoio aos milhares de portugueses que afluíam a Joanesburgo e recebiam ajuda subsidiária dos emigrantes portugueses, que formavam uma importante colónia na África do Sul e cujos dirigentes se tinham agrupado na “Academia do Bacalhau”. A própria população sul-africana contribuía generosamente para o auxílio aos refugiados que tinham sido obrigados a abandonar tudo o que possuíam em Moçambique.

Seguidamente fomos ter com o Tenente-Coronel Gilberto Santos e Castro, que se tinha instalado no Hotel Carlton. Aí nos encontramos também com António Silva e João Cardoso. Gilberto Santos e Castro, meu admirado amigo, que fora o fundador dos Comandos, e era também meu camarada da F.A.C., disse logo que não me podia dar instruções porquanto segundo o planeamento anteriormente previsto, a sua missão consistia em comandar as operações em Angola e que o teatro de operações de Moçambique estava atribuído ao meu amigo e antigo comandante-geral, o Coronel Paraquedista Sigfredo Costa Campos. Acontece que não tinha contacto com ele, não sabia onde se encontrava, e não estava disposto a ficar parado na África do Sul. Tomei então a decisão de me deslocar à Rodésia, através da qual supunha mais fácil a minha penetração em Moçambique. Era uma operação arriscada, que me foi paternalmente desaconselhada por Santos e Castro, como meu amigo de longa data, mas que não se achava com autoridade para me impedir de levar por diante.

Deslocámo-nos mais tarde, Carlos Veiga e eu, ao Hotel President, um estabelecimento de luxo onde o Eng. Jorge Jardim se tinha alojado numa suite, acompanhado da sua amante, uma bela mestiça moçambicana, Palmira Barral, que já ganhara o título de Miss Moçambique. Ela fazia-se discreta mas a sua presença em Joanesburgo com Jorge Jardim não deixava de escandalizar os dirigentes sul-africanos mais rigorosos na defesa da sua política de segregação racial. Tivemos uma longa entrevista com o antigo “agente secreto de Salazar”. Não se convencera ainda, ou não dava mostras disso, que as suas manobras maquiavélicas junto de dirigentes negros não tinham obtidos os resultados que esperava. O facto é que se fora bem recebido pelo Presidente Kaunda da Zâmbia, isso não significava que o tivesse conquistado para a nossa causa nem que conseguira influenciá-lo, como havia domado o Presidente Banda do Malawi. Se mais tarde haveria de aliar-se ao Presidente Omar Bonga e criar o Banco Intercontinental do Gabão, isso queria dizer que esses potentados negros só lhe abriam as portas porque esperavam de algum modo lucrar com isso. Não era pelos seus bonitos olhos. Nem todos os pretos são estúpidos e esses dirigentes, que eram certamente limitados por atavismos ancestrais, não deixavam de ser manhosos.

Entretanto chegara a Joanesburgo, o Dr. António Costa Pinto, homem de confiança de António Champalimaud que dirigia em Lourenço Marques a delegação do Banco Pinto & Sottomayor, e confiou à minha guarda o seu filho Alexandre (Sacha) enquanto ia ao Brasil preparar a instalação da sua família. Era um excelente moço que se afeiçoou muito a mim mas que dias mais tarde tive de pedir ao Tem. Cor. Santos e Castro que tomassem conta dele durante a ausência do pai. Tinha de seguir rapidamente para Salisbúria e, a partir da Rodésia, entrar em Moçambique clandestinamente, para me poder inteirar in loco da situação em Lourenço Marques e tentar tudo o que fosse possível para organizar a fuga de Gonçalo Nuno de Mesquitela e outros camaradas presos na Machava.

Embarquei num voo da SAA para Salisbúria. Foram despedir-se de mim ao aeroporto Carlos Veiga, Santos e Castro, Alexandre Costa Pinto, esse muito comovido, e o Capitão Rui Leal Marques, que haveria, pouco tempo depois, de seguir as minhas pisadas, de modo tão imprudente quanto o meu.

Aguardava-me, em Salisbúria, Arguiroula Sanianos, uma grande amiga de origem grega cujo pai, Comandante Sanianos, era o Cônsul da Grécia na Beira, onde residia com a família, e simultaneamente cônsul em Salisbúria onde tinha outra residência. Fiquei alojado em casa dela enquanto procurava maneira de me introduzir em Moçambique. A Salisbúria tinham também chegado refugiados portugueses, entre os quais alguns jovens dos Comandos que, revoltados com a entrega de Moçambique aos terrorista da Frelimo, haviam optado por desertar e estavam dispostos a ingressar nas nossas fileiras. No Hotel Courterney, avistei-me com o Inspector-Adjunto da D.G.S. Alves Cardoso, que fora capitão miliciano dos Comandos em Angola, e condecorado pelos seus feitos em combate com a mais alta condecoração militar, a Ordem da Torre e Espada. Previa então juntar-se ao Ten. Cor. Santos e Castro nos combates que os esperavam em Angola. No restaurante Moçambique ainda encontrei o Capitão Miliciano dos Comandos Valdemar com outros camaradas, dispostos também a continuar o bom combate.

Dada a desorganização reinante em Moçambique, decidi arriscar e apanhar um voo da companhia Air Malawi para a cidade da Beira. A viagem não foi muito confortável porque se tratava de um velho avião, que já tinha conhecido melhores dias e que, ainda por cima, teve de enfrentar uma tempestade tropical. Tudo tremia e vibrava no avião mas as hospedeiras demonstravam uma calma e serenidade contagiantes.

Aterrámos sem mais percalços, e na confusão de desembarque apanhei rapidamente um táxi para a cidade. Alojei-me no Hotel Embaixador, onde as filhas do Engenheiro Jorge Jardim se tinham instalado depois de abandonar a sua casa junto à praia. Aí encontrei casualmente um velho amigo, camarada de outras aventuras políticas, Ângelo César, a quem tinha visitado em Mafra para assistir ao seu juramento de bandeira e dos meus amigos e camaradas da F.A.C. Jaime Nogueira Pinto e Fernando Sousa Machado, então cadetes da Escola Prática de Infantaria. Ângelo César tinha frequentado o Curso de Comandantes de Companhia e agora, capitão miliciano, comandava uma companhia aquartelada numa pequena localidade perto da fronteira da Rodésia. Disse-lhe que me propunha organizar a resistência em Moçambique e perguntei-lhe se podia contar com ele. Disse-me logo que já não havia nada a fazer, tínhamos perdido, e que agora era preciso apoiar o P.P.D. para fazer barreira aos comunistas. Fiquei estarrecido. Tinha-me confrontado com o primeiro “ex-fascista” do nosso grupo. Por medida de segurança, mudei de poiso, não fosse ele denunciar-me ao M.F.A…

Procurando restabelecer o contacto com o pessoal dos Grupos Especiais Paraquedistas, mas não podendo obviamente aproximar-me do quartel do Dondo, esperei a primeira oportunidade que surgisse. Encontrei-me com alguns oficiais milicianos dos G.E.P.`s que haviam organizado na Beira um jantar de confraternização para celebrar o fim de sua comissão e o próximo regresso à Metrópole. Apareci inopinadamente o que surpreendeu todos porque me julgavam na Metrópole. Subentenderam, porém, porque tinha regressado. Convivi alegremente com estes meus camaradas de armas e falei-lhes abertamente das minhas intenções. Entre eles estava, porém, um oficial do Grupos Especiais (que não era paraquedista) e que não sabíamos ser afecto ao M.F.A. Logo no dia seguinte informou o comandante interino da Unidade, o recém-promovido a tenente-coronel Luciano Alexandrino da minha presença clandestina na Beira. Assumindo uma atitude inadmissível, o meu antigo camarada de armas fez entregar à Polícia Militar uma fotografia minha do arquivo do Quartel e logo a seguir foram organizadas patrulhas motorizadas da Polícia Militar Portuguesa agregando guerrilheiros da Frelimo para me caçar.

Ignorando a situação, estava a assistir, no Cinema Nacional, no centro da Beira, a um filme que então corria, era “A Laranja Mecânica”. Quando saí, no fim do mesmo, no meio da multidão de espectadores, muitos deles jovens, deparei com um movimento inusitado de viaturas militares, mas os que me procuravam não me discerniram entre os jovens com os quais me confundia, vestido com uma camisola desportiva e umas calças de ganga. Veio então precipitadamente ter comigo um furriel miliciano que pertencia aos Serviços Especiais de Informação e Intervenção, para me alertar do perigo que corria, visto que esse aparato todo ter por objectivo a minha captura. Levou-me para casa dele, que era uma vivenda isolada perto da praia, onde estaria em segurança. Foi buscar a minha mala, que tinha deixado no meu anterior refúgio e providenciou a organização da minha fuga para a Rodésia.

Entretanto, aguardando fechado em casa, sentia-me encurralado. Em dada altura, ouvindo um ruído de uma viatura, fui espreitar à janela. Era um jeep da Polícia Militar que estava a patrulhar, passaram em frente da casa e seguiram o seu caminho. Reflectia sobre a situação em que nos encontrávamos. Os meus camaradas oficiais e furriéis milicianos terminavam a sua comissão e embarcavam para a Metrópole. Os nossos soldados negros eram desarmados, desmobilizados e enviados para as suas casas, onde brevemente iriam ser vítimas de uma repressão sangrenta por parte dos guerrilheiros da Frelimo que haviam combatido denodamente, e agora eram os novos donos de Moçambique. Era uma vergonha, um verdadeiro crime de traição, perpetrado pelos oficiais do M.F.A. mancomunados com os terroristas.

Finalmente o meu amigo, que assumira o risco de me ajudar apareceu com um plano de fuga já elaborado. Levar-me-ia de carro até às instalações anexas ao aeroporto onde, escondido perto de um hangar situado junto a uma pista, aguardaria que uma avioneta pilotada por um camarada, com o plano de voo autorizado para Untali, posto fronteiriço da Rodésia, se aproximaria do local onde me encontrava, com a porta aberta. Eu saltaria para dentro do aparelho que levantaria logo voo. Assim aconteceu como o previsto e, rodas no ar, voámos para a Rodésia.

Ao aterrar em Untali, apresentei-me às autoridades policiais rodesianas que ficaram em informar Salisbúria da minha chegada. Fiquei hospedado no Hotel Cecil Rhodes, enquanto da capital não enviassem uma equipa da Special Branch (polícia de segurança e informações) para me ir buscar de carro a Untali.

O Hotel Cecil Rhodes era um venerável estabelecimento de estilo colonial inglês que respeitava escrupulosamente as tradições britânicas do chá das cinco e dos jantares de fato e gravata. Pouco tempo lá permaneci porquanto no dia seguinte vieram buscar-me para me levar à capital. Conversei durante a viagem com os elementos da Special Branch que estavam muito interessados em saber pormenores do que se passava do outro lado da fronteira, porquanto a presença da Frelimo e o seu apoio declarado aos terroristas negros que actuavam na Rodésia representava um grave perigo para a sobrevivência da comunidade branca.

De regresso a Salisbúria, voltei a encontrar-me em casa de Arguiroula Sanianos. Mas não consegui ficar parado, sem fazer nada. Decidi fazer nova tentativa de penetração em Moçambique com o objectivo de alcançar Lourenço Marques. Desta vez não poderia ser através da Beira, onde era procurado. Tinha de engendrar outra estratégia.

NEM SEMPRE A SORTE SORRI AOS AUDAZES

De regresso a Untali, instalado no Hotel Cecil Rhodes, estabeleci contacto com um dos responsáveis da Guarda Fiscal, o Senhor Ferreira, que controlava as entradas em território português de Moçambique. Quem me facultou o contacto foi Sérgio Azevedo, ligado ao nosso movimento de resistência. Ficou acordado que iria atravessar a fronteira utilizando o comboio que ligava a Rodésia à cidade da Beira. No controlo de passaportes a Guarda Fiscal carimbaria o meu. Juntamente aos guardas fiscais portugueses encontravam-se uns guerrilheiros da Frelimo andrajosos, armados de kalashs, mas que nem sequer falavam português e viam os documentos ao contrário, sendo obviamente analfabetos. Tudo se passou sem sobressaltos e segui viagem para Vila Pery, capital do distrito com o mesmo nome. Sabia que aí se encontrava um amigo e camarada que fora meu adjunto no comando do Destacamento G.E.P. em Mugari, no chamado Istmo de Tete. Tratava-se do Tenente Miliciano Pestana Serra, que finda a sua comissão antes do 25 de Abril, tinha passado à disponibilidade em Moçambique e, tendo aí casado, havia adquirido uma fazenda e se dedicava à agricultura naquela zona fronteiriça da Rodésia, dotada de um micro-clima privilegiado, que lhe permitiu criar uma modelar exploração agrícola.

Era ele quem me iria proporcionar a oportunidade de alcançar Lourenço Marques em segurança. Continuava a fretar camiões de grande porte para enviar para a capital da Província frescos e outros mantimentos. Eu iria supostamente servir de ajudante do motorista numa dessas viaturas. Posto o plano em execução, seguimos por estradas asfaltadas percorrendo a longa distância que nos separava de Lourenço Marques. Tivemos de parar várias vezes em postos de controlo da Frelimo, ao longo do caminho, mas os guerrilheiros apenas verificavam que se tratava de transporte de mercadoria e deixavam-nos passar sem perguntar sequer pelos nossos documentos pessoais ou os documentos de carga que transportávamos.

Não havia qualquer movimento de viaturas e quando a estrada passou perto do Oceano Índico, parámos para um mergulho nas águas tépidas de praias desertas. Não encontrámos à entrada da cidade nenhuma barreira que condicionasse o nosso acesso, e deste modo entrei na cidade. Fui bater à porta de vários amigos mas, infelizmente para mim, tinham todos fugido. Não tendo aonde ficar tive de optar por um hotel. Sabia que o Hotel Cardoso tinha sido escolhido para acolher os dirigentes da Frelimo que acompanhavam os membros do Governo de Transição e da Comissão Militar Mista. Era pois um sítio que deveria evitar. Restava-me o Hotel Polana, onde já tinha estado várias vezes, tratando-se de um estabelecimento de luxo não teria lá pretos, excluindo os empregados. Foi nesse hotel que me instalei, inscrevendo-me como “director comercial” na ficha que preenchi na recepção. Era um magnífico hotel, com uma ampla piscina e instalações com o maior requinte espectável na velha África Colonial. Era muito apreciado pelos numerosos turistas estrangeiros que o frequentavam, principalmente sul-africanos. Também os seus salões serviam de ponto de encontro e local de festas para a melhor sociedade de Lourenço Marques. Quando me instalei desta vez eram poucos os turistas e o escol da sociedade laurentina também primava pela sua ausência, tendo quase todos os seus membros procurado refúgio na África do Sul. Não encontrei lá ninguém conhecido. Eram poucos os clientes.

Após um lauto jantar junto à piscina, recolhi ao meu quarto, amplo e dotado de uma moderna casa de banho. Recuperado do nervosismo da longa viagem, deitei-me e mergulhei num sono reparador. No dia seguinte e porque não estava em Lourenço Marques por motivos turísticos, consegui estabelecer o contacto com a mulher do meu amigo Gonçalo Nuno de Mesquitela, Gini, que veio ter comigo a uma pastelaria do centro. Vinha acompanhada do padrasto, Odorico Rodrigues. Confirmou-me que o seu marido estava preso na Machava e que lá se encontrava também detido Raúl Satúrio Pires, filho de um importante dirigente do Estado Novo, e mais alguns jovens que com eles haviam participado na aventura do Rádio Clube. Ela estava em contacto com oficiais do Comando Territorial Sul para tentar obter a sua libertação e disse-lhe que não havia outra solução que não fosse organizar a sua fuga e dos outros detidos. A cadeia da Machava estava ocupada por uma companhia de infantaria recém-chegada da Metrópole, comandada obviamente por um capitão do M.F.A.. Mas eram soldados sem a menor experiência de combate, coadjuvados por uns tantos jovens guerrilheiros da Frelimo incultos e sem prática operacional. Era preciso organizar um golpe de mão com pessoal disposto a tudo.

Iria tentar localizar elementos que pudessem realizar essa tarefa e depois fugir para a África do Sul, onde estava garantido o bom acolhimento.

Comecei então à procura de antigos combatentes que possivelmente ainda se encontrariam na cidade. Por sorte encontrei o Furriel Miliciano Jorge Fonseca que me permitiu contactar com outros. Ia prosseguindo os meus contactos e procurando gizar um plano.

Tive uma reunião com o Alferes Miliciano G.E.P. Victor Cerqueira, natural de Lourenço Marques, que fora meu subordinado e me sucedera no comando do G.E.P. 005. Valoroso combatente, organizador nato, fora vítima de uma armadilha que, mercê das circunstâncias geradas pela traição dos capitães de Abril, lhe ia custando a vida. Terá recebido ordens do comando da sua Unidade, por altura de um falso “cessar-fogo”, aceitar a visita ao seu posto de guerrilheiros da Frelimo e dirigindo-se a eles desarmado fora amarrado pelos terroristas que o tentaram raptar. Só escapou à morte porque os seus soldados, apercebendo-se do que estava a acontecer abriram fogo para o cobrir. Atirou-se ao chão, evitando assim a rajada que os turras disparavam contra ele. Solto pelos seus fiéis subordinados, protestou em vão junto dos seus superiores afectos ao M.F.A.. Actos de traição desta natureza eram usuais nos terroristas. Assim pouco tempo depois de toda uma companhia do Exército que estava aquartelada em Omar junto ao rio Rovuma que demarcava a fronteira com a Tanzânia, fora capturada pelo Frelimo proveniente desse país estrangeiro, que comunicava por megafone que a guerra tinha acabado e que os soldados se juntassem sem armas na pista de aviação para confraternizar. Foram cercados por numerosos guerrilheiros em armas que os capturaram e levaram, contra a sua vontade obviamente, para o campo de Nachingwea, em território tanzaniano. As autoridades portuguesas limitaram-se a emitir um protesto formal contra a “batota” dos “camaradas” da Frelimo.

Por feliz coincidência encontravam-se aquartelados no parque de campismo situado perto do Hotel Polana duas companhias de comandos metropolitanos, a 2043 e a 2045 que tinham tido um brilhante desempenho operacional na área dependente do Comando Operacional das Forças de Intervenção, no chamado Istmo de Tete. Tivera então oportunidade de colaborar com essas companhias e criar fortes laços de amizade com alguns dos seus oficiais. Tratava-se agora de incentivá-los, o que não se revelava difícil porquanto tinham arriscado a sua vida em perigosas missões contra a guerrilha e tinham até perdido amigos e camaradas na luta contra os turras. Ver o corolário dos seus esforços assim desbaratado e assistir ao triunfo dos seus inimigos, arvorados em “libertadores” por oficiais traidores, tinha-os posto num estado de excitação propício à manifestação dos seus sentimentos de revolta.

Propus-me convencer alguns dos elementos mais aguerridos e revoltados contra o M.F.A. e as prepotências dos guerrilheiros “vitoriosos” a preparar um golpe de mão contra a cadeia da Machava, mal guarnecida, para libertar os nossos presos e fugir para a África do Sul.

Almocei junto à piscina do Hotel Polana com o Alferes Miliciano Comando Pedro Folhadela, também ele antigo graduado da Mocidade Portuguesa, de quem me tornei muito amigo quando estivemos envolvidos em operações no mato. Era um valoroso combatente muito motivado e determinado.

Prosseguindo os meus contactos, decidi deslocar-me a Vila Luísa, já fora de Lourenço Marques, para contactar um fiel guarda-costa que tivera nos G.E.P., o 1.º cabo G.E.P. Suleiman, que estaria certamente em contacto com os outros camaradas naquela zona. Enquanto aguardo, à porta do hotel, uma viatura que me ia transportar, passaram por mim três alferes dos comandos, uniformizados, que me “bateram a pala”, saudando-me regularmente. Episódio que deve ter espantado o Monhé da recepção, pois estava inscrito nos registos do hotel como “director comercial”. Se as autoridades militares foram informadas do facto, não sei mas o certo é que na madrugada seguinte fui preso pela Polícia Militar tendo um pelotão irrompido pelo hotel onde estava alojada, para me capturar.

Foi na madrugada de 18 de Outubro de 1974. Encontrava-me a dormir no meu quarto quando por volta das três da manhã me telefonaram da recepção, dizendo que se encontrava à minha espera um camarada meu que tinha urgência em falar comigo. Vesti-me à pressa e abri a porta do quarto, tendo sido logo manietado por um sujeito à paisana, branco, que se encontrava escoltado por diversos soldados da Polícia Militar, também brancos, uniformizados e armados. Estes irromperam pelo meu quarto que revistaram, enquanto o sujeito à civil mostrava-me de relance um cartão azul que sabia corresponder ao cartão de identificação dos oficiais do Quadro Permanente do Exército. Feita a rusga, e não tendo encontrado nem armas nem explosivos, mandaram-me fazer a mala e acompanhá-los. Passando pela recepção, paguei a minha conta do hotel e entrei numa das várias viaturas da P.M. que estavam à porta.

Levado sob escolta militar para o Quartel-General do Comando Territorial do Sul, fui conduzido a uma vasta sala do edifício. Deparei com dois sujeitos: um sentado atrás de uma secretária, fardado, com galões de capitão, que se identificou como sendo o capitão Camilo; outro, anafado, branco, trajando civilmente, com uma balalaica de cor creme, enfeitada com um emblema ao peito, do tamanho de uma carica, estampado com o fácies simiesco de Samora Machel. Os soldados portugueses retiraram-se e, enquanto o capitão Camilo me mandava sentar numa cadeira à sua frente, colocaram-se à minha esquerda e à minha direita dois jovens guerrilheiros da Frelimo, andrajoso e sujos, apontando-me as suas kalashnikovs. Surpreendido com a sua presença, protestei, perguntando ao capitão Camilo se não tinha soldados nossos para me guardar e se era preciso que o Inimigo o fizesse. Replicou então o capitão Camilo: “Então você não leu o tratado (sic) de Lusaca? Eles agora são as nossas tropas.” E acrescentou com um sorriso sarcástico: “O Inimigo é você!” Ora, tinha passado à situação de disponibilidade em 8 de Setembro de 1974, o que significa que poucas semanas antes usava a mesma farda e os mesmos galões que o capitão Camilo, que havia entretanto feito a “redefinição do Inimigo” invertendo as posições; a Frelimo era agora NT (Nossas Tropas) e o In (Inimigo) era eu!

Os ventos “favoráveis” sopravam agora do Leste. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades… ao sabor dos “ventos da mudança”.

O capitão Camilo, satisfeito com o efeito da sua inesperada declaração, perante o meu olhar de espanto, folheou a minha agenda e revistou a minha carteira, fazendo-me diversas perguntas a que eu invariavelmente respondia: “não me lembro”. Concluiu, sempre com o mesmo sorriso sarcástico na face, que “eu comia demasiado queijo e que talvez a Frelimo conseguisse que eu recuperasse a memória…” Lá foi dizendo que o tratamento que podia esperar da Frelimo não seria exactamente aquele que a Declaração Universal dos Direitos do Homem preconizava.

Por isso, indignado, protestei com veemência e disse-lhe textualmente que “parecia impossível que um capitão do Exército Português pudesse entregar ao inimigo antigos camaradas de armas” e acrescentei que me mantinha nessa situação “sem terem, em termos jurídicos, encontrado a menor prova contra mim”. O capitão Camilo encolheu os ombros e disse displicentemente que, na presenta situação, “se não tinha provas, também não tinha dúvidas, pelo que, em termos revolucionários, faria de mim o que entendesse”.

Foi então que tentou intervir no interrogatório o tal indivíduo, gordo e careca, de balalaica e de Samora Machel ao peito que estava presente e não se tinha manifestado até então. Embora não tivesse declinado a sua identidade, reconheci-o como sendo o tristemente célebre Jacinto Veloso. O tal que roubara um avião T-6 da Força Aérea Portuguesa e com ele desertara para a Tanzânia. Disse-lhe peremptoriamente que não falava com desertores.

Dada a avançada hora, o interrogatório foi dado por findo e fui levado, com o mesmo aparato militar para a antiga cadeia da P.I.D.E. na Machava, transformada em quartel de uma companhia portuguesa recém-chegada da Metrópole e aquartelamento de um número indeterminado de guerrilheiros da Frelimo mal ataviado e indisciplinados. Vim a saber mais tarde que na sala de operações do Comando Territorial Sul ficou escrito em letras garrafais num painel “Capitão Fernandes aganfado”. Não conhecia o termo mas isso demonstra a importância que o M.F.A. tinha atribuído à minha captura.

À chegada à Machava, fui fechado numa cela que para além da porta de grades, tinha uma porta de madeira, pelo que não via o que se passava no corredor que dava acesso às outras celas. A luz eléctrica que era accionada do exterior estava permanentemente acesa e a janela que dava para o pátio da prisão estava vigiada por um guerrilheiro da Frelimo armado a quem tinham determinado esse posto de vigilância.

À hora do almoço, um sargento do Exército veio trazer-me numa bandeja a refeição confecionada do rancho da tropa. Fez-me a continência porque conhecia o meu posto e manifestou-me por meias palavras a sua simpatia. A alimentação era o rancho da tropa portuguesa aí aquartelada, “boa, abundante e bem confecionada” segundo as normas respeitadas nos relatórios dos Oficiais de Dia. Enquanto permaneci, em isolamento, os outros presos que circulavam livremente pelo corredor que dava acesso às suas celas que tinham as portas abertas, tratavam de comunicar comigo. Assim falei através de porta fechada com Gonçalo Nuno de Mesquitela, que em vão tentara libertar mas que não o tendo conseguido, estava com ele para compartilhar da mesma sorte.

Ainda estava eu sob o regime de isolamento, em 21 de Outubro, quando verifiquei um grande alvoroço na Machava, e ao longo desse dia, ouvia-se distintamente tiros de armas automáticas ao longe, e uma enorme agitação. Foi-me dito que as duas companhias de comandos (a 2043 e a 2045) se tinham defrontado a tiro com os guerrilheiros da Frelimo e que o Caniço (bairro negro periférico) onde se tinham refugiado os terroristas tinham entrado em ebulição e que os pretos tinham uma vez mais atacado os brancos que viviam e trabalhavam perto da cidade. Muitos foram selvaticamente chacinados. Sobrevoa um vento de destruição e de terror sobre Lourenço Marques. As duas companhias de comandos, desautorizadas pelos responsáveis militares condicionados pelo M.F.A. foram retiradas de Moçambique, reencaminhadas para Luanda e posteriormente, em Dezembro de 1974, deslocadas para o aeroporto de Figo Maduro, em Lisboa, onde foram desmobilizados os seus elementos. Entretanto, os brancos que se tinham conservado em Moçambique começaram a fugir, vendendo ao desbarato os seus bens imobiliários, e regressaram em grande número à Metrópole, optando muitos outros por emigrar, pelo menos temporariamente, para a África do Sul, seguindo depois para o Brasil, Venezuela ou Canadá. A esses novos emigrantes portugueses no Brasil, juntaram muitos outros provenientes da Metrópole fugindo às perseguições do PREC.

Terminado o período relativamente curto do meu isolamento, foi aberta a porta da cela e pude assim juntar-me aos meus companheiros de infortúnio, Gonçalo Nuno, Raúl Satúrio Pires e outros amigos.

Podendo receber a vista de alguns familiares e amigos, os meus companheiros iram recolhendo notícias do que se passava no exterior. Para melhorar o rancho da tropa, podíamos receber alimentos confecionados e bebidas do exterior entregues por familiares e amigos. Os dias iam passando, mas era inevitável a inquietação sobre o destino que nos reservavam os nossos carcereiros. O nosso pavilhão ia-se enchendo de novos presos e fiquei na mesma cela em que se encontravam um juiz de direito e um engenheiro doutorado por uma universidade sul-africana.

Fui visitado por um advogado de Lourenço Marques, Dr. Antero Sobral, pertencente ao grupo do “Democratas de Moçambique” e que fora um dos signatários dos acordos de Lusaca, mas que fora contactado pelo seu colega Dr. Inácio de Bragança que não quisera correr o risco de se comprometer, visitando-me. Mostrou-me a legislação revolucionária entretanto mandada publicar na folha oficial pelo alto-comissário Victor Crespo: eram dois decretos-lei que instituíram uma nova figura jurídica, os “crimes contra a descolonização”. Como a lei penal não tem efeitos retroactivos senão para benefício dos réus e como já me encontrava preso à data da publicação desses diplomas, não se me aplicavam. Disse-me então o Dr. Antero Sobral, visivelmente constrangido, dada a sua formação jurídica, que nem valia a pena constituí-lo como defensor porque “tudo era feito à margem da Lei, e até contra os princípios gerais do Direito. Agradeci a visita e o seu interesse, tanto mais que éramos adversários políticos.

Duas ou três vezes apareceu o capitão Camilo na cadeia para me interrogar, nada conseguindo saber pela minha parte. Vinha fardado, conduzindo ele próprio o jeep militar e trazendo como guarda-costas um guerrilheiro armado no banco detrás, como se tivesse aproveitado uma boleia do branco. Os meus companheiros de cela nem sequer foram interrogados. Também não tinham dúvidas acerca deles. Eram todos reaccionários, inimigos da descolonização.

Para minha grande surpresa, juntou-se a nós, o Capitão Miliciano Rui Leal Marques que fora capturado junto da fronteira sul-africana onde tentara entrar clandestinamente, a corta mato, em Moçambique. Estivera reunido com ele em Joanesburgo e ele decidiu seguir o meu exemplo, infelizmente com o mesmo azar. Participou na Beira no movimento esboçado no Rádio Clube em Lourenço Marques e após a repressão que se abatera sobre os participantes desse movimento procurou refúgio na África do Sul. Mas não desistira de lutar. Foi oficial na Índia Portuguesa antes da invasão dessa Província pelas forças da União Indiana e ingressara em Lisboa nos quadros de oficiais da G.N.R.. Decidiu, no entanto, instalar-se em Moçambique onde fora colocado como professor na cidade da Beira. Ficara preso nas malhas que o Império tece. Era agora mais um exemplo de nem sempre sorte sorri aos audazes.

Em dada altura juntou-se a nós outro grupo de prisioneiros, também presos pelo M.F.A.. Esses eram todos negros e, se bem que, pessoalmente não conhecesse nenhum deles, sabia quem eram, porque eram figuras públicas. Todos eles ou quase todos tinham pertencido à Frelimo e tinham, por diversos motivos, abandonado o movimento terrorista, vindo a acolher-se à protecção das autoridades militares portuguesas, bem antes do 25 de Abril. Confiados nas promessas então feitas, tinham permanecido em Moçambique, vindo agora ser presos pelo Exército Português. Entre eles estavam Joana Simeão, Dr. Júlio Razão, Paulo Mondlane, Paulo Gumane, Mateus Gwengere. Exceptuando Joana Simeão que, por ser mulher, foi confinada noutras instalações, esses dissidentes da Frelimo ficaram em celas do nosso pavilhão, muito assustados com aquilo que lhes estava a acontecer porque o que mais temiam era serem entregues à vindicta dos terroristas.

Outros presos foram chegando, nomeadamente dois sul-africanos que esperavam vir a ser resgatados pelos seus representantes consulares e expulsos para a África do Sul. O que acabou por acontecer a Gonçalo Nuno de Mesquitela ,Raúl Satúrio Pires e Luís Peixoto, que puderam assim reencontrar as suas famílias. Foi um grande alívio para mim saber que já se encontravam fora de perigo.

Os presos que permaneciam na Machava foram, em dada altura, transferidos, na sua totalidade, para as instalações prisionais da Cadeia Penitenciária de Sommershield em Lourenço Marques, onde começaram a afluir, em Dezembro de 1974, vagas sucessivas de presos, maioritariamente brancos, sendo muitos deles antigos combatentes oriundos do recrutamento provincial, que haviam passado à disponibilidade, como eu, muito recentemente. Já não havia sequer interrogatórios: aquilo era um “depósito de reaccionários”. Escusado será dizer que o ambiente entre os presos brancos e negros, era de sã camaradagem e que gozávamos da simpatia dos soldados portugueses que nos guardavam conjuntamente com o destacamento armado da Frelimo. O comandante da Penitenciária era um capitão de cavalaria chamado Quintanova, que manteve um comportamento correcto connosco, dadas as circunstâncias. Também ele próprio viria a ter sérios atritos com os turbulentos guerrilheiros da Frelimo, pelo que regressou à Metrópole revoltado com o indecoroso comportamento dos oficiais do M.F.A. que se submetiam a todas as exigências dos seus amos da Frelimo. Era precisamente o caso do capitão Camilo. Havia de facto bastantes oficiais que se sentiram incomodados e até chocados com as manifestações de amizade e confraternização ao seu “camarada” Jacinto Veloso que, para todos os efeitos, não passava de um desertor das Forças Armadas Portuguesa, um tenente piloto-aviador que havia desertado, aterrando com um caça-bombardeiro T-6 na Tanzânia, onde fora recebido de braços abertos pelos “seus camaradas da Frelimo”. Em suma, um traidor que tinha passado ao Inimigo e se tornara deste modo cúmplice, se não autor directo, da morte de muitos dos nossos soldados.

Como a maior parte dos jovens que estavam detidos connosco tinham ainda familiares em Lourenço Marques eram por estes informados, durante as visitas, do que se passava na cidade. Através de rádio-transistores, íamos seguindo os acontecimentos na Metrópole. Quando tivemos conhecimento, pelos noticiários das emissoras de radiodifusão, dos acontecimentos de 11 de Março de 1975, pensámos que tinha havido um movimento contra-revolucionário na Metrópole com o bombardeamento de uma unidade meio dominada pelos comunistas, deu-se uma explosão de alegria, como se o fim o pesadelo estivesse próximo. Todos pulavam e cantavam a plenos pulmões o Hino Nacional. E muitos nos acompanharam quando entoámos a “Marcha da Mocidade”, de braço ao alto. Não deixou de haver, porém, quem ficasse preocupado porque se o novo golpe militar triunfasse como todos o desejávamos na Metrópole, o certo é que nós ficaríamos reféns do M.F.A. e da Frelimo em Moçambique. O movimento encabeçado e mal dirigido por António de Spínola foi, no entanto, rapidamente sufocado e as nossas esperanças desvaneceram-se. a repressão tornou-se mais violenta e generalizada na Metrópole e nova leva de presos encheram as prisões já sobrelotadas. O M.F.A. “institucionalizou-se” com a criação do Conselho da Revolução e o Partido Comunista reforçou consideravelmente o seu poder e a sua influência nos quartéis, nos sindicatos e no aparelho económico graças às nacionalizações que corresponderam a verdadeiros confiscos. O futuro apresentava-se sombrio. Mas, nem por isso, desanimámos e desistíamos de lutar.

TEMPO DE BATUQUE

Inesperadamente, apareceu na Cadeia Penitenciária, escoltado por guerrilheiros da Frelimo, um branco, Jorge Costa, antigo estudante da Universidade de Coimbra, desertor do Exército Português e arvorado em inspector da Polícia Judiciária, que tinha por missão transferir um número determinado de presos, que constavam de uma lista de que era portador. Seis dos selecionados foram entregues à sua guarda pelos militares portugueses que guarneciam o estabelecimento prisional. Nem eu nem o capitão Leal Marques constávamos dessa primeira leva mas pressentimos que deveríamos também constar da lista de proscrições. De facto, no dia seguinte, o referido “inspector” Jorge Costa voltou à carga e logo de manhã, mandou-nos preparar as nossas bagagens para sermos transferidos, sem nos dizer para onde. Vinha vestido à civil, com uma “Uzi” à bandoleira, e fomos levados, o capitão Leal Marques e eu, bem como outros presos, escolhidos a dedo, em jeeps da Polícia Militar portuguesa, para o aeroporto de Lourenço Marques. Aí embarcamos num bimotor civil, sempre acompanhados de Jorge Costa e seus guardas-costas da Frelimo, com destino ao Norte da Província. Deduzimos que seria para os tais “campos de reeducação” que os terroristas tinham criado nas antigas bases da Frelimo em Cabo Delgado. Entre os nossos companheiros de viagens encontravam-se cinco outros brancos, antigos combatentes que haviam participado nos acontecimentos do 7 de Setembro em Lourenço Marques e tinham cometido a imprudência de permanecer em Moçambique. Entre os pretos que eram deportados na mesma altura encontrava-se a Dr.ª Joana Simeão, o Dr. Júlio Razão e Paulo Mondlane. Fizemos uma escala técnica no aeroporto da Beira, para reabastecimento de combustível e seguimos em direcção ao Norte, onde aterrámos finalmente no aeroporto de Porto Amélia.

À chegada ao aeroporto de Porto Amélia, foi-nos permitido, sempre sob escolta armada dos guerrilheiros, deslocar-nos ao bar, que por sorte era gerido por uma senhora branca, D. Luzia, que nos facultou gratuitamente uma refeição rápida e tomou nota dos nossos nomes para informar as nossas famílias na Metrópole da nossa passagem e provável destino para os tais “campos de reeducação”. Foi graças a esta corajosa e incansável grande Portuguesa que viria a ser possível manter o contacto com os nossos familiares que tudo haveriam de fazer para obter a nossa libertação.

Seguidamente fomos reagrupados com os seis elementos que tinham sido deportados na véspera e alojados numa moradia perto da baía, sob a guarda de guerrilheiros armados que geralmente nem sequer falavam português. A noite foi passada em ansiedade porque continuávamos a ignorar o nosso destino e ninguém nos dava quaisquer informações.

No dia seguinte de manhã apareceram várias viaturas de todo o terreno de tipo “Land-Rover” com a característica cor cinzenta das viaturas usadas pela Administração Civil e, também, pela Direcção-Geral de Segurança. Já não havia soldados portugueses, e os únicos elementos armados eram os terroristas da Frelimo. Foi pois sob a escolta dos turras que seguimos viagem, essa “Via Dolorosa” que nos iria conduzir a Mueda, antiga “capital da Guerra”, onde bravos portugueses lutaram e sofreram para defender a bandeira das Quinas. A data marcada para a declaração da independência ainda não tinha chegado.

De Porto Amélia seguimos para Mocímboa da Praia, passando por Macomia, onde o quartel das tropas portuguesas era agora ocupado pelos guerrilheiros da Frelimo que tinham “herdado” as viaturas e os demais equipamentos militares do Exército Português, pelo Chai que fora palco em 1964 da primeira investida gorada dos terroristas em território de Moçambique. Pernoitámos em Mocímboa da Praia, entretanto evacuada pelas forças portuguesas, e seguimos viagem para Mueda, passando pelo Sagal.

Percorremos com inusitada rapidez as estradas de terra batida, que anteriormente eram estradas de morte devido às emboscadas, flagelações e tiros de atiradores furtivos mas sobretudo devido às numerosas minas anti-carro e anti-pessoais que os turras haviam semeado ao longo do percurso. Os próprios terroristas haviam desminado as vias que só eles agora cruzavam.

À chega a Mueda que era um amontoado de casernas abandonadas, ficamos detidos num desses edifícios militares, sem que nos tivessem dado qualquer esclarecimento sobre a nossa sorte. Fomos visitados à noite por um graduado da Frelimo, jovem ainda, falando português, que nos disse ter tido o curso de guerrilha no Egipto. Era bastante cortês e dava provas de uma formação muito superior àquela que os bandos de selvagens que integravam as unidades da Frelimo, apresentavam com os seus equipamentos andrajosos e risos boçais.

No dia seguinte teve lugar na parada dos quartéis uma cerimónia macabra. Iriamos ser julgados em “tribunal popular” por uma multidão de indígenas enquadrados por guerrilheiros.

No meio da parada perante um pelotão de fuzilamento alinhado fomos chamados, um após um, pelos nossos nomes. Quando um de nós se colocava em posição um comissário político da Frelimo debitava um discurso num dialecto que julgo ter sido maconde, porquanto os indígenas que haviam sido arrebanhados eram maioritariamente pertencentes a esta etnia. Rematavam a sua arrenga com um grito em português de “Viva a Frelimo”, “Abaixo o colonialismo”, “Abaixo o imperialismo” e outros slogans do mesmo tipo. A cena repetia-se da mesma forma para cada um de nós. Quando tínhamos sido “apresentados” à população, interrogam (julgo eu) os indígenas acerca da pena que os nossos supostos crimes mereciam. Obviamente que, instrumentalizados pelos guerrilheiros, os populares deveriam pronunciar-se pela pena de morte. Foi então que o comissário Mingas declarou-lhes que seria poupada a nossa vida porque a Frelimo tinha decidido uma “política de clemência”. Fomos então reconduzidos à caserna onde estávamos alojados. Passado o susto, concluímos que pelo menos por enquanto nos manteriam em vida. Fomos até convidados a jantar com os guerrilheiros numa antiga cantina do Exército, onde tivemos de começar a habituar-nos à “dieta” dos pretos. Como tínhamos fome, tivemos que comer à mão, como eles, a massa de mandioca (que detestei) acompanhada de verduras que pareciam sem o ser, espinafres. No dia seguinte deixavam-nos passear, à vontade, pelo aquartelamento, seguros que não tentaríamos fugir porque rapidamente seriamos apanhados. E para onde poderíamos fugir, sem recurso, no planalto dos Macondes? A solução só poderia vir de negociações com a Frelimo ou pressões junto às autoridades portuguesas. Porque de facto a soberania em Moçambique era ainda exercida por Portugal, cuja bandeira continuava a flutuar no território.

E, no entanto, tínhamos sido entregues aos turras pelas próprias autoridades portuguesas. Mueda, onde já não havia tropa portuguesa, tinha-se tornado o epicentro da ocupação frelimista de Cabo Delgado. Por entre as dezenas de guerrilheiros, notavam-se uns soldados com fardas camufladas de modelo chinês e capacetes checoslovacos, que falavam inglês e que pelos batimentos e manejo de armas, pareciam pertencer a forças regulares da vizinha Tanzânia, vindas em reforço para a ocupação das chamadas “zonas libertadas”.

Das janelas da caserna onde estávamos alojados, ainda assistimos a uma cena que nos surpreendeu. Um dos responsáveis dos guerrilheiros tinha sido surpreendido quando roubava latas de conservas armazenadas num depósito de mantimentos deixados pelo Exército Português. Fora então sumariamente julgado e condenado a ser chicoteado perante a população. A execução da pena, que presenciámos, testemunhava de vontade manifestada pelos comissários políticos e chefes de segurança, em impor uma disciplina férrea, julgada indispensável para impedir a tendência que esses bandos de guerrilheiros tinham para o saque.

No dia seguinte aterrou no aeródromo de Mueda um avião Nord-Atlas da Força Aérea Portuguesa. Vimos distintamente que atrás do cockpit o piloto do avião era um major identificável pelos seus galões. Foram então obrigados a subir para o aparelho os pretos que estavam detidos connosco. Antevendo que o seu destino seria a base-mãe da Frelimo, Nachingwea, em território tanzaniano, alegaram que eram portugueses, mostrando os seus passaportes e documentos de identidade e que não queriam ser deportados para o estrangeiro. As suas súplicas de nada serviram nem as suas manifestações oportunísticas de portuguesismo. Eram elementos que tinham sido membros da Frelimo e que, por motivos vários, tinham abandonado o campo dos terroristas. Tinham confiado nas promessas e garantias que lhes foram dados aquando da sua apresentação voluntária às autoridades portuguesas, com as quais vieram a colaborar. Eram agora devolvidos à origem, com os cumprimentos dos novos detentores do Poder em Portugal. Segundo veio a apurar-se mais tarde, a desgraçada Joana Simeão foi lançada com os seus companheiros para uma vala, onde foram regados com gasolina, enquanto à volta da fogueira os guerrilheiros entoavam cânticos revolucionários. Soavam os batuques da independência negra.

Quanto a nós, os restantes prisioneiros brancos, todos metropolitanos e antigos combatentes, fomos momentaneamente separados e enviados para “campos de reeducação” situados nas antigas bases da Frelimo, Beira, Gugunhana e Central, etc. Aí fomos guardados à parte dos prisioneiros pretos. Esses eram sujeitos a um tratamento muito mais brutal do que aquele que nos era reservado. Parecia até, que à falta de instruções precisas, a nosso respeito, eramos mantidos sob um regime que nos poupava em relação aos trabalhos forçados e castigos selváticos a que eram sujeitos os “reeducados” pretos. Nem por isso deixávamos de padecer de algumas medidas humilhantes como a de sermos obrigados a capinar, de vez em quando, e a sofrer as agruras da fome que, diga-se em abono da verdade, atingia todos, os presos e os seus próprios guardas. Tinha-se acabado rapidamente as reservas de alimentação deixadas pelas tropas portuguesas em retirada e sobrevivíamos à custa de frutos e legumes que se encontravam disponíveis à volta dos campos, que no entanto tinham electricidade devido à existência de geradores que haviam sido deixados para os turras, nos quartéis evacuados pelas tropas portuguesas.

Deste modo, quando, de vez em quando nos reagrupavam a nós os “sete indomáveis”, num mesmo campo, como aconteceu num largo período, na Base Central, um dos nossos, que era entendido em serviços eléctricos, conseguiu pôr em estado de funcionamento um aparelho de telefonia e conseguíamos captar diversas estações de rádio, nomeadamente a Emissora Nacional que funcionava em Lisboa. Através dos seus noticiários tendenciosos, pudemos acompanhar os relatados acontecimentos marcantes do “Verão Quente” de 1975. Quando enumeravam as sedes do Partido Comunista e do MDP-CDE que nesse período eram assaltadas e incendiadas pelas populações revoltadas contra o PREC, era para nós um motivo de alegria e de esperança. Os ventos pareciam mudar, e os comunistas e seus companheiros de estrada já não dominavam a situação. Os discursos inflamados de um descabelado e descerebrado Vasco Gonçalves eram a prova de que não conseguiam “partir dos dentes da Reacção” como Álvaro Cunhal tinha prometido.

Mas entretanto, aproximava-se a data fatídica da proclamação da independência e entrega total de Moçambique à Frelimo. Os colonos regressavam apressadamente à Metrópole através de pontes aéreas. Os últimos soldados portugueses ainda estacionados nalgumas cidades do Sul da Província rumavam em aviões dos Transportes Aéreos Militares com destino a Lisboa. Outros seguiram de barco. Pareciam terem-se esquecido de nós. Seria que nos pretendiam abandonar nos “campos de reeducação” da Frelimo, sujeitos a doenças tropicais, à fome e às intempéries, prelúdios de uma morte lenta? Em Lisboa os nossos familiares assediavam os governantes para obter a nossa libertação. Contactaram a Cruz Vermelha Internacional, que nem sequer conseguira obter informações sobre a nossa situação junto das novas autoridades de Moçambique. E proclamada a independência e nada se alterando acerca da nossa situação, o próprio Dr. Jaime Gama, deputado do Partido Socialista, apresentou um requerimento na Assembleia Constituinte, do seguinte teor:

“Considerando que é de admitir, segundo algumas informações, a existência de vários cidadãos presos em Moçambique;

Considerando que não existe, neste momento, embaixador de Portugal junto da República Popular de Moçambique;

Requeiro, ao abrigo das disposições legais e regimentais, que o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Ministério da Cooperação me informem:

a) Quantos cidadãos portugueses se encontram presos pelas autoridades moçambicanas e quais os motivos alegados para as suas detenções;

b) Que medidas foram tomadas pelo Governo Português em defesa dos cidadãos nacionais presos em Moçambique, nomeadamente pelos Ministérios da Cooperação e dos Negócios Estrangeiros.

c) A que se deve o atraso na nomeação do novo embaixador português para Moçambique.”

A própria imprensa portuguesa não enfeudada aos comunistas, começou a abordar o assunto e até alguns órgãos da imprensa estrangeira, como a revista francesa “L`Express” publicou um artigo sobre os “capitães esquecidos de Moçambique”.

Por essa altura fomos todos nós os “sete proscritos” levados para Porto Amélia e mantidos sob custódia no antigo quartel do Fuzileiros, cujas instalações tinham sido bem conservadas e serviam agora de aquartelamento para uma unidade da Frelimo já com um aspecto de força regular. Aí fomos bem alimentados e entregues aos cuidados de um casal de médicos búlgaros, cooperantes em Cabo Delgado. Mandaram-nos levar injecções, suponho que de vitaminas, para termos uma aparência menos depauperada. Também nos deram bastante comida para recuperarmos algo do peso perdido durante a nossa odisseia pelos “campos de reeducação”. Os médicos búlgaros, que falavam fluentemente francês conversavam comigo na língua de Molière, o que tornava impossível aos nossos guardas entender as nossas conversações. A doutora mostrava-se apavorada pelos olhares e as atitudes dos guerrilheiros, e tratavam-nos com atenção e carinho, demonstrando-nos deste modo a sua solidariedade.

Durante as idas ao hospital, estabelecíamos contacto com a indómita D. Luzia que me entregava as cartas que a minha Mãe me escrevia pelo seu intermédio. Soube assim através da sua última carta que o meu Pai tinha falecido. Padecendo de cancro, era uma morte de certo modo anunciada, mas a notícia causou-me um forte abalo, por não ter podido acompanhá-lo nos seus últimos momentos, nem sequer podido assistir ao seu funeral.

Horas antes do seu falecimento na nossa casa, mais uma vez a mesma fora investida por militares do M.F.A. que persistiam na sua tentativa de me capturar, o que demonstra bem a desorganização reinante nos seus serviços de informações.

Mas dias depois soubemos, através dos noticiários radiofónicos que conseguimos captar que em 25 de Novembro de 1975 graves acontecimentos tinham ocorrido na Metrópole. A derrota da extrema-esquerda militar tornou possível que o Ministério dos Negócios Estrangeiros começasse finalmente a actuar no nosso caso específico e obtivesse, com a ida a Lourenço Marques de um alto funcionário, a nossa libertação.

Fomos, entretanto, transferidos para os calabouços da antiga esquadra da P.S.P. de Porto Amélia, e posteriormente levados à cidade a um barbeiro para nos dar um ar mais apresentável na expectativa de uma próxima libertação e transferência para Lisboa. Levaram-nos ainda à loja de um monhé para adquirimos camisas, fatos e gravatas à nossa escolha. Provavelmente, os guardas que nos acompanharam nessas diligências não pagaram sequer as contas.

Assim aperaltados aguardávamos a ordem de marcha.

Soubemos, entretanto, que a maior parte dos presos políticos detidos em Caxias e noutros locais haviam sido libertados. Escrevi então uma carta ao General Kaúlza de Arriaga, que fora preso como todos os outros detidos com mandados de captura assinados em branco pelo então comandante-adjunto do COPCON, Otelo Saraiva de Carvalho, sob a acusação de “pertencer a uma associação de malfeitores”.

Eis o teor da missiva que procurei que lhe fosse entregue:

Calabouços de Porto Amélia,

20 de Janeiro de 1976

Meu General,

É com profunda emoção que escrevo a Vossa Excelência, fazendo votos fervorosos de que o seu sacrifício – que integra e simboliza o esforço estóico de quantos, sob suas ordens, defenderam a soberania portuguesa em África – venha a ser reconhecido e glorificado pelo Povo Português, que tão devotadamente tem servido ao longo de uma carreira excepcionalmente brilhante.

Vossa Excelência, Meu General, é hoje, mais do que nunca, o exemplo vivo que inspira o pensamento e a acção dos combatentes que não se esquecem nem se arrependem dos sofrimentos oferecidos em holocausto à Pátria. À recordação dos momentos alegres e difíceis de uma comissão cheia de perigos, à lembrança dos mais impressionantes episódios de guerra e de vitória, está invariavelmente ligada a imagem de Vossa Excelência, aparecendo de helicóptero nos pontos mais críticos dos combates, ou visitando os destacamentos isolados, dando testemunho com a sua presença dessa coragem, dessa tenacidade e dessa fé que fizeram prodígios em Moçambique.

Tive o privilégio, mercê de Deus, de servir sob o comando de Vossa Excelência, e essa honra de que legitimamente me orgulho tem sido para mim poderoso incentivo para suportar com dignidade as agruras de uma captividade desumana. No momento em que tantos oficiais particulares obrigações tinham contraído no Ultramar, traíram os seus compromissos e cobardemente abandonaram os seus chefes, posso garantir a Vossa Excelência que a minha honra continua ser a minha fidelidade. Fidelidade a Vossa Excelência e aos seus ensinamentos.

Preso, contra todas as normas jurídicas, pela Polícia Militar portuguesa em Lourenço Marques, em Outubro de 1974, fui encarcerado à ordem do CTS até Março de 1975, altura em que fui entregue à Frelimo pelas autoridades militares portuguesas e deportado para Cabo Delgado, com outros portugueses que não traíram a sua Raça, em regime de trabalhos forçados nos campos de concentração das zonas libertadas, aliás pretensamente libertadas. Do que temos sofrido nada direi a Vossa Excelência, na certeza que não terá dificuldade em imaginar quanto difícil tem sido para nós conseguir sobreviver até agora. O que desejaria que Vossa Excelência soubesse é que nenhum de nós, nas mais dolorosas circunstâncias do cativeiro se tornou menos digno do seu apreço.

O nosso País abandonou-nos mas nós nunca o traímos. Não renegamos os ideais que servimos, e sentimos que participamos, com o nosso sofrimento, no bom combate a que Vossa Excelência voluntariamente se sacrificou para que Portugal não perdesse o sentido da honra e o culto do dever cívico e militar.

Nós nunca o esquecemos, Meu General, e posso afirmar que, por seu lado, os nossos gorilas também se recordam bem de Vossa Excelência, parecendo, até, que o seu nome continua a inspirar terror ao inimigo. Para nós o seu nome significa honra e fidelidade.

Escusado será dizer que se algum dia terminar o nosso cativeiro e regressar então a Lisboa, poderá Vossa Excelência continuar a contar com a minha incondicional adesão.

Rogo a Deus que guarde a Vossa Excelência e que o proteja no rumo certo de um destino nacional, e peço licença para lhe apresentar o testemunho leal e sincero da minha respeitosa dedicação.

Luís Fernandes”

Pouco depois de enviar esta carta, fomos nós próprios, os “sete proscritos” metidos num bimotor, sempre sob escolta armada, e aterrámos no aeroporto da Beira, onde estava à nossa espera um alto funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros português e o Cônsul-Geral de Portugal nessa cidade do Índico. Este último fora-me colega de curso no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, a parecia bastante assustado com a presença de guerrilheiros armados à nossa volta. A conversa extremamente cordial que pudemos manter com o diplomata enviado de Lisboa foi interrompida com a ordem de embarque imediato no avião regular da T.A.P. que se encontrava na pista do aeroporto. Vendo que os guerrilheiros pretendiam levar-nos até à escada que dava acesso ao avião sob a ameaça das suas armas, os diplomatas portugueses fizeram questão de nos acompanhar até aí, onde nos despedimos.

Finalmente a bordo sem escolta da Frelimo, sentimo-nos livres em território português. As hospedeiras e os comissários de bordo trataram-nos como heróis e o avião levantou voo para Lisboa. No entanto, teríamos de fazer uma escala técnica no aeroporto de Luanda, estando Angola mergulhada numa guerra entre movimentos terroristas que pretendiam a conquista do poder nesse território.

Luanda estava já ocupada pelas forças do M.P.L.A. apoiadas por auxiliares soviéticos, de forma que quando aterrámos no seu aeroporto, elementos desse partido estavam à nossa espera à saída da escada e, tendo sido informados da nossa presença a bordo, impediram-nos de ter acesso às instalações aeroportuárias, com os demais passageiros. Na pista, junto à escada de acesso, também se encontrava à nossa espera o Senhor Conde de Aurora, Embaixador de Portugal em Luanda, que nos tinha vindo acolher, com o objectivo de assegurar a nossa protecção. Conversámos brevemente com ele, enquanto observávamos a presença ao fundo da pista de vários aviões MIG de fabrico soviético. Fomos depois obrigados a aguardar, no interior do avião, o regresso dos outros passageiros.

Finalmente o avião descolou com destino a Lisboa. Atrás de nós ficava uma África que fora portuguesa e se encontrava mergulhada num inferno de fogo e de sangue, com os batuques da guerra a soarem na longa noite do regresso à barbárie dos conflitos tribais acicatados pelos imperialismos comunista e norte-americano.

Quem estaria à nossa espera, no aeroporto da Portela? Provavelmente os esbirros do M.F.A., pensávamos nós. De qualquer forma o nosso combate não tinha ainda terminado.

NA METRÓPOLE, A RESISTÊNCIA ARMADA CONTINUA

Já se avistava a Ponte Salazar, que os revolucionários esquerdistas haviam rebaptizado “25 de Abril” e brevemente o nosso avião iria aterrar no aeroporto da Portela. Crescia em nós, os “sete proscritos”, a incerteza sobre o nosso acolhimento na antiga Capital do Império. Estaria o C.O.P.C.O.N. à nossa espera para nos levar para a prisão de Caxias? Ignorávamos então que essa força da esquerda militar já tinha sido extinta e que a perseguição aos elementos refractários à democracia tinha sido entretanto cometida à Polícia Judiciária. De qualquer modo, à nossa espera apenas se encontravam umas senhoras do I.A.R.N. (Instituto de Apoio aos Retornados Nacionais) que deram a cada um de nós uma nota de mil escudos para custear as nossas primeiras despesas. Separámo-nos e rapidamente nos afastámos do aeroporto para evitar de nos expor a qualquer controlo que fizesse perigar a nossa segurança. Estava à minha espera, um velho camarada da Mocidade Portuguesa (M.P.) e da Legião Portuguesa (L.P.), o Dr. João Parente, que tinha ajudado os meus pais e os familiares dos outros prisioneiros a empreender as numerosas diligências que foram levadas a efeito com vista à nossa libertação. Levou-me a uma pensão, onde fiquei provisoriamente alojado, não sendo conveniente dirigir-me a casa, porquanto os mandados de captura emitidos contra mim ainda deveriam estar em vigor.

No dia seguinte à minha chegada, desloquei-me contudo a casa para abraçar a minha Mãe e a minha Ana Catarina. Na altura apareceu um camarada meu do Curso de Oficiais Milicianos, Pedro Corte-Real, que mobilizado para a Região Militar de Moçambique tinha sido, como Alferes Miliciano, colocado no Centro de Instrução de Grupos Especiais e havia comandado um Grupo Especial, numa zona limítrofe à minha área de intervenção. Levou-me para sua casa, onde estaria em segurança, até resolver o que poderia fazer. Desloquei-me depois ao Cemitério da Ajuda para me recolher e rezar junto à campa do meu Pai.

Contactando, discretamente, vários camaradas que tinham conseguido escapar à sanha persecutória dos revolucionários esquerdistas, inteirei-me da situação que se vivia naquilo que fora a ditosa Pátria nossa amada e se tinha transformado nesse “país”. Portugal, reduzido às fronteiras da Primeira Dinastia, torna-se um “rectângulo”, um “Estado exíguo”, para citar a expressão utilizada pelo Professor Adriano Moreira. A ideia de restaurar o Império, de reconquistar os nosso territórios ultramarinos traiçoeiramente abandonados, era um sonho de impossível realização. Tínhamos de ser realistas. Os nossos objectivos eram outros; tinham de ser outros. Antes de tudo o mais um desejo ardente tinha de nos animar e nos inspirar: a vontade de vingar os nossos mortos.

Afastada da área do Poder a Esquerda Militar, e detidos ou em fuga os seus elementos mais aguerridos, o Partido Comunista e os seus satélites, que prudentemente haviam posto a viola no saco durante a confrontação militar de 25 de Novembro, tinham escapado às retaliações graças à intervenção em seu favor do Major Melo Antunes. Mas, de facto, parecia existir um terreno fértil, no panorama geral, para contestar muitas da celebradas “conquistas revolucionárias”. Os descontentes, outrora amedrontados pela repressão gonçalvista começavam a manifestar-se à luz do dia.

Entre os descontentes, que amaldiçoavam o 25 de Abril formavam na primeira linha as centenas de milhar de “retornados”, esses portugueses que fugindo à barbárie cafreal se acolhiam à Metrópole, onde muitos deles nunca tinham estado e onde teriam doravante de reconstruir as suas vidas, partindo da estaca zero. Chegados a Lisboa mercê das pontes aéreas que organizações internacionais haviam criado, ou desembarcando em barcos de pesca que tinham escapado de Angola, estes colonos que tinham perdido praticamente todos os seus bens de raiz, vinham traumatizados pelas cenas de horror a que tinham assistido.

Muitos antigos combatentes que durante meses a fio haviam sofrido as traiçoeiras investidas dos bandoleiros, assistiam agora de longe à imerecida vitória dos turras que tinham assassinado os seus companheiros no mato.

Também as numerosas vítimas dos “saneamentos” selvagens que haviam afastado dos seus postos professores universitários, juízes e outros magistrados, quadros empresariais e legítimos proprietários de bens confiscados ansiavam que, vencido o caos revolucionário, fosse restaurada a ordem e reconstruídas as suas vidas tão dolorosamente afectadas pelo descalabro do PREC.

A Esquerda via ameaçada a sua hegemonia. Era necessário e urgente aproveitar essa onda, para mobilizar descontentes, unir esforços e iniciar uma reconquista, pela militante reafirmação dos Valores Nacionalistas que os agentes subversivos haviam procurado destruir.

Para combater o sistema democrático era preciso incrementar uma resistência armada. Tinha conhecimento da existência estruturada de duas organizações rivais mas que não se defrontavam entre si no terreno embora os seus objectivos finais divergissem. A mais antiga era o Exército de Libertaçao de Portugal (E.L.P.) que congregava muitos amigos meus, camaradas de combates passados. A outra, que só veio a constituir-se na sequência da tentativa falhada do golpe militar do grupo spinolista em 11 de Março de 1975, era o Movimento Democrático de Libertação de Portugal (M.D.L.P.). A própria escolha dessa designação excluía a nossa participação activa, a não ser em casos pontuais no campo operacional. A minha opção lógica seria juntar-me logo que possível aos meus camaradas que integravam o E.L.P..

Sabia que o “santuário” do E.L.P. estava situado em Madrid. Teria, pois, de me deslocar à capital espanhola para fazer a minha apresentação. Estando impedido de efectuar essa viagem, transpondo a fronteira regularmente, teria de arranjar maneira de passar a mesma clandestinamente, o que carecia de uma cuidada preparação.

Desloquei-me portanto ao Porto, onde me encontrei com o meu Mestre, o Professor António José de Brito, verdadeiro guia espiritual da minha geração de jovens militantes fascistas, que escapara, para surpresas sua, às prisões arbitrárias que levaram para os calabouços muitos de nós. Publicara, em 1975, em pleno descalabro revolucionário, um livro espantoso de coragem, em edição de autor, intitulado “Diálogos de Doutrina Anti-Democrática”. Fui também pedir ajuda a um camarada da F.A.C. que era advogado no Porto, o Dr. Fernando Sousa Machado, que me pôs em contacto com o seu pai, também advogado, que haveria de encontrar maneira de me ajudar a transpor a fronteira clandestinamente. De facto prontificou-se imediatamente a colaborar nessa operação, apresentando-me um responsável da SICAL no Porto que conhecia, por dever de ofício, as redes de contrabandistas de café que levavam regularmente carregamentos de café português, muito apreciado em Espanha, e os pontos de passagem mais seguros.

Deste modo segui para Valença, no carro conduzido pelo pai do meu amigo Fernando, e a partir daí seguimos viagem para o nosso contacto em São Gregório. Aí o rio Minho não tinha praticamente caudal, e saltando de pedra em pedra, entrei em território espanhol enquanto o Dr. Sousa Machado e a sua Esposa passavam o controlo fronteiriço na ponte que ligava Portugal à Espanha. Na mala do carro, levavam a minha bagagem, que me devolvem já em território espanhol. Despedimo-nos com muita amizade e enquanto eles regressavam ao Porto, eu apanhei um autocarro que fazia a ligação com a cidade de Ourense onde poderia apanhar na estação principal um comboio com destino a Madrid.

Foi uma longa viagem nocturna até chegar finalmente à capital espanhola. Como não sabia onde se encontravam exactamente os meus camaradas, fui ter ao escritório do Dr. Blas Piñar, meu velho amigo, que fora deputado nas Cortes Espanholas por designação pessoal do Caudillo, e continuava o bom combate à frente do movimento “Fuerza Nueva” que perpetuava a memória do fundador da Falange Espanhola, José António Primo de Rivera, e assumia a herança política do Franquismo. O meu amigo de longa data, Blas Piñar, telefonou ao Professor Pedro Soares Martinez que se refugiara em Madrid, com a sua família, e estava em contacto directo com os demais membros do E.L.P.. Desloquei-me a sua casa, onde aguardámos que José Rebordão Esteves Pinto me fosse buscar. Reencontrei então esse velho amigo e camarada da F.A.C., com quem já tinha participado em tantas actividades nacionalistas, e que não via desde aquele nosso encontro em vésperas do golpe de Estado do 25 de Abril durante o qual me informara da iminente revolta de unidades militares sob o controlo dos conspiradores. Essas informações que lhe haviam sido transmitidas por um irmão envolvido na conspiração, foram por mim imediatamente comunicadas a quem podia e devia assegurar a defesa dos objectivos em maior risco e reprimir, preventivamente, os conspiradores. Nada foi feito, infelizmente, para impedir a concretização da ameaça nem sequer esboçada a necessária resistência. Foi uma capitulação total que provocou a queda do Governo, o fim do regime e a implosão do Império. A página mais negra da História de Portugal.

José Rebordão levou-me para uma casa onde estava alojado e pertencia a uns camaradas fascistas italianos que aí tinham instalado o seu quartel-general, sob a chefia de Stefano delle Chiaie, conhecido como Alfredo. Estavam refugiados em Espanha porque a maior parte deles era procurada pela polícia italiana. Fiquei também eu instalado na residência dos italianos, alguns dos quais eu já conhecia das minhas anteriores deslocações a Itália e até um dele que fora meu colega na “Voz do Ocidente”, serviço da Emissora Nacional que difundia para a Europa, programas informativos e doutrinários, em língua francesa, inglesa e italiana. Tratava-se de Stefano Poltronieri, que usava o nome literário de Umberto Mazzoti. Tinha feito o seu conhecimento em Paris onde ele fora representar o F.U.A.N. (Frente Universitario de Azzione Nazionale) do MSI numa reunião organizada pela F.E.N. (Fedération des Étudiants Nationalistes).

A esses camaradas italianos juntavam-se ainda os elementos da Aginter Press que tiveram de abandonar apressadamente a sua sede em Lisboa e se reuniram em Madrid, à volta de Yves-Guérin Sérac. Uma frutuosa colaboração diária se estabeleceu entre nós todos. Os italianos tinham aberto, como cobertura, um restaurante no centro de Madrid, denominado “Il Apuntamento”, onde habitualmente tomávamos as nossas refeições.

Enquanto o Professor Soares Martinez mantinha contactos regulares com entidades governamentais espanholas, ainda em funções e herdadas do Franquismo, José Rebordão tratava com muito empenho e competência da publicação oficial do E.L.P., “Libertação”. Num estilo directo e contundente, como era seu timbre, denunciava as artimanhas dos traidores, como nos primórdios da guerra do Ultramar havia já atacado os tíbios e cobardes através do grupo clandestino “Centuriões” de que fora um dos dinamizadores.

Muitos dos exilados portugueses que se encontravam em Madrid foram acolhidos por uma instituição religiosa, a Fundação Nossa Senhora de Fátima. Com a ajuda das freiras que integravam essa instituição católica, obtiveram desse modo, benevolente, alojamento e alimentação. Aí confraternizavam elementos ligados ao E.L.P. e ao M.D.L.P. para além de todas as divergências.

Quanto a mim, que já frequentara em Pamplona um curso de extensão universitária de jornalismo nos Estudos Gerais de Navarra, e outros em Madrid na Academia de Mandos José António, e tinha conversado e cultivado muitas amizades nos meios falangistas, estabeleci a ligação com Mariano SánchezCovisa, antigo combatente da Divisão Azul na Frente Leste e elemento catalisador dos “Guerrilheiros de Cristo-Rei”. Também mantive o contacto com o Príncipe Sisto de Borboun-Parma que dirigia os carlistas tradicionalistas e se tornara um grande amigo de Portugal, onde estive com ele várias vezes.

Muitos dos exilados foram regressando a Portugal, à medida que as perseguições de que haviam sido alvos cessaram. A situação na própria Espanha estava a mudar, a caminho de uma “democratização” que não favorecia a nossa presença. À medida que deixaram de ser “proscritos” e alvos de mandados de captura, muitos dos dirigentes dos próprios movimentos de resistência armada regressaram do Brasil, de Espanha e da África do Sul. Voltavam com a vontade de arrumar as botas depois de tantos combates e refazer as suas vidas, outros ainda com a esperança de poder vir a participar noutros combates, esses eminentemente culturais, para a reafirmação e exaltação dos valores pátrios tão vilipendiados.

De pé, sobre os escombros do que fora Portugal nacionalista e imperial, só nos restava a fidelidade aos Valores cujos princípios políticos que os consubstanciavam, tínhamos o dever de transmitir às novas gerações isentas da culpa de haverem traído a Pátria. Para que ouvissem entre as brumas da memória a voz dos seus egrégios avós.

NA METRÓPOLE, A RESISTÊNCIA ARMADA CONTINUA

Já se avistava a Ponte Salazar, que os revolucionários esquerdistas haviam rebaptizado “25 de Abril” e brevemente o nosso avião iria aterrar no aeroporto da Portela. Crescia em nós, os “sete proscritos”, a incerteza sobre o nosso acolhimento na antiga Capital do Império. Estaria o COPCON à nossa espera para nos levar para a prisão de Caxias? Ignorávamos então que essa força da esquerda militar já tinha sido extinta e que a perseguição aos elementos refractários à democracia tinha sido entretanto cometida à Polícia Judiciária. De qualquer modo, à nossa espera apenas se encontravam uma senhores do I.A.R.N. (Instituto de Apoio aos Retornados Nacionais) que deram a cada um de nós uma nota de mil escudos para custear as nossas primeiras despesas. Separámo-nos e rapidamente nos afastámos do aeroporto para evitar de nos expor a qualquer controlo que fizesse perigar a nossa segurança. Estava à minha espera, um velho camarada da Mocidade Portuguesa (M.P.) e da Legião Portuguesa (L.P.), o Dr. João Parente, que tinha ajudado os meus pais e os familiares dos outros prisioneiros a empreender as numerosas diligências que foram levadas a efeito com vista à nossa libertação. Levou-me a uma pensão, onde fiquei provisoriamente alojado, não sendo conveniente dirigir-me a casa, porquanto os mandados de captura emitidos contra mim ainda deveriam estar em vigor.

No dia seguinte à minha chegada, desloquei-me contente a casa para abraçar a minha Mãe e a minha Ama Catarina. Na altura apareceu um camarada meu do Curso de Oficiais Milicianos, Pedro Corte-Real, que mobilizado para a Região Militar de Moçambique tinha sido, como Alferes Miliciano, colocado no Centro de Instrução de Grupos Especiais e havia comandado um Grupo Especial, numa zona limítrofe à minha área de intervenção. Levou-me para sua casa, onde estaria em segurança, até resolver o que poderia fazer. Desloquei-me depois ao Cemitério da Ajuda para me recolher e rezar junto à campa do meu Pai.

Contactando, discretamente, vários camaradas que tinham conseguido escapar à sanha persecutória dos revolucionários esquerdistas, inteirei-me da situação que se vivia naquilo que fora a ditosa Pátria nossa amada e se tinha transformado num “país”. Portugal, reduzido às fronteiras da Primeira Dinastia, torna-se um “rectângulo”, um “Estado exíguo”, para citar a expressão utilizada pelo Professor Adriano Moreira. A ideia de restaurar o Império, de reconquistar os nossos territórios ultramarinos traiçoeiramente abandonados, era um sonho de impossível realização. Tínhamos de ser realistas. Os nossos objectivos eram outros; tinham de ser outros. Antes de tudo o mais um desejo ardente tinha de nos animar e nos inspirar: a vontade de vingar os nossos mortos.

Afastada da área do Poder a Esquerda Militar, e detidos ou em fuga os seus elementos mais aguerridos, o Partido Comunista e os seus satélites, que prudentemente haviam posto a viola no saco durante a confrontação militar de 25 de Novembro, tinham escapado às retaliações graças à intervenção em seu favor do Major Melo Antunes. Mas, de facto, parecia existir um terreno fértil, no panorama geral, para contestar muitas da celebradas “conquistas revolucionárias”. Os descontentes, outrora amedrontados pela repressão gonçalvista começavam a manifestar-se à luz do dia.

Entre os descontentes, que amaldiçoavam o 25 de Abril formavam na primeira linha as centenas de milhar de “retornados”, esses portugueses que fugindo à barbárie cafreal se acolhiam à Metrópole, onde muitos deles nunca tinham estado e onde teriam doravante de reconstruir as suas vidas, partindo da estaca zero. Chegados a Lisboa mercê das pontes aéreas que organizações internacionais haviam criado, ou desembarcando em barcos de pesca que tinham escapado de Angola, estes colonos que tinham perdido praticamente todos os seus bens de raiz, vinham traumatizados pelas cenas de horror a que tinham assistido.

Muitos antigos combatentes que durante meses a fio haviam sofrido as traiçoeiras investidas dos bandoleiros, assistiam agora de longe à imerecida vitória dos turras que tinham assassinado os seus companheiros no mato.

Também as numerosas vítimas dos “saneamentos” selvagens que haviam afastado dos seus postos professores universitários, juízes e outros magistrados, quadros empresariais e legítimos proprietários de bens confiscados ansiavam que, vencido o caos revolucionário, fosse restaurada a ordem e reconstruídas as suas vidas tão dolorosamente afectadas pelo descalabro do PREC.

A Esquerda via ameaçada a sua hegemonia. Era necessário e urgente aproveitar essa onda, para mobilizar descontentes, unir esforços e iniciar uma reconquista, pela militante reafirmação dos Valores Nacionalistas que os agentes subversivos haviam procurado destruir.

Para combater o sistema democrático era preciso incrementar uma resistência armada. Tinha conhecimento da existência estruturada de duas organizações rivais mas que não se defrontavam entre si no terreno embora os seus objectivos finais divergissem. A mais antiga era o Exército de Libertaçao de Portugal (E.L.P.) que congregava muitos amigos meus, camaradas de combates passados. A outra, que só veio a constituir-se na sequência da tentativa falhada do golpe militar do grupo spinolista em 11 de Março de 1975, era o Movimento Democrático de Libertação de Portugal (M.D.L.P.). A própria escolheu essa designação excluía a nossa participação activa, a não ser em casos pontuais no campo operacional. A minha opção lógica seria juntar-me logo que possível aos meus camaradas que integravam o E.L.P..

Sabia que o “santuário” do E.L.P. estava situado em Madrid. Teria, pois, de me deslocar à capital espanhola para fazer a minha apresentação. Estando impedido de efectuar essa viagem, transpondo a fronteira regularmente, teria de arranjar maneira de passar a mesma clandestinamente, o que carecia de uma cuidada preparação.

Desloquei-me portanto ao Porto, onde me encontrei com o meu Mestre, o Professor António José de Brito, verdadeiro guia espiritual da minha geração de jovens militantes fascistas, que escapara, para surpresas sua, às prisões arbitrárias que levaram para os calabouços muitos de nós. Publicara, em 1975, em pleno descalabro revolucionário, um livro espantoso de coragem, em edição de autor, intitulado “Diálogos de Doutrina Anti-Democrática”. Fui também pedir ajuda a um camarada da F.A.C. que era advogado no Porto, o Dr. Fernando Sousa Machado, que me pôs em contacto com o seu pai, também advogado, que haveria de encontrar maneira de me ajudar a transpor a fronteira clandestinamente. De facto prontificou-se imediatamente a colaborar nessa operação, apresentando-me um responsável da SICAL no Porto que conhecia, por dever de ofício, as redes de contrabandistas de café que levavam regularmente carregamentos de café português, muito apreciado em Espanha, e os pontos de passagem mais seguros.

Deste modo segui para Valença, no carro conduzido pelo pai do meu amigo Fernando, e a partir daí seguimos viagem para o nosso contacto em São Gregório. Aí o rio Minho não tinha praticamente caudal, e saltando de pedra em pedra, entrei em território espanhol enquanto o Dr. Sousa Machado e a sua Esposa passam o controlo fronteiriço na parte que ligava Portugal à Espanha. Na mala do carro, levavam a minha bagagem, que me devolvem já em território espanhol. Despedimo-nos com muita amizade e enquanto eles regressavam ao Porto, eu apanhei um autocarro que fazia a ligação com a cidade de Ourense onde poderia apanhar na estação principal um comboio com destino a Madrid.

Foi uma longa viagem nocturna até chegar finalmente à cidade espanhola. Como não sabia onde se encontravam exactamente os meus camaradas, fui ter ao escritório do Dr. Blas Piñar, meu velho amigo, que fora deputado nas Cortes Espanholas por designação pessoal do Caudillo, e continuava o bom combate à frente do movimento “Fuerza Nueva” que perpetuava a memória do fundado da Falange Española, José António Primo de Rivera, e assumia a herança política do Franquismo. O meu amigo de longa data, Blas Piñar, telefonou ao Professor Pedro Soares Martinez que se refugiara em Madrid, com a sua família, e estava em contacto directo com os demais membros do E.L.P.. Desloquei-me a sua casa, onde aguardámos que José Rebordão Esteves Pinto me fosse buscar. Reencontrei então esse velho amigo e camarada da F.A.C., com quem já tinha participado em tantas actividades nacionalistas, e que não via desde aquele nosso encontro em vésperas do golpe de Estado do 25 de Abril durante o qual me informara da iminente revolta de unidades militares sob o controlo dos conspiradores. Essas informações que lhe haviam sido transmitidas por um irmão envolvido na conspiração, foram para mim imediatamente comunicadas a quem podia e devia assegurar a defesa dos objectivos em maior risco e reprimir, preventivamente, os conspiradores. Nada foi feito, infelizmente, para impedir a concretização da ameaça nem sequer esboçada a necessária resistência. Foi uma capitulação total que provocou a queda do Governo, o fim do regime e a implosão do Império. A página mais negra da História de Portugal.

José Rebordão levou-me para uma casa onde estava alojado e pertencia a uns camaradas fascistas italianos que aí tinham instalado o seu quartel-general, sob a chefia de Stefano delle Chiaie, conhecido como Alfredo. Estavam refugiados em Espanha porque a maior parte deles era procurado pela polícia italiana. Fiquei também eu instalado na residência dos italianos, alguns dos quais eu já conhecia das minhas anteriores deslocações a Itália e ate um dele que fora meu colega na “Voz do Ocidente”, serviço da Emissora Nacional que difundia para a Europa, programas informativos e doutrinários, em língua francesa, inglesa e italiana. Tratava-se de Stefano Poltronieri, que usava o nome literário de Umberto Mazzotti. Tinha feito o seu conhecimento em Paris onde ele fora representar o F.U.A.N. (Frente Universitario de Azzione Nazionale) do M.S.I. (Movimento Sociale Italiano) numa reunião organizada pela F.E.N. (Fedération des Étudiants Nationalistes).

A esse camaradas italianos juntavam-se ainda os elementos da Aginter Press que tiveram de abandonar apressadamente a sua sede em Lisboa e se reuniram em Madrid, à volta de Yves-Guérin Sérac. Uma frutuosa colaboração diária se estabeleceu entre nós todos. Os italianos tinham aberto, como cobertura, um restaurante no centro de Madrid, denominado “Il Apuntamento”, onde habitualmente tomávamos as nossas refeições.

Enquanto o Professor Soares Martinez mantinha contactos regulares com entidades governamentais espanholas, ainda em funções e herdadas do Franquismo, José Rebordão tratava com muito empenho e competência da publicação oficial do E.L.P., “Libertação”. Num estilo directo e contundente, como era seu timbre, denunciava as artimanhas dos traidores, como nos primórdios da guerra do Ultramar havia já atacado os tíbios e cobardes através do grupo clandestino “Centuriões” de que fora um dos dinamizadores.

Muitos dos exilados portugueses que se encontravam em Madrid foram acolhidos por uma instituição religiosa, a Fundação Nossa Senhora de Fátima. Com a ajuda das freiras que integravam essa instituição católica, obtiveram desse modo, benevolentemente, alojamento e alimentação. Aí confraternizavam elementos ligados ao E.L.P. e ao M.D.L.P. para além de todas as divergências.

Quanto a mim, que já frequentara em Pamplona um curso de extensão universitária de jornalismo nos Estudos Gerais de Navarra, e outros em Madrid na Academia de Mandos José António, e tinha conversado e cultivado muitas amizades nos meios falangistas, estabeleci a ligação com Mariano Sánchez Covisa, antigo combatente da Divisão Azul na Frente Leste e elemento catalisador dos “Guerrilheiros de Cristo-Rei”. Também mantive o contacto com o Príncipe Sisto de Bourbon-Parma que dirigia os carlistas tradicionalistas e se tornara um grande amigo de Portugal, onde estive com ele várias vezes.

Muitos dos exilados foram regressando a Portugal, à medida que as perseguições de que haviam sido alvos cessaram. A situação na própria Espanha estava a mudar, a caminho de uma “democratização” que não favorecia a nossa presença. À medida que deixaram de ser “proscritos” e alvos de mandados de captura, muitos dos dirigentes dos próprios movimentos de resistência armada regressaram do Brasil, de Espanha e da África do Sul. Voltavam com a vontade de arrumar as botas depois de tantos combates e refazer as suas vidas, outros ainda com a esperança de poder vir a participar noutros combates, esses eminentemente culturais, para a reafirmação e exaltação dos valores pátrios tão vilipendiados.

De pé, sobre os escombros do que fora Portugal nacionalista e imperial, só nos restava a fidelidade aos Valores cujos princípios políticos que os consubstanciavam, tínhamos o dever de transmitir às novas gerações isentas da culpa de haverem traído a Pátria. Para que ouvissem entre as brumas da memória a voz dos seus egrégios avós.

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