Date: Mon 22-Mar-1999



DERROTA DE CENTRAL DO BRASIL

ENTRISTECE O SERTÃO

(23 de março de 1999)

José Rezende Jr.

Cruzeiro do Nordeste (PE) ­ Um homem inventa que a vida de horrores num campo de concentração nazista é apenas parte de um jogo, para que o filho não sofra. Um povoado esquecido no meio do sertão inventa que a vida é bela apesar dos horrores da seca, do desemprego e do abandono e passa a acreditar na própria invenção. Até que numa madrugada de segunda-feira, o sonho aparece desfeito numa tela gigante no meio da praça, no final de uma festa de São José.

A segunda-feira que seria de cinzas estava apenas começando no instante em

que o sonho de Cruzeiro do Nordeste acabou. Passa um minuto da meia-noite de

domingo quando a imagem ampliada da atriz Sophia Loren anuncia: "Roberto!"

Nenhum desses homens, mulheres e crianças sentados na praça com velas de romaria acesas precisa conhecer o tal Roberto – este que abre o sorriso escancarado dos vencedores -, para saber que perdeu.

Roberto Benigni, o que fez de um campo de concentração uma espécie de parque

de diversões no vitorioso A Vida É Bela, ri enquanto a professora Wanderlucy Bezerra, que dois anos antes, nessa mesma praça, diante da banca da escrevedora Dora (Fernanda Montenegro) ditava uma carta para a mãe falecida, aponta os olhos molhados para a chama da vela. Fernando dos Santos, 34 anos, que trabalhou como segurança da equipe no tempo em que um sonho bom chamado Central do Brasil passou por aqui, chora como não chorou no dia em que o Brasil perdeu a Copa do Mundo para a França. “A gente perdeu tanta noite de sono para fazer essas cenas bonitas...”, murmura, como se fosse um pouquinho dono daquelas cenas bonitas que o mesmo telão exibira horas antes.

CINEMA E PROGRESSO

A praça já vai ficando vazia quando, duas horas depois, um Jack Nicholson em tamanho gigante traz o segundo e último aviso fúnebre para Cruzeiro do Nordeste: Fernanda Montenegro, ou “a dona Fernanda”, ou simplesmente “a Fernanda”, também não ganhou o Oscar, esse prêmio que dona Josefa Conceição, 59 anos, nunca soube exatamente do que se tratava: “Oscar? É uma coisa feita de ouro, é não?”. Dona Josefa, que no filme aparece rezando na Casa de Oração quando Dora cai desmaiada, só tinha uma certeza: fosse ou não fosse de ouro, esse tal Oscar era importante que só.

Importante para o Brasil? Para o cinema brasileiro? Antes de tudo, importante para este povoado de 600 e poucos habitantes às margens de duas BRs que se cruzam.

“A gente merecia ganhar”, desabafa a varredora de rua Quitéria Alves Feitosa, 50 anos, sete filhos, enquanto o plástico verde da garrafa de guaraná que protege a chama da vela se dissolve em suas mãos.

A história de como o povo de Cruzeiro do Nordeste passou a merecer o Oscar começou a ser contada numa manhã de fevereiro de 1997, quando Walter Salles e

sua trupe desembarcaram por ali. No princípio, talvez fosse só a oportunidade de ganhar dinheiro onde não havia dinheiro a ser ganho, o encantamento de ver andando na rua artista de cinema que não se via nem em cinema, porque cinema nunca teve mesmo. Mas em seguida, era já uma ligação antiga e eterna entre os moradores e o filme. Como se Cruzeiro do Nordeste e Central do Brasil fossem uma coisa só.

Enquanto o filme acumulava prêmios internacionais, a cidade ganhava calçamento, máquina de transformar em potável a água salobra dos poços, agência de Correios. E virava notícia.

TERRA DO OSCAR

Para entender um pouco o que aconteceu nestes dois últimos anos, podemos falar de duas meninas. Ou desses dois cadernos que elas carregam para baixo e para cima. Roseane Veras, cuja mãe é faxineira na escola, tem 14 anos. Jéssica Talita Silva, filha de pai desempregado, tem 11.

A cerimônia do Oscar, essa de final infeliz, ainda não começou. O telão exibe

a cópia em vídeo de Central do Brasil. Elas já viram o filme um monte de vezes: na praça, na escola e até no clube onde esta noite ­ ao contrário do sucesso obtido na véspera pela banda Tampa de Crush ­ os forrozeiros da Chá de Boldo tocam para ninguém, uma vez que o povoado está em vigília diante do telão.

As meninas recitam em voz alta os diálogos do filme, que conhecem de cor. Interrompem a dublagem para contar o que se passou: “Antes, tinha sempre alguém indo embora daqui. Agora, tem até gente chegando!”, comemora Jéssica. “O povo de fora dizia que Cruzeiro do Nordeste era que nem carniça, não prestava pra nada. Agora, é a terra de Central do Brasil, a terra do Oscar”, completa Roseane, horas antes de Cruzeiro do Nordeste deixar de ser a terra do Oscar.

Jéssica e Roseane têm, cada uma delas, um caderno de autógrafos. Começaram com os de Fernanda Montenegro, Walter Salles, Vinícius de Oliveira. Logo, os artistas acabaram. As duas passaram, então, a encher as folhas com as assinaturas de jornalistas: famosos como Maurício Kubrusly ­ encarregado de transformar a esperança e a dor do povoado em flashes ao vivo para o Fantástico ­ ou completamente anônimos ­ mas ainda assim importantes demais para um lugarejo onde nunca acontecia nada que merecesse a atenção dessa gente que chega do Rio, São Paulo, Brasília com suas lentes e perguntas.

Os jornalistas foram embora ontem mesmo, de madrugada. Talvez não voltem nunca mais.

VIDA REAL

Mas a vida em Cruzeiro do Nordeste não é só tristeza depois da noite do Oscar. O povoado e os moradores deixaram de ser nada e ninguém. Da água encanada, só Deus e o governo federal sabem, mas o calçamento começou a chegar. Na sexta-feira anterior, dia de São José, os Correios inauguraram a primeira agência comunitária (para lugares com mais de 500 habitantes) do Brasil, justamente na cidade que serve de cenário para o filme onde as cartas quase nunca chegam ao destinatário.

Com os R$ 1.800,00 doados por Fernanda Montenegro no início do mês, a escola vai ter cisterna e caixa d'água. “Como ensinar higiene para os alunos, se não podíamos dar a eles nem água para lavar as mãos?”, agradece a diretora, Lucilda Feitosa.

“Central do Brasil abriu muitas portas. Quando a imprensa começa a se interessar por alguma coisa, os políticos também se interessam”, avalia o suplente de vereador José Pereira da Silva, o Zezinho. “Mas eu vejo muita coisa que a gente sonhou indo para o ar: a conclusão do calçamento, a água encanada...”

Mais próspero comerciante do povoado, o dono do posto de gasolina Elias Siqueira ­ que, escondido nos telhados, fez com uma filmadora doméstica o making off clandestino de Central do Brasil ­ resumia numa frase a tragédia do Oscar: “Tenho medo que tudo volte a ser o que era antes.”

Mas o final dessa história pode estar em aberto. Talvez a experiência de viajar com Dora e Josué faça com que Cruzeiro do Nordeste não seja mais a mesma. Socorro, mulher de Fernando, o homem que de madrugada chorava o Oscar perdido, voltou a estudar depois de parir cinco filhos. Está na sexta série. Márcio, 18 anos, o filho mais velho, escreve e dirige peças de teatro como nunca. E pode ser que, daqui para frente, todos lutem ainda mais pelo sonho da água encanada.

Mas também pode ser que a vida volte ao normal. Uma vida que, na vida real, nunca foi tão bela em Cruzeiro do Nordeste.

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download