Do Rovuma ao Maputo - Antologia de Autores Africanos



Do Rovuma ao Maputo - Antologia de Autores Africanos

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Do Rovuma ao Maputo

Antologia de Autores Africanos

Organizada por

Carlos Pinto Pereira

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Introdução a esta edição

Entre Brasil e os países africanos de língua portuguesa, "apenas um mar nos separa"...e isto é muito pouco nos dias de hoje. O leitor desta RocketEdition TM da eBooksBrasil vai notar, pelos escritos de seus poetas e escritores, que a língua, o coração e a história nos une.

Resultado da correspondência entre amigos, infelizmente este exemplar não pode reproduzir a correspondência entre eles, que se trata de literatura epistolar...e das boas.

Ela, entretanto, está disponível em "Autores Africanos - Do Rovuma ao Maputo" [] coordenado por Carlos Pinto Pereira [Carlos.Pinto-Pereira@cern.ch], obra que mantém em conjunto, entre outros, com Mario Vaz [mario.vaz@sympatico.ca], Joaquim Fale [Joaquim Fale: joaquim@joafal.uem.mz], Vicenzo Barca [Vincenzo Barca: mc8717@mclink.it], Abdul Cadre [abdulcadre@mail.telepac.pt], Eduardo M.L. Paes Mamede [e.p.mamede@mail.telepac.pt], Paulo Lemos: [lemoszp@.br], Margarida: [guidasc@.br].

Ao corresponder-me com ele sobre esta edição, recebi este e-mail que, por si só, vale por uma apresentação, e por isso aqui vai transcrito:

Viva Teotonio

Aqui estou a responder-lhe como prometi ontem.

Como deve imaginar não tenho quaisquer direitos de autor sobre os poemas publicado na WEB e faço-o (fazemo-lo) pois achamos que é uma maneira de os fazer conhecer.

Se o seu objectivo é o mesmo então ficaremos muito gratos que lhe dêem ainda mais possibilidades de se fazerem conhecer.

Um abraço para si também.

               Carlos

Sim, leitor, queremos que você os conheça. Por isso, sem mais, a eles.

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ÍNDICE

A - B - C - D - E - F - G - J - K - L - M - N - O - P - R - S - T - V - W - Z

- A -

ABRANCHES, Henrique (Ago)

Ao Bater da Chuva

ALBA, Sebastião(Moz)

A Pomba para o Cheina

ALCÂNTARA, Adriamo (Moz)

A Utopia dos Olhos Escancarados

ALCÂNTARA, Oswaldo (Cpv)

Filho

ANAHORY, Terêncio (Cpv)

Nha Codê

ANDRADE, Costa (Ago)

Contratados

ANTÓNIO, Mário (Ago)

Uma Negra Convertida

Rua da Maianga

ARTUR, J.Armando (Moz)

Arte de Viver

Divagações

AZEVEDO, Lícinio (Moz)

O Comboio de Sal e Açúcar

AZEVEDO, Pedro Corsino (Cpv)

Conquista

Galinha Branca

Terra Longe

- B -

BARBEITOS, Arlindo (Ago)

Em Teus Dentes

Esperança

Mão Frágil

Saudade

Vem Ver

BARBOSA, Jorge (Cpv)

Canção de Embalar

Prelúdio

BARCA, Alberto da (Moz)

Um Cão em Maputo

BUCUANE, Juvena (Moz)

O Húmus do Homem Novo

- C -

CACHAMBA, Simeão (Moz)

Xikalamidade

Xirico

CANCIONEIRO - Vamos Cantar, Crianças

Cantos 1-4

CARDOSO, António (Ago)

Árvore de Frutos

Um dia

CARDOSO, Carlos (Moz)

Cidade 1985

CARVALHO, Ruy Duarte de (Ago)

Chagas de Salitre

Dias Claros

Diogo Cão às Portas do Zaire

Novembrina Solene

Venho de um Sul

CASSAMO, Suleiman (Moz)

Nyeleti, Conto

Amor de Baoba

CHIZIANE, Paulina (Moz)

Balada de Amor ao Vento

COUTO, Fernando (Moz)

Feições Para um Retrato

COUTO, Mia (Moz)

A Adivinha

A Confissão de Nhonhoso

A Multiplicação dos Filhos

Estréia nos Viventes

Cartas dos Primos Ladrões

Governado Pelos Mortos

Mar Me Quer

Nas Águas do Tempo

Venho Aqui Brincar no Português

CRAVEIRINHA, José (Moz)

A Nossa Casa

Aldeia Queimada

Barbearia

A Boca

Cela 1

Depoimento Autobiográfico

Eles Foram Lá

Fábula

Gente a Trouxe-Mouxe

Gula

Outra Beleza

Reza Maria

Sementeira

Terra de Canaã

CRUZ, Viriato (Ago)

Makèzú

Namoro

Serão de Menino

- D -

DÁSKALOS, Alexandre (Ago)

A Sombra das Galeras

Carta

Manhã

No Temporal da Revolução

O Meu Amor

Poesias

Porto

E Agora Só Me Restam

DICK, Stefan Florana

Um Epidécio ao Escritor Maconde

- E -

ESPÍRITO SANTO, Alda (Stp)

Em Torno da Minha Baia

Onde Estão os Homens...

- F -

FALÉ, Joaquim

Filhos da Miséria

FEIJOÓ, Lopito (Ago)

Meditando

FILIMONE, Manuel Meigos (Moz)

Arremessos

FILIPE, Daniel (Cpv)

A Ilha e a Solidão - Morna

FONSECA, Mário (Cpv)

Viagem na Noite Longa

FORTES, Corsino (Cpv)

De Boca a Barlavento

Girassol

Pecado Original

FUCHS, Elisa (coord)

O Macaco e o Cágado

- G -

GEDEÃO, António (Prt)

A Pedra Filosofal

GONÇALVES, Carneiro

A Guerra dos 100 Anos

A Lua do Advogado

GONÇALVES, Zeto Cunha (Ago)

Escorraçados da Morte

Os Ombros Modulam o Vento

GUERRA, Henrique (Ago)

Vem, Cacimbo

GUITA Jr. (Ago)

Por uma Sereia de Treva

Psicoalteração do Rato

No Jardim da Noite com Estrelas

- J -

JACINTO, António - (Ago)

Carta Dum Contratado

Castigo Pró Comboio Malandro

Declaração

Era Uma Vez

Monangamba

Vadiagem

- K -

KHAN, Gulamo (Moz)

Moçambicanto I

KNEPE, Grandal (Moz)

Casa da Justiça

KNOPFLI, Rui (Prt)

Aeroporto

Mangas Verdes com Sal

Matinés do Scala

Miradouro

Naturalidade

A Pedra no Caminho

- L -

LANGA, Hortencio (Moz)

Mabogue ya M'bizwa

Topas-ou-viras

LARA, Alda (Ago)

Noite

Prelúdio

Presença Africana

Regresso

Rumo

LEMOS, Gouvea (Moz)

Canção da Angonia

LOBO, Manuel Sousa (Moz)

Menir Barroco

- M -

MABUNDA, Emído

Moçambique

Vozes do Sangue

MAIMONA, João (Ago)

Arte Poética

As Muralhas da Noite

Memória

Poema para Carlos Drummond de Andrade

MARGARIDO, Maria Manuela (Stp)

Alto Como o Silêncio

Paisagem

Serviçais

Socopé

Vós Que Ocupais a Nossa Terra

MARIANO, Gabriel (Cpv)

Caminho Longe

Única Dádiva

MATUSSE, Hilário M. E.

Candongas

A Viagem do Adalfredo

MAZUZE, Simeão

Calças Molhadas

Picasso

MEIGOS, Filimone (Ago)

Morte

MELO, João (Ago)

Dunas

MENDES, Orlando (Moz)

Exortação

História

Noiva

Para um Fabulário

MENDONÇA, José Luís (Ago)

De Asas Sob a Terra

MESTRE, David (Ago)

África

Espera

O Sol Nasce a Oriente

MOMPLÉ, Líla

Os Olhos da Cobra Verde

Stress

MORAZZO, Yolanda (Cpv)

Barcos

MOSSE, Marcelo (Moz)

Chão de Pátria

MUIANGA, Aldino (Ago)

A Noiva de Kebera

Maria, Minh'amor

MUTEIA, Helder (Moz)

Ai o Mar

Ensaio de Lágrimas

Reflexão

- N -

NETO, Agostinho (Ago)

Antigamente Era

Com os Olhos Secos

Confiança

Lá no Horizonte ou 'Poesia Africana'

O Choro de África

NETO, Eugénia (Prt/Ago)

Poema à Mãe Angolana

NEVES e SOUSA (Ago)

Angolano

Ilha de Moçambique

NGWENYA Malagatana Valente e N. Mutxhini (Moz)

A Coruja

Amor Verde

Double Trouble

Mamã Preocupada

Pensar Alto

- O -

OSÓRIO, Oswaldo (Cpv)

O Cântico do Habitante

Cavalos de Silex

Holanda

Manhã Inflor

- P -

PANGUANA, Marcelo (Moz)

A Lua e a Morte

PINDULA, Mauro

Morte em Dois Actos

PINTO DE ABREU, António (Moz)

Milagre Obstéctrico

PIRES, Virgilio - (Cpv)

Mané Fú

Reminiscência

- R -

ROCHA, Jofre (Ago)

Paisagem do Nordeste

Quando a Manhã Vier

ROMANO, Luis (Cpv)

Símbolo

Vida

RUI, Manuel (Ago)

O Jogo

Museu

- S -

SANTANA, Ana de (Ago)

A Abóbora Menina

Núpcias

Rapariga

SANTOS, Aires de Almeida (Ago)

Mulemba

Meu Amor da Rua Onze

SANTOS, Arnaldo (Ago)

A Vigília do Pescador

SANTOS, Marcelino ou Lilinho Micaia Kalungano (Moz)

Ódio

Sonho de Mãe Negra

SANTOS, Monteiro (Ago)

Tudo Treme

SAUTE, Nelson

A Pátria Dividida

Ignorância

SILVA, M. Correia da (Ago)

Canção do Silêncio

SILVEIRA, Onesimo (Cpv)

As Águas

Quadro

SOUSA, Julião Soares (Gwb)

Cantos de Meu País

SOUSA, Noémia (Moz)

Magaíça

SUKRATO (Cpv)

Não me Lavem o Rosto

- T -

TAVARES, José Luís (Cpv)

Curvo-me

TAVARES, Paula (Ago)

Cerimónia de Passagem

TENREIRO, Francisco José (Stp)

Coração em África

Romance de San Martinho

TOMÉ, António (Moz)

O Coleccionador de Quimeras

Nunca é Tarde

- V -

VARIO, João (Cpv)

Exemplo

Fragmento

VASCONCELOS, Leite (Moz)

Canto do Verbo em Busca da Forma

Declaração

Ladaínha

VENTURA, Reis (Ago)

Baião de Luanda

VELHA, Cândido da (Ago)

As Idades da Pedra

VICTOR, Geraldo Bessa (Ago)

Chove

Não Venhas Mais ao Cais

O Menino Negro Não Entrou na Roda

O Feitiço do Batuque

VIEGAS, Alberto (Ago)

Camaleão

VIEGAS, Jorge (Moz)

Nirvana

VIEIRA, Armério (Cpv)

Isto é Que Fazem de Nós

Mar

VIEIRA, Carlos-Edmilson M. (Gwb)

Sofrimento

VIEIRA da CRUZ, Tomáz (Ago)

Coqueiro

Fruta

N'gola

Quissange - Saudade Negra

Rebita

Romance de Luanda

VIEIRA, Luandino (Ago)

Canção para Luanda

Sons

VILANOVA, João Maria (Ago)

Canção para Joana Maluca

Canção na Morte de Nga-Caxombo

VIMARO, Tomas (Moz)

Lei do Passe

VIRGÍNIO, Teobaldo (Cpv)

Rota Longa

- W -

WHITE, Eduardo (Moz)

O país de Mim

Poemas da Ciência de Voar

- Z -

ZIMBA, Carlos (Moz)

Sorrisos Mutilados

ZITA, Isaac (Moz)

Os Molwenes

Alguns Dados Biográficos

Esta edição

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Ao Bater da Chuva

Autor: Henrique Abranches

(Angola)

A porta fechada é uma obsessão.

As vozes caladas em torno de nós,

as pausas alongadas em silêncios de uma angústia

nova,

são a descontinuidade do tempo interrompido

dentro da casa que arrombaram ontem,

no coração da aldeia do Mazozo.

A chuva cai em bátegas doces, a chuva bate o capim

molhado,

e soa...

A humanidade é fria.

As mulheres já choraram tudo

- A Mãe Gonga comandou o coro.

Esvaem-se agora em surdina muda,

que agudiza o bater da chuva.

Os homens dizem de quando em quando

um nome obstinado.

Chamava-se Infeliz

aquele rapaz

que levaram ontem

do coração da aldeia.

A chuva matraqueia ainda e sempre

na porta fechada como uma obsessão.

Como ela nos lembra o som odiado

que dia após dia

nos sobressalta!

Como ela recorda o som da metralha,

que dia após dia

desce o morro da Calomboloca

e bate naquela porta fechada,

obsecada de protecção!

A gente conhece o som da metralha

quando ela vem no fim do dia.

Quando ela vem, silencia a aldeia,

então, em sobressalto, o povo diz:

- Foram fuzilados...

E ninguém sabe do Infeliz,

aquele rapaz que levaram ontem...

A Pomba Para o Cheina

Autor: Sebastião Alba

Moçambique

Do livro "A noite Dividida", Edições 70, Lisboa 1981

Pontos de vista

entrecruzam as balas

e nós ensaiamos a pomba

desenhando-a encurvando-lhe

o dorso antes do voo

largando-a no prisma puro

dos olhares da multidão

Logo uma estrela fugaz

se lhe cola ao bico

Rodopiará no céu entre colunas

colossais de cogumelos

e sóis que a inflectem

mas bem aninhada no oco

habitáculo de penas

com a chave em nossa mão.

A Utopia dos Olhos Escancarados

Autor: Adriano Alcântara

Nos Cadernos "Diálogo" alguns autores desconhecidos do grande público tiveram a oportunidade de ver trabalhos seus publicados. É o caso de Adriano Alcântara. - Joaquim Falé

Se num momento de loucura

acaso arriscares acima do tédio

e afoito sozinho dobrares

a agreste solidão da esquina dos dias,

poderás então entrever

por entre as brumas do tempo

a imensa multidão e o verde prazer

das tuas mais urgentes utopias.

Se depois com ardor escreveres

- ridícula como o poeta a dizia -

uma simples carta de amor

cuja verdade ofereça fogosa o seu pudor

sinceros significados tão prementes

que a ouro fiquem bordados

no seio nu das palavras inexistentes,

imune farás tombar do muro os pecados

com que este presente impune

procura sarcástico esconder-nos o futuro.

Se porém impossível te for

a sangria das palavras a sério

e ao cansaço sem outra saída

com fúria não conseguires opor

a beleza dum punho bem apertado,

arrepia caminho e não ouses.

Nunca ouses monstro malfadado

dobrar a esquina deste tempo

de cobardias prenhe e silêncios cheio.

Porque só o amor mata a hipocrisia

e reconhece os homens iguais

porque para além deste dia

só de olhos escancarados se sonha a utopia.

Filho

Autor: Oswaldo Alcântara

(Cabo Verde)

Nicolau, menino, entra.

Onde estiveste, Nicolau,

que trazes a arrastar

o teu brinquedo morto?

Nicolau, menino, entra.

Vem dizer-me onde foi que tu estiveste

e a estrela fugiu das tuas mãos.

Tens comigo o teu catre de lona velha.

Deita-te, Nicolau, o fantasma ficou lá longe.

Dorme sem medo.

Porão, roça, medos imediatos,

tudo ficou lá longe.

Quando acordares a jornada será mais longa.

Nicolau, menino,

onde foi que deixaste

o corpo que te conheci?

Deus há-de querer que o sono te venha depressa

no meu catre.

Nha Codê

Autor: Terêncio Anahory

(Cabo Verde)

in "Caminho longe", 1962

Tiraram o lume dos teus olhos

e fizeram braseiro

para aquecer a noite fria;

noite de qualquer dia.

Roubaram o teu riso

e encheram de gargalhadas

de luz e de música

as suas reuniões frustradas.

Da tua pele fizeram tambor

para nos ajuntar no terreiro!

Dondê nha Codê?

Não

não mataram o meu filho

que eu sei que o meu filho não morre.

(Se choro

são saudades de nha Codê...)

Nha Codê vive

na evocação de um mundo distante

no riso e no choro das ervas rasteiras

na solidão dos campos

nas pândegas de marinheiros

na vida que nasce e morre

em cada dia que passa!

... E em mim

essa saudade de nha Codê!

Contratados

Autor:Costa Andrade

(Angola)

(1959)

A hora do sol posto

as rolas traçam

          desenhos de feitiços sinuosos

caminhos sob a calma das mulembas

e abraços de segredos e silêncios.

          ...longe...muito longe

          um risco brando

          acorda os ecos dos quissanjes

          vermelho como o fogo das queimadas

com imagens de mucuisses e luar.

          Canções que os velhos cantam

          murmurando.

e nos homens cansados de lembrar

          a distância vai calando mágoas.

renasce em cada braço

          a força de um secreto entendimento.

Uma Negra Convertida

Autor: Mário Antonio

(Angola)

Minha avó negra, de panos escuros,

da cor do carvão...

Minha avó negra de panos escuros

que nunca mais deixou...

Andas de luto,

toda és tristeza...

Heroína de idéias,

rompeste com a velha tradição

dos cazumbis, dos quimbandas...

Não xinguilas, no óbito.

Tuas mãos de dedos encarquilhados,

tuas mãos calosas da enxada,

tuas mãos que preparam mimos da Nossa Terra,

quitabas e quifufutilas - ,

tuas mãos, ora tranquilas,

desfilam as contas gastas de um rosário já velho...

Teus olhos perderam o brilho;

e da tua mocidade

só te ficou a saudade

e um colar de missangas...

Avózinha,

às vezes, ouço vozes que te segredam

saudades da tua velha sanzala,

da cubata onde nasceste,

das algazarras dos óbitos,

das tentadoras mentiras do quimbanda,

dos sonhos de alambamento

que supunhas merecer...

E penso que... se pudesses,

talvez revivesses

as velhas tradições!

Rua da Maianga

Autor: Mário Antonio

Angola

Rua da Maianga

que traz o nome de um qualquer missionário

mas para nós somente

a rua da Maianga

Rua da Maianga às duas horas da tarde

lembrança das minhas idas para a escola

e depois para o liceu

Rua da Maianga dos meus surdos rancores

que sentiste os meus passos alterados

e os ardores da minha mocidade

e a ânsia dos meus choros desabalados!

Rua da Maiaga às seis horas e meia

apito do comboio estremecendo os muros

Rua antiga de pedra incerta

que feriu meus pezitos de criança

e onde depois o alcatrão veio lembrar

velocidades aos carros

e foi luto na minha infância passada!

(Nene foi levado pró hospital

meus olhos encontraram Nene morto

meu companheiro de infância de olhos vivos

seu corpo morto numa pedra fria!)

Rua da Maianga a qualquer hora do dia

as mesmas caras nos muros

(As caras da minha infância

nos muros inacabados!)

as moças nas janelas fingindo costurar

a velha gorda faladeira

e a pequena moeda na mão do menino

e a goiaba chamando dos cestos

à porta das casas!

(Tão parecido comigo esse menino!)

Rua da Maianga a qualquer hora

o liso alcatrão e as suas casas

as eternas moças de muro

Rua da Maianga me lembrando

meu passado inutilmente belo

inutilmente cheio de saudade!

A Arte de Viver

Autor: Armando Artur

Moçambique

Habito no halo

dos meus versos

onde incansavelmente

rimo palavras sem rima

e seco lágrimas sem pranto

é a arte de viver...

como lacrar a vida e o amor

sem cantar?

como vencer o tédio e o temor

sem bailar?

eis a razão

porque sonho sem sono

porque voo sem asas

porque vivo sem vida

no avesso dos versos escondo

o tesouro da minha contrariedade

o mistério da minha enfermidade

e o feitiço da minha eternidade

Divagações

Autor: Armando Artur

Moçambique

Capítulo de "Estrangeiros de Nós Próprios"

Publicado pela AEMO, Associação dos Escritores Moçambicanos, nº 15 da colecção Timbila (outubro de 1996)

Pelo dever

de resistir e caminhar

pelos destroços da nossa utopia,

eis-nos aqui de novo, acocorados,

aqui onde o tempo pára

e as coisas mudam.

E para que o nosso sonho renasça

com a levitação do vento e do grão,

eis-nos aqui de novo,

passivos como os espelhos,

no tear da nossa existência.

Este sempre será

O nosso amanhecer.

E a nossa perseverança

é como a da erva daninha

que lentamente desponta na pedra nua."

O Comboio de Sal e Açúcar

Autor: Licínio de Azevedo

Moçambique

Trechos do livro "O comboio de sal e açúcar", editado em 1997

"- Vocês não podem fazer isto! - diz Omar, com gravidade.

Os soldados espantam-se.

- Eu conheço os regulamentos militares. Vocês estão aqui para defender o comboio e o que ele transporta, não podem tocar na carga - afirma.

- Cuidado, velhote - diz um dos soldados. No próximo combate, a primeira bala é para ti.

Omar não se intimida.

- Eu sou o condutor coordenador destes três comboios. Vocês põem nos vossos relatórios que o vagão foi assaltado mas nós, nos nossos, temos que escrever a verdade, pois respondemos pela carga perante os CFM.

- Não digas que não te avisámos, velhote - fala o soldado que parece liderar os outros e se afasta, levando os companheiros consigo. - Este velho é maluco, quer confusão com a tropa.

- Vamos dar-te chamboco - diz outro soldado, ameaçando Omar com a mão fechada, como se agarrasse um pau.

- Um tiro. Basta um tiro - defende o primeiro.

A tentativa de saque obriga Omar a permanecer no seu furgão, com atenção redobrada aos vagões de carga.

Informados de que vão ficar ali até o dia seguinte, os viajantes instalam-se nos arredores dos comboios, com as suas cozinhas improvisadas, esteiras e mantas que nem todos têm. Surge logo um pequeno mercado de lenha, junto à estação. Muitos "passageiros" percorrem as cantinas, mas não há nada à venda. Elas continuam abertas apenas por formalidade, há muito que não são abastecidas."

.........

"No 1103, com uma atitude agressiva, indiferente aos olhares das pessoas que circulam por ali, o alferes Salomão está parado diante de uma jovem de pouco mais de vinte anos, grande e bonita, vestida com modéstia, mas gente de cidade.

- Não vou - diz a jovem, com firmeza.

- Eu dou-te um tiro - ameaça Salomão.

- Não sou sua mulher. Não vou cozinhar para si - ela grita, aperta os lábios e bate com o pé direito no chão.

As pessoas que estão por perto fingem nada ver ou ouvir e afastam-se, é melhor não se envolver em assuntos de militar com mulher. Mesmo assim, Salomão lhes grita:

- Saiam daqui! O que querem?

Ele agarra a jovem por um braço e começa a arrastá-la para o "ferro" onde está o barco. Ela resiste, determinada a não ceder, mas as suas forças são insuficientes contra os músculos bem treinados e a habilidade do corpo seco do alferes. Ela não pára de gritar.

- Largue-me! Largue-me!

Soldados que assistem à cena sorriem, como se fosse algo tão natural como marido bater em mulher que não obedece.

- Esta gaja tem que levar porrada - comenta um deles.

- O alferes vai dar-lhe porrada é na esteira - diz um outro. - Vai pilar esta gaja!

Salomão arrasta a jovem para junto do "ferro", mas não consegue fazê-la subir. Para isto precisa de mais do que a sua força física e leva a mão ao coldre.

- Quer ajuda, Salomão? - pergunta o tenente Taiar, parando ao seu lado.

Surpreendido, o alferes olha para Taiar sem sacar a pistola nem largar a jovem, que acredita estar, agora, completamente perdida.

- Largue-a! - Taiar ordena, mansamente.

A sua ordem espalha electricidade no ar. Os soldados mais próximos, todos eles da escolta de Salomão, param de sorrir e observam a cena, com manifesta antipatia pelo tenente. Os civis demonstram agora que vêem e ouvem, como se alguém tivesse tocado na corda adormecida da sua coragem.

- Tenente, capitão, ninguém me dá ordens a respeito de mulher - declara Salomão, exaltado. - Ganhei a minha patente a combater. Dez anos! Tenho direito à mulher que quero!

Ao responder ao tenente, no entanto, ele larga o braço da jovem que se afasta uns metros, com dignidade, e fica a assistir ao desfecho do confronto. Taiar permanece calmo, enfrentando em silêncio o olhar ameaçador de Salomão.

- Aqui a conversa é de homem para homem e quem manda no meu comboio sou eu - continua o alferes.

- Não me provoques, Salomão - diz Taiar, sem erguer a voz, seguro de si.

Dois soldados do alferes aproximam-se, querendo intimidar Taiar com as suas AKM. Sem lhes dar atenção, indiferente à expressão de desprezo de Salomão, o tenente segue em direcção ao seu comboio. A jovem segue atrás dele e emparelha com a sua marcha.

- Obrigada por me ter ajudado. O meu nome é Rosa, gostaria de ir para o seu comboio, pois aqui já não me sinto segura. Sou enfermeira, posso...

- Faça o que quiser - diz Taiar, sem se deter, mal olhando para ela.

Ela corre até o "ferro" onde tem a sua bagagem, duas sacolas de tamanho médio e um estojo branco com uma cruz vermelha, pega nela e vai atrás dele, andando com dificuldade devido ao peso. Sem voltar a olhar para ela, Taiar dirige-se ao furgão do 1101, para dormir um pouco.

Rosa percorre a composição e decide-se, sem nenhum motivo especial, por ficar no meio dela, no "ferro" em que está Mariamu.

Um casal que viaja no 1103, testemunha do ocorrido com Rosa, procura também mudar-se para o 1101. Salomão impede-o, como quem pronuncia uma condenação:

- Ninguém muda de comboio durante a viagem. De agora em diante, cada um tem lugar marcado."

Licínio de Azevedo é um cineasta brasileiro radicado em Moçambique.

Conquista

Autor: Pedro Corsino Azevedo

(Cabo Verde)

in "Claridade", n°5, 1947

Trás!...

Explodiu a Verdade,

Agora sou capaz

De tudo

Indiferente e quedo e mudo

Deixarei escangalhar o brinquedo

Que temi na Infância,

Rasgou-se o céu em mil fatias lindas,

Ricos

Fanicos

Que recolhi na mão.

          Desilusão!

              Cristal, cristal, cristal!

E eu a namorar o mal...

Galinha Branca

Autor: Pedro Corsino Azevedo

(Cabo Verde)

in "Mensagem", Casa dos Estudantes do Império, ano XVI, n°6, julho 1964

Sol de Agosto.

Raios a prumo.

Nem dá gosto

Viver.

Litoral ardente.

Montes nus.

Pó vermelho,

Na valsa doida do vento leste.

Meio-dia.

Nem pinga de água...

O céu plasmando infernos.

A agonia

Da gente pobre

- Pobre de tudo -,

O olhar mudo

Que sufoca gritos

Que não partem.

Mas:

Noite de luar,

Vento amainado.

Depois da ceia,

Brincam crianças

Ao canto da varanda:

Galinha

Branca

Que anda

Por casa

De gente

Catando

Grão

De milho.

E mais:

É mim

É bô

É Carlos

É Valério

É Fêdo.

Somos todos, todos,

Catando

Grão

De milho

Em anos de crise,

E mais...

- Não!...

Canivetinho

Canivetão





França.

Galinha branca

O espectro da morte

A sorte

De todos.

Olha pra mim!

Assim.

Canivetinho

Canivetão





França.

- A única esperança...

França lendária

Terra longínqua

De onde os meninos

Costumam vir em cestos

E para onde

Em anos de crise

Num cesto de pau

(Mácabra nau!)

Canivetinho

Canivetão

Coitadinhos

Vão!...

Terra-Longe

Autor: Pedro Corsino Azevedo (1905-1942)

(Cabo Verde)

in Claridade,1947

Aqui, perdido, distante

das realidades que apenas sonhei,

cansado pela febre do mais-além,

suponho

minha mãe a embalar-me,

eu, pequenino, zangado pelo sonho que não vinha.

"Ai, não montes tal cavalinho,

tal cavalinho vai terra-longe,

terra-longe tem gente-gentio,

gente-gentio come gente"

A doce toada

meu sono caía de manso

da boca de minha mãe:

"Cala, cala, meu menino,

terra-longe tem gente gentio

gente-gentio come gente".

Depois vieram os anos,

e, com eles, tantas saudades!...

Hoje, lá no fundo, gritam: vai!

Mas a voz da minha mãe,

a gemer de mansinho

cantigas da minha infância,

aconselha ao filho amado:

"Terra-longe tem gente-gentio,

gente-gentio come gente".

Terra-longe! terra-longe!...

           - Oh mãe que me embalaste

           - Oh meu querer bipartido!

Em Teus Dentes

Autor: Arlindo Barbeitos

Angola

Em teus dentes

o sol

é diamante de fantasia

a lua

caco-de-garrafa

e

a mentira

verdade vagabunda

errando de cágado

em torno da lagoa dos olhos da noite

na treva aveludada

de tua pele

os dedos curiosos

são estrelas de marfim

à busca

de um dia caprichoso

despontando de miragem

por detrás das corcundas de elefantes adormecidos

           (Angola, angolê, angolêma)

Esperança

Autor: Arlindo Barbeitos

Angola

in "Vozes poéticas da lusofonia", Sintra 1999

Por entre as margens da esperança

           /e da morte

meteste a tua mão

e

eu vi alongados nas águas

os dedos que me agarram

em lagoa de um sonho

corpo de jacaré

é soturna jangada de palavras

           /secas

por entre as margens da esperança

           /e da morte

Mão Frágil

Autor: Arlindo Barbeitos

Angola

em mão frágil de amarelo

se quebra o galho de gajajeira

pela tardinha vermelha em flor

sussurrar de vento

não é voz de capim crescendo

é murmúrio impaciente

de gentes

no azul de parte alguma

em mão frágil de amarelo

se quebra o galho da gajajeira

pela tardinha vermelha em flor

           (Angola, angolê, angolêma)

Saudade

Autor: Arlindo Barbeitos

Angola, 1940

saudade

é o tempo de pacassas pardas

e macacos sem rabo servindo de administradores

quando o calor ia derretendo o céu

e a chuva se vendia na farmácia

do comerciante de cabelos de fio

saudade

é o tempo de patos bravos

e macacos sem rabo servindo de padres

quando o medo ia gelando a terra

e o pranto se dava de beber aos porcos

do comerciante de cabelos de fio

           (Angola, Angolê, Angolêma)

Vem Ver

Autor: Arlindo Barbeitos

Angola

escuras núvens grossas de outros céus vindas

entrançando-se por entre asas de pássaros canibais

e

chuva de feiticeiro

em sopro

de arco-íris dependurada

irmão

vem vem

escuras núvens grossas

temem o sol de nossos olhos todos

pássaros canibais

a garra de nossas mãos todas

e

chuva de feiticeiro

se perde no ar de nossos copos todos

irmão

vem vem

           (Angola, Angolê, Angolêma)

Canção de Embalar

Autor: Jorge Barbosa

Cabo Verde

in "Ambiente", 1941

"Dorme Maninho

pra não vir Ti Lobo..."

Maninho

volta-se e dorme

no colchão de saco vazio

sobre a terra batida.

Ao lado no chão dormindo também

o naviozinho de lata

que fez com suas mãos...

Apaga-se a luz.

Maninho acorda depois

por causa da voz falando baixinho

segredando

no meio escuro...

Não fala de mamãe...

Ti Lobo talvez...

Mas nhô Chico Polícia há dias contava:

"Ti Lobo não tem..."

Essa voz nocturna segredando...

O homem branco talvez

que lá vai de vez enquando...

"Dorme Maninho

pra não vir Ti Lobo..."

Volta-se e torna a dormir...

Amanhã cedo vai correr o naviozinho de lata

nas poças da Praia Negra...

Prelúdio

Autor: Jorge Barbosa

Cabo Verde

"Cadernos de um ilhéu", 1956

Quando o descobridor chegou à primeira ilha

nem homens nus

nem mulheres nuas

espreitando

inocentes e medrosos

detrás da vegetação.

Nem setas venenosas vindas no ar

nem gritos de alarme e de guerra

ecoando pelos montes.

Havia somente

as aves de rapina

           de garras afiadas

as aves marítimas

           de voo largo

as aves canoras

           assobiando inéditas melodias.

E a vegetação

cuja sementes vieram presas

nas asas dos pássaros

ao serem arrastadas para cá

pelas fúrias dos temporais.

Quando o descobridor chegou

e saltou da proa do escaler varado na praia

enterrando

o pé direito na areia molhada

e se persignou

receoso ainda e surpreso

pensando n'El-Rei

nessa hora então

nessa hora inicial

começou a cumprir-se

este destino ainda de todos nós.

Um Cão em Maputo

Autor: Alberto da Barca

Trecho do livro "Um cão em Maputo", Editora Escolar, 1990

"Leão apercebeu-se de que ninguém lhe ligava importância. Assim, entrou casa adentro. Não procurou pelas panelas. Procurou sim pelo dono - pelo Langa. Encontrou-o a ressonar, enquanto fazia a sesta. Leão sentou-se quieto olhando faminto para o Langa.

Este, continuou o seu sono pesado e imperturbável, interrompido de quando em quando por soluços e arrotos causados pela muita cerveja que bebera ao almoço. Esvaziou cinco garrafas, e lamentou o facto de o "sócio" só lhe ter arranjado tão pouca quantidade para uma refeição de Domingo, normalmente mais regada com o referido líquido. O sono era profundo. Um sono bêbado. Não deu pela presença do cão. O cão faminto latiu. Com efeito, Langa acordou. Tinha os olhos vermelhos e um ar aborrecido, indisposto, pois não tolera que lhe interrompam o sono em nenhuma circunstância. E neste caso, era um cão! Um cão indesejado desde o primeiro dia. Langa pegou no sapato que descalçara, e com força e velocidade, atingiu o focinho do Leão em cheio. O bicho latiu de dor, e, com o rabo entre as pernas e o focinho descaído, desandou para fora, para o quintal.

Deitou-se à sombra da laranjeira, sofrendo agora mais uma dor - a da sapatada no focinho. Pensou no amigo Silva, e uma lágrima grossa escapou-lhe do olho esquerdo. Assim, chorou de tristeza, de fome e também de raiva. Enquanto isso, Langa murmurava: "o sacana nem deixa um gajo descansar. Como é que eu posso aturá-lo? O raio do cão até dormia na cama com o patrão e agora quer fazer isso comigo!

Comigo isso não pega! Com esta sapatada que o gajo levou no focinho, tenho a certeza de que não me chateia mais!"

Langa voltou a deitar-se. Virou-se para o lado, desapertou as calças e derramou a barriga saliente no leito. Não tardou a recuperar o sono interrompido, bem como o ressonar aos soluços."

ALBERTO DA BARCA nasceu na cidade da Beira no dia 21 de Junho de 1954.

O Húmus do Homem Novo

Autor: Juvenal Bucuane

Trecho do livro "A Raiz e o Canto", AEMO, colecção Início nº 2, 1984

Juvenal BUCUANE nasceu no Xai-Xai a 23 de Outubro de 1951. "A RAIZ E O CANTO" foi o seu primeiro livro publicado, em Dezembro de 1984 pela AEMO, colecção Início No 2.

A Cláudio, meu filho

Não quero que vejas

nem sintas

a dor que me amargura;

Não quero que vejas

nem virtas

as lágrimas do meu pranto.

Deixa que eu chore

as mágoas e as desilusões;

deixa que eu deambule;

deixa que eu pise

a calidez do chão desta terra

e o regue até com o meu suor;

deixa que me toste

sob este sol inóspito

que me dardeja o lombo sempre arqueado...

Este penar

é o resgate da esperança

que em ti alço!

Este penar

é a certeza do amanhã que vislumbro

na tua ainda incipiente idade!

Não quero que vejas

nem sintas

o meu tormento

ele é o húmus do Homem Novo."

Juvenal BUCUANE nasceu no Xai-Xai a 23 de Outubro de 1951.

Xikalamidade

Autor: Simeão Cachamba

in Cadernos "Diálogo" - As Palavras Amadurecem

Se um dia me viste a vagar as ruas da cidade

(qual molweni atribulado na sua vagabundagem)

o corpo constelado de remendos, quase seminu

todavia por todos poros respirando dignidade

hás-de me ver hoje envolto em nova embalagem

caso cruze denovamente a mesma esquina com tu

Não me pergunte o raio por que deixava eu esta

indumentária envelhecer lá bem no fundo do baú

Um pouco de bom-senso e apenas dois dedos de testa

e saberás que ninguém grama de andar com o corpo nu

Se antes de minhas foram alguém que eu desconheço

estas «jeans» coçadas que ao meu corpo se ajustam bem

como se feitas por encomenda, com as medidas que eu meço

é porque em estado natural sempre iguais são os homens

polana/85

XIPAMANINE: mercado onde se vende grande quantidade de

CALAMIDADE: roupas doadas para os países do terceiro mundo, e que neste são comercializadas

MOLWENI: rapaz da rua

Xirico

Autor: Simeão Cachamba

in Cadernos "Diálogo" - As Palavras Amadurecem

domesticadas asas estrebucham

o ancestral sonho sitiado que

a exiguidade geométrica da gaiola calca

enquanto ouvimos rádio na sala de estar

dura um instante infinitesimal a pausa do locutor

e nesse vazio

           breve

           oportuno

           subversivo o pássaro entoa as cores do arco-íris

os sons fluem em cascata através dos arames

e estacam na sala

- vá tu saber se o bicho está triste ou alegre"

XIRICO: pássaro e marca de transístor muito popular

Árvore de Frutos

Autor: Antonio Cardoso

Angola

Cheiras ao caju da minha infância

e tens a cor do barro vermelho molhado

de antigamente;

há sabor a manga a escorrer-te na boca

e dureza de maboque a saltar-te nos seios.

Misturo-te com a terra vermelha

e com as noites

de histórias antigas

ouvidas há muito.

No teu corpo

sons antigos dos batuques ah minha porta,

com que me provocas,

enchem-me o cerebro de fogo incontido.

Amor, és o sonho feito carne

do meu bairro antigo do musseque!

Um Dia

Autor: Antônio Cardoso

Angola

in Poemas de Circunstância, 1961

ao António Jacinto

Um dia eu vou fazer um romance

com as histórias da minha rua

antes de se chamar Silva Porto

e os pretos irem embora.

Vai entrar a lua e meninos sem cor

a Domingas quitata, o sô Floriano do talho

com muita mistura de amor

e muito suor de trabalho.

Vou meter as cabras e os cães vadios da velha Espanhola

os batuques da Cidrália e dos Invejados,

os batalhões do "Treze" e do "Setenta e Quatro",

o bêbado Rebocho, o velho Salambió,

a Joana Maluca da garotada,

cajueiros, cubatas, lixeiras,

capim e piteiras,

e mesmo no fim da história,

quando os homens estão desesperados

e as fardas passam em fila,

acendo um sol de Fevereiro,

semeio algumas esperanças

e parto com o meu veleiro

a dar uma volta ao Mundo!

Cidade 1985

Carlos Cardoso

Maputo, 1985

De manhã quando acordo

em Maputo

o almoço é uma esperança.

Mãe tenho fome

marido tenho bicha

e mil malárias me disputando a vontade.

De manhã quando acordo

em Maputo

o jantar é uma incerteza

o serviço uma militância política

do outro lado do sono incompleto

e o chapa-cem* um regulado impiedoso

no quatro barra oitenta sem contra-argumento.

De manhã quando acordo

em Maputo

o vizinho já candongou o que me roubou

a estomatologia não tem anestesia

a chuva abriu dialecticamente mais um buraco na estrada

e o conselho executivo continua desdentado de iniciativas.

De manhã quando acordo

em Maputo

Porra para a vizinha que estoirou a torneira do rés-do-chão

Porra para o guarda que não ligou a bomba quando veio a água

Porra para as cem gramas de carne apodrecidos

        no silêncio desenergetico de Komatipoort

mais as ó eme sed de efes

e o soldado que ainda não ouviu dizer que os passeios

        são lugares públicos

e os fulanizados exploradores de outrora

        que se preparam para cuspir na tua campa, ó Mataca,

        as ordens de um Mouzinho boer.

De manhã quando me percorro

em Maputo

enfio ominosamente o cérebro numa competentíssima paciência

desembainho felinamente mais uma mentira diplomática

e aguardo a lucidez companheira me leia

        nas acácias em sangue

        nos jacarandas estalando sob a sola epidérmica do povo

que este é ainda o eco estridente do Chai

até que Botha seja farmeiro e Mandela Presidente.

Então,

com a raiva intacta resgatada à dor

danço no coração um xigubo guerreiro

e clandestinamente soletro a utopia invicta.

À noite quando me deito

em Maputo

não preciso de rezar.

Já sou herói.

Chagas de Salitre

Autor: Ruy Duarte de Carvalho

Radicado em Angola

Santarém, Portugal, 1941-

in Chão de Oferta, 1972

Olha-me este país a esboroar-se

em chagas de salitre

e os muros, negros, dos fortes

roidos pelo vegetar

da urina e do suor

a carne virgem mandada

cavar glórias e grandeza

do outro lado do mar.

Olha-me a história de um país perdido:

marés vazantes de gente amordaçada,

a ingénua tolerância aproveitada

em carne. Pergunta ao mar,

que é manso e afaga ainda

a mesma velha costa erosionada.

Olha-me as brutas construções quadradas:

embarcadouros, depósitos de gente.

Olha-me os rios renovados de cadáveres,

os rios turvos de espesso deslizar

dos braços e das mãos do meu país.

Olha-me as igrejas restauradas

sobre ruínas de propalada fé:

paredes brancas de um urgente brio

escondendo ferros de educar gentio.

Olha-me a noite herdada, nestes olhos

de um povo condenado a amassar-te o pão.

Olha-me amor, atenta podes ver

uma história de pedra a construir-se

sobre uma história morta a esboroar-se

em chagas de salitre.

Eu Tenho os Dias Claros

Autor: Ruy Duarte de Carvalho

Radicado em Angola

Santarém, Portugal, 1941-

in Chão de Oferta, 1972

para o António

Eu tenho os dias claros

de sucessivas luas de Setembro

e a noite que me impõe sinalizar

as direcções cruzadas das mensagens verticais.

Eu estou parado no meio do terreiro

pastado dos meus passos e da minha gente,

ando a ganhar noções de translação

e a medir, pra meu governo, a cor do sol.

Eu entardeço, sobretudo, pouco atento ao vento

que não devo perturbar na sua rota alheia.

Permito, quando muito, que me sinta o cheiro

e deixo-o desfazer, furtivamente, molhos já secos de memória fêmea.

Eu finjo que não sei de elásticas tensões da claridade

e a cada passo meu faço estalar

membranas frias que a tarde debruou em rente azul.

Entendes, companheiro,

eu estou aqui sentado e nu

a procurar não ir além da bárbara carícia

de um olhar sem tacto

e que nem uma lágrima machuque

a capa muito fina da lembrança

que tenho para dar-te.

Diogo Cão às Portas do Zaire

Autor: Ruy Duarte de Carvalho

Radicado em Angola desde 1963

Santarém, Portugal, 1941-

in Chão de Oferta, 1972

Deste lado da história

o rio morre aqui.

Do mar sabemos nós e aos capitães

a fama da conquista.

Faço-me ao Sul

porque pertenço ao Norte

e a costa só me serve p'ra cumprir

tarefas de abandono.

Meu fim é circular, ir mais além.

Por isso eu sei de estrelas

direcções

e nada sei de fruto

que se projecta e espera.

Cumpro tarefas, sim, porque viajo.

Assim nasci

sabendo o que me aguarda após a descoberta.

Fronteiras

só conheço as do meu lar

e sei amá-lo, só,

noutras distâncias.

De Deus, empreendi que mora aqui no mar,

porque sou eu

quem lhe constrói a face.

Ao Rei e a Vós

apenas dou noticias do rumo horizontal.

Pois que sabeis da vertical sagueza?

Novembrina Solene

Autor: Ruy Duarte de Carvalho

Radicado em Angola desde 1963

Santarém, Portugal, 1941-

in Chão de Oferta, 1972

Seu Zuzé, as tuas vacas como estão?

Longe daqui

subimos os morros

Fomos procurar

a água que resta

do ano que passa.

Senhora Luna

a farinha?

Está secar

Tarda a chuva seca o milho

A lavra não vai medrar.

Chimutengue, meu vizinho

então por cá?

Pois que vim te visitar

te avisar

que o meu gado vai passar

aqui por perto

Tarda a chuva e é preciso

procurar

o que lhe dar de comer

o que lhe dar de beber

O capim está ficar negro

está na hora de mudar.

Imigrante Silva, a tua mulher?

Está mal.

Que é do leite pra lhe dar

a carne pra lhe engordar?

E os filhos?

Estão magrinhos

doentados

vão ficar igual com o pai

Que é da escola pra lhes dar

sapatos pra lhes calçar

oficio pra lhe ensinar?

Dunduma amigo

companheiro Chipa

Zeca, Ernesto, Calembera.

olhai pelo gado.

Protegei os pastos.

Olhai pela vida das fêmeas

e pela saúde dos machos.

Venho de um Sul

Autor: Ruy Duarte de Carvalho

Radicado em Angola desde 1963

Santarém, Portugal, 1941-

in Chão de Oferta, 1972

Vim do leste

dimensionar a noite

em gestos largos

que inventei no sul

pastoreando mulolas e anharas

claras

como coxas recordadas em Maio.

Venho de um sul

medido claramente

em transparência de água fresca de amanhã.

De um tempo circular

liberto de estações.

De uma nação de corpos transumantes

confundidos

na cor da crosta acúlea

de um negro chão elaborado em brasa.

Nyeleti

Autor: Suleiman Cassamo

in "Amor de Baoba" (crónicas), Edição da Ndjira, 1998

Introdução:

"Que da leitura destes contos

vos fique um leve,

levissimo sabor a terra.

O sabor da nossa terra."

" Lamentava, afinal, o rapaz que, porque o amor negado envenena, morreu de amor.

Também as rãs acolhiam as noites com rezas, em cacofonia, ressoando na membrana das lagoas. Nas lagoas crescia o peixe-preto, esse peixe que conserva a dignidade do seu bigode, mesmo com o sal e o piripiri esperando de lado, no espeto, diante da brasa.

Nas machambas, a macaroca nascia filas de dentes e deitava cabelo loiro; as abóboras jaziam, gordas e doiradas, a lembrar grandes pepitas de ouro; a mandioca rasgava a terra, a mesma terra que dava forca aos seus músculos.

Partiram para longe as rolas, para o fundo da mata, para as figueiras.

Chocariam os ovos, voltariam no amadurecer das espigas.

E os dias iam, traziam as noites e vinham, cada um o recomeço do anterior.

Mas ao nascer-morrer igual dos dias, há o acontecer de massinguita: Malatana reapareceu.

Bebia-se sumo de melancia. Chegou como só chegam os fantasmas, de madrugada, palito, dois pirilampos no lugar dos olhos e a barba grande de Jesus Cristo.

Longe do mundo, junto dos bichos, do xuaxualhar das chanfutas, do rumorejar dos regatos, construiu uma cabana.

Errara por terras e terras, bisbilhotava-se, havia cruzado o rio Maputo, tinha visto Xivimbatlelo, chegara a Mamanga, lá onde o mundo acaba e recomeça. De volta, Malatana trouxe nos bolsos rotos o feitiço que viraria o coração da Nyeleti."

Amor de Baoba

Autor: Suleiman Cassamo

in "Amor de Baoba" (crónicas), Edição da Ndjira, 1998

página 24:

Mas, diz ainda Eco, a televisão também estupidifica. Será, ó Eco, que isso se confirma no episódio com que fecho este texto?

Naquela noite fatídica, entrei de rompante na sala e anunciei:

- A avó morreu!

Nem deram pela minha presença. Presos ao ecrã, pareciam elefantes embalsamados. Pulei em frente, derrubei o maldito aparelho com um golpe de karaté, e, ainda marcialmente, pulei para cima do baú, e proclamei como que em teatro:

- A a-vó mo-rre-u!!!

Só então começaram, a pouco e pouco, a regressar. Sabe-se lá se da Europa, se das Américas.

Balada do Amor ao Vento

Autor: Paulina Chiziane

do livro "Balada de Amor ao Vento"

Capítulo 1

"- Sarnau, hoje é o dia de arranjar namorado. Em vez de estar ali a chocalhar, ponha-te à vista, ginga, rebola, para as moscas perseguirem as tuas curvas, menina.

Olha, eu já arranjei um namorado, e que janota, amiga!

- Os meus parabéns, então.

- E tu o que esperas? Aposto que estavas a olhar para esse ranhoso filho do Rungo. Como se chama? Ah, é o Mwando. Pois digo-te menina, estás a perder tempo, aquele está a estudar para padre.

Fiquei furiosa. A Eni fora ao encontro dos meus pensamentos e ferira-me a forma como se referira àquele jovem tão distinto. Coloquei as mãos nas ancas e vomitei todo um palavreado provocador, na intenção de aborrecer a adversaria, enquanto esta, de olhar trocista, limitava-se apenas a murmurar:

- Wê, Sarnau, não vale a pena tanta fanfarra. Hoje é dia de festa e não estou para guerrinhas. Tenho um vestido novo que não me apetece machucar.

A malta incitava-nos para a luta, mas ao ver que o espectáculo estava perdido pois a Eni não se desfazia, todos se viraram contra mim. Todo o bando me rodeou e trocou.

- Mas vocês ainda não viram? A Sarnau é pau de carapau. Nem curva no peito, nem curva no rabo, é estaca de eucalipto. Mulher é que não, wâ, wâ, wâ!

Fiquei zangada. Finalmente os marotos deixaram-me em paz e pude à vontade contemplar o meu ídolo e preparar planos de abordagem. Aquele Mwando interessava-me, sim senhor."

..........................

Capítulo 11, página 73:

"- Kenguelekezeee!...

Braços negros erguem-se no ar, mergulhando os dedos enfileirados no prateado leitoso que embacia o céu, partindo do coração da Lua.

- Kenguelekeze!... Eis aqui o herdeiro da coroa!

O menino negro - negro não, de prata sim, porque a Lua cheia pintava o rosto angélico, cobrindo-o com o seu manto de prata - cumpria o ritual da lua nova que se realizava na lua cheia por tratar- se do filho herdeiro.

- Kenguelekeze! Eis aqui uma vida nova! Majestosa Lua: recebe esta criatura, esta gota de água que veio ao mundo para ser feliz. Dá-lhe a bênção. Poupa-a das diarreias, doenças nervosas, ataques, quando nasceres, quando encheres e quando morreres, kenguelekezeee!...

O menino nu tremia de frio, suspenso nos braços erguidos das madrinhas. Fechou os olhos, esfregou-os, esperneou, e lançou um jacto de urina molhando a cabeça de uma delas, soltando gritos de protesto.

Com o menino erguido no ar, as madrinhas dançavam à volta da fogueira sagrada. A seguir administraram fumos e drogas purificantes para afugentar feitiços e maus-olhados. Prepararam-lhe vacinas e amuletos, colares de pele de leão para ter a coragem e a audácia do rei da selva.

Paulina Chiziane nasceu a 4 de Junho 1955 em Manjacaze, província de Gaza, tendo crescido nos subúrbios de Maputo, onde estudou. Iniciou a sua actividade literária em 1984, com contos publicados na imprensa moçambicana. "Balada de Amor ao Vento" foi o seu primeiro livro, colecção Karingana No 12 da AEMO.

Feições Para um Retrato

Autor: Fernando Couto

trecho do livro "Feições Para um Retrato, 1971

"Na agreste paisagem de dunas

expira a vastidão da savana.

No areal se sepulta o choro do mar

em seu clamor e seu soluço

e a fúria do vento largo

veste de saliva os arbustos sobreviventes.

Mangal de raizes nuas

doí-me o desespero dos teus dedos

ainda longos e cravados à terra.

Na orla do tempo, as aves marinhas

contemplam os despojos com olhos tranquilos

e nos conturbamo-nos à vista

dos despojos e do jeito dos pássaros.

Aqui, só nos vemos

a delgada fímbria do encontro

da morte e da vida

e conturbamo-nos.

E, amando-nos,

avivamos o traço esguio e sinuoso

dessa fímbria de encontro de morte e da vida".

A Adivinha

Autor: Mia Couto

  Tudo é um jogo, brincriável. Há o bomem, isso é facto. Custa é haver o humano. A vida descostura, o homem passa a linha, a corrigir os panos do tempo. Mimirosa, a menina, nada sabia desses acertos. Acreditava ser tudo simples como o molhado e água, poeira e chão. E assim, tudo em tamanho não aparado: os senhores em infância, as coisas sem consequência.

  Seus país se preocupavam. Passava a idade e Mimirosa demorava a aprender o regime da realidade. Que há deveres, e as contas do ter e do haver. E o ser é apenas o que resta. Noves fora, novos de fora.

  Quem estragava esse madurecimento da miúda era sua avó, Ermelinda. A senhora se convertera em parceira de infância, ancorada em irresponsabilidade. Em meia palavra: era companhia de se evitar. Os pais de Mimirosa assim julgavam. A menina devia era evitar os risos, disciplinar arrebatamentos. A escola, em primeiro lugar. A avó, sabia-se, desprezava a escola. Que se aprende mais é fora dela, no calor da família, em redondezas de carinho. Mimirosa estava, por isso, proibida de frequentar a companhia de Ermelinda. Não queriam nem que fosse vista junto, perto do caminho da avó. A menina era conduzida, de mão acompanhada, até às imediações escolares, onde já não poderia desviar a direcção. Imaginava-se. Porque ela, mal se soltava das vistas, se internava no atalhozito que dava na casa da avó. Ali gazetava dos deveres, entretida nos nenhuns afazeres da velha senhora. Conforme os olhos distraídos da velha ela ajudava, rectificando um aqui no além ela. Até que, inevitável, chegava o jogo da adivinhação.

      - Qual é um rio que não tem senão uma margem?

      - Isso é coisa que não pode, avó! E do outro lado fica o quê?

      - Pense, se ensine. Já sabe que o prémio que há-de haver...

  Prémio que haveria era só o serem as duas, ali, no escondido. A velha deixava o mistério durar, pairada, parada. A pergunta labirintava na cabeça de Mimirosa. Podia um rio assim? Ou já se viu a estrada correr sem o amparo de duas ambas bermas?

      - Mas há o prémio de verdade?

      - Se você‚ adivinhar esse mistério, o mundo vai ficar tão admirado que até o tempo há-de parar.

      - Jure, avozinha?, berlindavam-se os olhos dela.

  E voltavam às lides, sem obrigação de nada. O jardim da casa parecia obra de inventar. Uma só arbustozinho nele cabia.

      - Vês a sombra? Essa sombra é pequena. Mas existe uma sombra que é da terra toda inteira.

  Voltada a casa, a menina era inquirida pelos pais, perguntas sem mistério, coisas de calcular o futuro: quando fores grande já escolheste o que vais ser? Simplesmente, ela não sabia querer ser grande. E, assim, sua ausência na resposta.

      - Ela vai ser doutora hospitalar, vaticinava a mãe.

      - Ou dessas que faz as contas e faz crescer dinheiro, preferia o pai.

      - Tudo serás filha, mas não queremos que sejas como nós.

  A menina se admirava: aqueles não gostavam de si mesmos? Por que razão eles queriam que ela lhes fosse diferente? Só a avó gostava de ser como era, cuidadosamente desarrumadinha. Como deviam ser infelizes, aqueles dois, seus pais.

  Até que, urna tarde, veio o alvoroço. A velha Ermelinda se sentira mal, o peito dela se amarrotara. Mimirosa, nesses dias, deixou a escola. Mas não a deixaram entrar na velha casinha. A senhora não reconhecia ninguém, ela se convertera em fundo escuro. Nenhuma luz a trazia à superfície de si mesma. E, assim, somaram-se os dias. Mimirosa, obrigada e vigiada, voltou escola. A sombra do morcego se desenha no tecto? Pois o pensamento da neta n o saía do mesmo assunto: saudade de sua avó.

  Um dia, enquanto seu olhar fingia percorrer o caderninho, a menina suspulou da carteira e se flechou porta afora. Escapou da escola e correu pelos campos. Ninguém a viu penetrar na penumbra da casa, ninguém suspeitava que se anichara, ofegante, na cabeceira da moribunda avó.

      - Avó, sei a adivinha!

  No rosto da senhora nenhum sinal, nem uma ruga se alterou. Parecia que Ermelinda já cruzara aquele risco feito na água, fronteira entre a vida e a morte.

      - Lembra a adivinha, vó? Aquela do rio de um lado só?

  E os olhos da menina se atabalhoaram de água, sentida sozinha no grande mundo. A mão dela ainda arriscou tocar no braço da avó. Mas teve medo. E se cborou! O caderninho órfão, em suas mãos, sofria a catarata das lágrimas. Até que os braços do pai a puxaram. Primeiro ela cedeu. Mas depois esgueirou-se, por um instante, e depositou o caderninho escolar no leito da água. Estava aberto numa figurinha do oceano, mais suas criaturas profundas. E a voz da menina tombada com um derradeiro lenço:

      - É o mar, avó. Esse cujo rio; é o mar.

  Já se retiravam daquele luto, todos mais Mimirosa quando os dedos da avó tactearam o ar e, cegos, chegaram até no caderno. Depois, acariciaram o azul da imagem. E caderno começou a pingar, como se o papel não mais contivesse aquela água.

A Confissão de Nhonhoso

Autor: Mia Couto

do livro "A Varanda do Frangipani

Sétimo capítulo - A confissão de Nhonhoso

"- Que estas a fazer, caraça de tu!

- Não está ver? Estou cortar essa árvore.

- Para com isso, Nhonhoso da merda, essa árvore é minha.

- Sua? Suca mulungo, não me chateia.

Nunca tínhamos falado assim. Domingos Mourão, o nosso Xidimingo, se levantou e, aos tropeços, se atirou contra mim. Os dois brigamos, convergindo violências. O branco me solavanqueou, parecia transtornado em juízo de bicho. Mas a luta logo se desgraçou, desvitaminados o pé e o soco. Só os nossos respiros se farfalhavam nos peitos cansados. Os dois nos sacudimos, desafeitos.

- Você sempre quer mandar em mim. Sabe uma coisa: colonialismo já fechou!

- Não quero mandar em ninguém...

- Como não quer? Eu nos brancos não confio. Branco é como camaleão, nunca desenrola todo o rabo.

- E vocês, pretos, vocês falam mal dos brancos mas a única coisa que querem é ser como eles...

- Os brancos são como o piri-piri: a gente sabe que comeu porque fica a arder a garganta.

- A diferença entre mim e você é que, a mim, ficam cabelos no pente enquanto a você ficam pentes no cabelo.

- Cala, Xidimingo. Você é um arrota-peidos.

O velho branco riu-se sozinho. Depois, se ocupou em ajeitar o corpo. Lhe doía a garganta como um torcicolo em pescoço de girafa. Ficou um tempo imóvel, olhos semicerrados. Parecia desmaiado.

- Você está respirar, Mourão?

- Ouve Nhonhoso: quer apanhar mais outra vez?

- Você é que apanhou maningue, seu velho branco...

- Deixa-me descansar um pouco e já lhe despacho uma boa murraça.

- Para me dar um murro você precisa descansar um século...

Nos olhamos sérios. De repente, ambos desatamos a rir. Batemos as mãos, chapamos as palmas, em acordo. Aquilo havia sido briga de disputar gafanhoto, bicho sem fruto nem carne. Então, lhe disse:

- é pá, Xidimingo, estou-lhe a agradecer bastante.

- Porquê?

- Charra! Eu quase ia morrer sem bater um branco."

A Multiplicação dos Filhos

Autor: Mia Couto

do livro "A Varanda do Frangipani

  Certa vez, Mulando sentiu vontade de ver os seus filhos. Como fossem muitos, decidiu dedicar todo o tempo que lhe restava em paternais visitas. Queria saber das outras vidas de sua vida.

  Como se, em final da existência, ele avaliasse a única eternidade que nos é certa: continuarmo-nos em nossos filhos.

  Começou pelo mais velho. O filho varão se admirou da visita. Alguma suspeita o fez ficar de coração atrás: porquê tão tardia visita? Mas ele esmerou em simpatia.

  Festejaram esse milagre de haver pai e filho, como flor que morre na imortalidade da semente. Beberam, comeram, entornaram as primeiras gotas no chão dos antepassados. O pai se hospedou por uns dias. Foi um tempo de transbordar a alma.

  Na despedida, o filho mais velho disse que havia uns tantos irmãos espalhados pelos lugares. E o pai seguiu a prestar visitas a seus outros descendentes. Aqui e além foi encontrando mais uns. Que revelaram outros. E outros apontaram mais outros. Até que Mulando descobriu que eram muitos,bem para além dos muitos que ele imaginava.

  Já cansado de tanta visitação, Mulando sentou-se a contemplar as linhas da palma da mão. Lhe pareceu ver que elas tinham mudado de desenho. Mulando se orgulhava de ter as linhas da mão em inacabado estado, sempre fugidias. Mas agora uma nova vaidade se sobrepunha: o ser tanto pai. Riu-se de suas façanhas. Já visitara mais de duas dúzias e ainda havia mais prole. Chegaria ao ponto de não ter tempo de terminar sua peregrinação? Contou as linhas das mãos e lembrou o desafio do seu tio materno perante as estrelas: contar, contar, contar até chegar a um ponto em que já não há número. E ele desistia como o dedo do tio desmaiando perante as tantas estrelas.

  Um longo braço da preguiça amoleceu a sua vontade de prosseguir. Havia um bar e ele passou por lá, passou por um copo, uma garrafa, uma neblina. A seu lado, uma mulher de ninguém escutou a sua missão. A moça, estranhamente, lhe perguntou:

      - Esses todos seus filhos: sabe o que é?

      - Gostava de saber.

      - É que, no fundo, todos, neste mundo, são nossos filhos.

      - Você também?

  E Mulando riu-se, cabeça tombada para trás, repetindo com ante-sabidas intenções:

      - Você também é minha filha?

  A prostituta sorriu-se, triste, faz conta estreasse o sentimento de ter um pai. Mulando olhou para as mãos, a ganhar fôlego e estendeu as pernas:

      - Então, minha filha, sente-se aqui no meu colo.

  Ela demorou a ajeitar-se no vivo assento. Ele cruzou os braços sobre ela, em subtil prisão. E lhe segredou que ela, por momentos, fizesse de conta que era outra. Uma mulher sem pecado, isenta de maus olhados. A prostituta o afastou com firmeza. Escapou do colo de Mulando e se encrispou toda, até quase perder a voz:

      - Crime é um pai não cuidar dos filhos.

      - Isso é verdade. Isso é um crime sem perdão.

  Ele dava o assunto na bandeja, sem demais. Mulher que não queria o seu colo deixava de existir. Além disso, o clima não estava para disputas. Mulando lançou o jornal para se resguardar da luz e encerrou-se para balanço.

  A manhã se adiantara, calor adentro, quando Mulando despertou. O bar estava deserto, da prostituta nem sobrara o perfume. Em redor, as formas ainda se acertavam, o nublado era um céu dentro da cabeça dele. E naquele esbotar de contornos ele sentiu alguém se postar diante.

  Se as vistas eram sombras, os sons pareciam bem mais nítidos. E a voz do outro lhe chegou, em bom recorte:

      - Venho lhe matar!

  Nem lhe veio discernimento para a devida resposta. Tentou focar o rosto do outro e notou que ele a si se semelhava. Um mais filho? Daquela idade?

      - Meu filho: eu vou seguindo, daqui vou para mais adiante.

      - Não sou seu filho!

      - Não é? Mas você me parece. Então você é o quê?

      - Sou seu pai.

  E ditas as três palavrinhas desfechou uma matraca sobre o outro. Uma, duas, quatro chambocadas. As suficientes, mortais. Mulando já não usava o pescoço. Insustentável, a cabeça lhe descaíra para trás, olhos escancarados perante o sol. Pela primeira vez, as linhas da mão de Mulando se moldaram em desenho fixo.

  O outro fez regressar a matraca em sua bolsa e falou nos seguintes termos para o chão:

      - Sou seu pai e você nunca me veio visitar.

  Dizem assim: o funeral de Mulando nunca se viu tristeza mais repleta. Nesse momento, o homem cumpria, de uma só vez, a promessa de visitar toda a sua descendência. Estavam lá os filhos todos,visitando-o na sua última mudança de residência. Em sua nova maneira de ver, Mulando acrediou presenciar no cemitério a inteira humanidade.

Estréia nos Viventes

Autor: Mia Couto

Segundo Capítulo do livro "A Varanda do Frangipani

"Este homem que estou ocupando é um tal Izidine Naita, inspector da Policia. Sua profissão é avizinhada aos cães: fareja culpas onde cai sangue. Estou num canto de sua alma, espreito-lhe com cuidado para não atrapalhar os dentros dele. Porque este Izidine, agora, sou eu. Vou com ele, vou nele, vou ele. Falo com quem ele fala. Desejo quem ele deseja. Sonho quem ele sonha.

Neste momento, por exemplo, estou viajando num helicóptero, em missão enviada pela Nação. Meu hospedeiro anda esgravatando verdades sobre quem matou Vasto Excelencio, um mulato que foi responsável pelo asilo de velhos de São Nicolau. Izidine iria percorrer labirintos e embaraços. Com ele eu emigrava no penumbroso território de vultos, enganos e mentiras.

Espreito das nuvens, por cima das vertigens. Lá em baixo, faceando o mar se vê a velha fortaleza colonial. É lá que fica o asilo, é lá que estou enterrado. Tem graça que eu tenha saído directamente das profundezas para as nuvens. Olho da janela. A Fortaleza de São Nicolau é uma pequenita mancha que cabe num pedacito de mundo. Minha campa, essa nem se distingue. Vista do alto, a fortaleza é, antes, uma fraqueleza. Se notam os escombros como costelas descaindo sobre o barranco, frente à praia rochosa. Esse mesmo monumento que os colonos queriam eternizar em belezas estava agora definhando. Minhas madeirinhas, aquelas que eu ajeitara, agoniavam podres, sem remédio contra o tempo e a maresia."

"Cartas dos Primos Ladrões"

Autor: Mia Couto

Excertos da crónica "Imaginadâncias" no jornal "Domingo"

....

Primo rural - Como está meu irmão, isto é, meu primo? Eu estou mal aqui na aldeia Julius Nyerere, as coisas tornaram-se muito difíceis para os ladrões de gado. Sabe o que faz a população? Pega no ladrão, mete num saco e afoga-lhe no rio Limpopo! Estamos cheios de medo, primo. Até já escrevemos para a Alice Mabote, essa senhora que Liga para os Direitos Humanos...

Primo urbano - é pá, isso está feio por ai. Eu lhe dou um conselho, caro primo: venha para a cidade. Nós, os ladrões urbanos, estamos numa boa. Ai, no campo, eles afogam o ladrão que roubou o boi. Aqui afogam é o boi. Vocês, pobres criminosos, andam com medo da população. Aqui, em Maputo, é o contrario. Que venha, caro primo! Aqui eu o enquadrarei.

...

Primo urbano - Lhe digo e redigo meu primo-irmão: junte-se aos bons, isto é, aos maus. Aqui está bem acompanhado-filhos de gente grande e alguns próprios grandões. Se for preso sai logo no dia seguinte. Se demorar a sair agora até há bons advogados que aparecem logo a defender-nos. Não é que tudo seja bom. Por exemplo, a concorrência com ladrões de fora. Isso não está correcto, até já falamos às autoridades policiais. Começam a aparecer criminosos nigerianos, tanzanianos, malawianos, sul-africanos. é pá! Então onde está a protecção do empresariado nacional? Então isto é assim - nigerianos da droga já tem lojas e empreendimentos em Maputo. Dão licença sem nos contactarem a nós?

Primo rural - Já tomei decisão - vou para Maputo, juntar-me a si.

Primo urbano - Optimo. Cá lhe espero. Só lhe dou um conselho - evite vir de chapa. É a única coisa que um ladrão pode temer nesta bela cidade moderna! Rouba uma boa viatura e venha."

CHAPA: transportes semi-colectivos de Maputo. Entrar enquanto houver lugar, se não houver lugar, empurra.

Governado Pelos Mortos

(fala com um descamponês)

Autor: Mia Couto

in Revista Lua Nova, nº 4, p. 20

"... - Os mortos perderam acesso a Deus. Porque eles mesmo se tornaram deuses. E têm medo de admitir isso. Querem voltar a ser vivos. Só para poderem pedir a alguém.

- E estes campos, tradicionalmente vossos, foram-vos retirados?

- Foram. Nós só ficamos com o descampado.

- E agora ?

- Agora somos descamponeses.

- E bichos, ainda há aqui bichos ?

- Agora, aqui, só há inorganismos. Só mais lá, no mato, é que ainda abundam.

- Nós ainda ontem vimos flamingos...

- Esses se inflamam no crespúculo: são os inflamingos.

- E outras aves da região. Pode falar delas ?

- Antes de haver deserto, a avestruz pousava em árvore, voava de galho em flor. Se chamava de arvorestruz. Agora, há nomes que eu acho que estão desencostados...

- Caso do beija-flor. É um nome que deveria ser consertado. A flor é que levaria o título de beija-pássaros.

..."

Mar Me Quer

Autor: Mia Couto

Trechos do livro "Mar Me Quer", edição da Ndjira

páginas 37-38:

Seus olhos subiram do chão até se fixarem no rosto dele. Foi quando ela gritou, tapando os olhos. Os restantes se aproximaram de meu pai e um rumor se espalhou como nuvem fria.

- Os olhos dele!

Sim, os olhos de Agualberto não eram os mesmos. Ninguém conseguia olhar meu pai de frente. Porque aqueles olhos dele estavam da mesma cor do mar: azuis, de transparência marinha. Sua humanidade estava lavada a modos de peixe. Ele ficara muitíssimo demasiado tempo debaixo do mar. E se espalhou um murmúrio de que Agualberto tinha os olhos de tubarão, tal iguais aos grandes e dentilhados bichos.

A partir desse dia meu pai se adentrou em si mesmo, toda a hora sentado na praia contemplando o horizonte. Passavam gentes vindas de longe para espreitar de longe o preto de olhos da cor do mar.

Quarto capítulo, páginas 43-44

O dia começa sempre de mentira. Porque o sol só finge nascer. Aquela manhã acordou com vontade de esquentar e eu me decidi passear pela praia. Foi quando encontrei Luarmina mergulhada numa poça de água. Estava vestida e as roupas colavam-se no corpo. Aproximei e lhe perguntei a razão daqueles banhos. Ela respondeu que queria aquecer as pernas..

- A água está quentinha ?

- Não recebo quentura da água. Quem me aquece são caracóis.

E explicou: havia uns certos caracóis que lhe lambiam as pernas, pastando nessas gorduras dela. Os bichos desqualificavam viscosas salivas sobre a vizinha e eu só pensava: mal empregadas as minhas próprias babas, com o devido respeito. E salvo seja.

- Dá licença eu entrar ?

- Entrar onde ?

- Nessa água onde a senhora está ser banhada.

Entrei, fui-me achegando perto da vizinha. Me entornei na toalha da água e fechei os olhos igual como ela. Minhas mãos fingiram ser caracóis, lesmas babadoiras lavrando nas coxas de Luarmina. Para meu espanto, a mulata não me repeliu. Meus dedos prosseguiram, cumprindo seu dever, pescando entre roupa e corpo. Espreitei pela esquina dos olhos: a gorda Luarmina estava flutuando, embenvencida, parecia um navio repousando em desenho de criança.

De repente, porém, ela soltou um grito. Emendei minha malandrice, mãos atrás das costas.

- Susto, Dona! O que foi ?

Luarmina apontou qualquer coisa sobre as águas. Eram peixes mortos boiando.

Nas Águas do Tempo

Autor: Mia Couto

in Estórias Abensonhadas

  Meu avô, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado em seu pequeno concho. Ele remava, devagaroso, somente raspando o remo na correnteza. O barquito cabecinhava, onda cá, onda lá, parecendo ir mais sozinho que um tronco desabandonado.

  - Mas vocês vão aonde?

  Era a afliçã de minha mãe. O velho sorria. Os dentes, nele, eram um artigo indefinido. Vovô era dos que se calam por saber e conversam mesmo sem nada falarem.

  - Voltamos antes de um agorinha, respondia.

  Nem eu sabia o que ele perseguia. Peixe nã era. Porque a rede ficava amolecendo o assento. Garantido era que, chegada a incerta hora, o dia já crepusculando, ele me segurava a mã e me puxava para a margem. A maneira como me apertava era a de um cego desbengalado. No entanto, era ele quem me conduzia, um passo à frente de mim. Eu me admirava da sua magreza direita, todo ele musculíneo. O avô era um homem em flagrante infância, sempre arrebatado pela novidade de viver.

  Entrávamos no barquinho, nossos pés pareciam bater na barriga de um tambor. A canoa solavanqueava, ensonada. Antes de partir, o velho se debruçava sobre um dos lados e recolhia uma aguinha com sua mã em concha, E eu lhe imitava.

  - Sempre em favor da água, nunca esqueça!

  Era sua advertência. Tirar água no sentido contrário ao da corrente pode trazer desgraça. Nã se pode contrariar os espíritos que fluem.

  Depois viajávamos até ao grande lago onde nosso pequeno rio desaguava. Aquele era o lugar das interditas criaturas. Tudo o que ali se exibia, afinal, se inventava de existir. Pois, naquele lugar se perdia a fronteira entre água e terra. Aquelas inquietas calmarias, sobre as águas nenufarfalhudas, nós éramos os únicos que preponderávamos. Nosso barquito ficava ali, quieto, sonecando no suave embalo. O avô, calado, espiava as longínquas margens.

Tudo em volta mergulhava em cacimbações, sombras feitas da própria luz, fosse ali a manhã eternamente ensonada. Ficávamos assim, como em reza, tã quietos que parecia-mos perfeitos.

  De repente, meu avô se erguia no concho. Com o balanço quase o barco nos deitava fora. O velho, excitado, acenava. Tirava seu pano vermelho e agitava-o com decisã. A quem acenava ele? Talvez era a ninguém. Nunca, nem por pinte, vislumbrei por ali alma deste ou de outro mundo. Mas o avô acenava seu pano.

  - Você nã vê lá, na margem? por trás do cacimbo?

  Eu nã via. Mas ele insistia, desabotoando os nervos.

  - Nã é lá. É lááá. Nã vê o pano branco, a dançar-se?

  Para mim havia era a completa neblina e os receáveis aléns, onde o horizonte se perde.

Meu velho, depois, perdia a miragem e se recolhia, encolhido no seu silêncio. E regressávamos, viajando sem companhia de palavra.

  Em casa, minha mãe nos recebia com azedura. E muito me proibia, nos próximos futuros. Nã queria que fôssemos para o lago, temia as ameaças que ali moravam. Primeiro, se zangava com o avô, desconfiando dos seus nã-propósitos. Mas depois, já amolecida pela nossa chegada, ela ensaiava a brincadeira:

  - Ao menos vissem o namwetxo moha! Ainda ganhávamos vantagem de uma boa sorte...

  O namwetxo moha era o fantasma que surgia à noite, feito só de metades: um olho, uma perna, um braço. Nós éramos miúdos e saíamos, aventurosos, procurando o moha. Mas nunca nos foi visto tal monstro. Meu avô nos apoucava. Dizia ele que, ainda em juventude, se tinha entrevisto com o tal semifulano. Invençã dele, avisava minha mãe. Mas a nós, miudagens, nem nos passava desejo de duvidar.

  Certa vez, no lago proibido, eu e vovô aguardávamos o habitual surgimento dos ditos panos. Estávamos na margem onde os verdes se encaniçam, aflautinados. Dizem: o primeiro homem nasceu de uma dessas canas. O primeiro homem? Para mim nã podia haver homem mais antigo que meu avô. Acontece que, dessa vez, me apeteceu espreitar os pântanos. Queria subir à margem, colocar pé em terra nã-firme.

  - Nunca! Nunca faça isso!

  O ar dele era de maiores gravidades. Eu jamais assistira a um semblante tã bravio em meu velho. Desculpei-me: que estava descendo do barco mas era só um pedacito de tempo. Mas ele ripostou:

  - Neste lugar não há pedacitos. Todo o tempo, a partir daqui, são eternidades.

  Eu tinha um pé meio-fora do barco, procurando o fundo lodoso da margem. Decidi me equilibrar, busquei chã para assentar o pé. Sucedeu-me entã que não encontrei nenhum fundo, minha perna descia engolida pelo abismo. O velho acorreu-me e me puxou. Mas a força que me sugava era maior que o nosso esforço. Com a agitaçã, o barco virou e fomos dar com as costas posteriores na água. Ficámos assim, lutando dentro do lago, agarrados às abas da canoa. De repente, meu avô retirou o seu pano do barco e começou a agitá-lo sobre a cabeça.

 - Cumprimenta também, você!

  Olhei a margem e não vi ninguém. Mas obedeci ao avô, acenando sem convicções. Então, deu-se o espantável: subitamente, deixámos de ser puxados para o fundo. O remoinho que nos abismava se desfez em imediata calmaria. Voltámos ao barco e respirámos os alívios gerais. Em silêncio, dividimos o trabalho do regresso. Ao amarrar o barco, o velho me pediu:

  - Não conte nada o que se passou. Nem a ninguém, ouviu?

  Nessa noite, ele me explicou suas escondidas razões. Meus ouvidos se arregalavam para lhe decifrar a voz rouca. Nem tudo entendi. No mais ou menos, ele falou assim: nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece, meu filho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam da outra margem. E assim lhes causamos uma total tristeza. Eu levo-lhe lá nos pântanos para que você aprenda a ver. Não posso ser o último a ser visitado pelos panos.

  - Me entende?

  Menti que sim. Na tarde seguinte, o avô me levou uma vez mais ao lago. Chegados à beira do poente ele ficou a espreitar. Mas o tempo passou em desabitual demora. O avô se inquietava, erguido na proa do barco, palma da mão apurando as vistas. Do outro lado, havia menos que ninguém. Desta vez, bem o avô não via mais que a enevoada solidão dos pântanos. De súbito, ele interrompeu o nada:

  - Fique aqui!

  E saltou para a margem, me roubando o peito no susto. O avô pisava os interditos territórios? Sim, frente ao meu espanto, ele seguia em passo sabido. A canoa ficou balançando, em desequilibrismo com meu peso ímpar. Presenciei o velho a alonjar-se com a discrição de uma nuvem. Até que, entre a neblina, ele se declinou em sonho, na margem da miragem. Fiquei ali, com muito espanto, tremendo de um frio arrepioso. Me recordo de ver uma garça de enorme brancura atravessar o céu. Parecia uma seta trespassando os flancos da tarde, fazendo sangrar todo o firmamento. Foi então que deparei na margem, do outro lado do mundo, o pano branco. Pela primeira vez, eu coincidia com meu avô na visão do pano. Enquanto ainda me duvidava foi surgindo, mesmo ao lado da aparição, o aceno do pano vermelho do meu avô. Fiquei indeciso, barafundido. Então, lentamente, tirei a camisa e agitei-a nos ares. E vi: o vermelho do pano dele se branqueando, em desmaio de cor. Meus olhos se neblinaram até que se poentaram as visões.

  Enquanto remava um demorado regresso, me vinham à lembrança as velhas palavras de meu velho avô: a água e o tempo são irmãs gémeos, nascidos do mesmo ventre. E eu acabava de descobrir em mim um rio que não haveria nunca de morrer. A esse rio volto agora a conduzir meu filho, lhe ensinando vislumbrar os brancos panos da outra margem.

Venho Aqui Brincar no Português

Autor: Mia Couto

in Estórias Abensonhadas

11/04/1997

"Venho brincar aqui no Português....a língua nossa,

essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós,

moçambicanos, ficarmos mais Moçambique"

- Mia Couto

Perguntas à Língua Portuguesa

Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.

A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o vôo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem, é idimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como a escrita e o mundo mutuamente se desobedecem.

Meu anjo da guarda, felizmente, nunca me guardou.

Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica.

Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulburbio.

No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.

Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?

Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas? Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:

Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?

No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?

A diferença entre um às no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?

O mato desconhecido é que é o anonimato?

O pequeno viaduto é um abreviaduto?

Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente?

Quem vive numa encruzilhada é um encruzilheu?

Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?

Tristeza do boi vem dele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?

O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?

Onde se esgotou a água se deve dizer: "aquabou"?

Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?

Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?

Mulher desdentada pode usar fio dental?

A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?

As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: "finanças"?

Um tufão pequeno: um tufinho?

O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?

Em águas doces alguém se pode salpicar?

Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?

Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?

Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?

Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?

Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocamos essoutro português - o nosso português - na travessia dos matos, fizemos que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.

Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas - o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente.

A Nossa Casa

Autor: José Craveirinha

Moçambique

in "Maria", Caminho, 1998

Ambição

minha e da Maria

foi termos uma casa nossa

onde nos contarmos os cabelos brancos.

Sonho realizado.

Casa definitiva já temos.

Lote 42.

Talhão 71883.

Fachada pintada a cal.

Classica arquitectura rectangular.

Uma via asfaltada com um único sentido.

Tudo sito no derradeiro bairrismo

que é morar no bairro de Lhanguene.

Pelo menos envelhecer já não é problema.

O resto na altura mais propícia

surgirá por si.

Parece que está por pouco.

Na lista onde eu consto

É injusto que tarde

estarmos juntos.

Aldeia Queimada

Autor: José Craveirinha

Moçambique

in "Babalaze das Hienas", Maputo 1997

Mas

nas noites

desparasitadas de estrelas

é que as hienas actuam.

É

de cinzas

o vestígio das palhotas.

Barbearia

Autor: José Craveirinha

Moçambique

in "Babalaze das Hienas", Maputo 1997

Na barbearia às escuras

Júlio Chaúque foi barbeado

quando voltava da machamba de milho.

Os que viram

dizem que Júlio foi escanhoado

até às carótidas do colarinho

em requintes de gilete

dos facões de mato.

Os barbeiros do Chaúque

deixaram em toalhas de folhas secas

congruentes nódoas roxas.

A Boca

Autor: José Craveirinha

Moçambique

in "Babalaze das Hienas", Maputo 1997

Jucunda boca

deslabiada a ferozes

júbilos de lâmina

afiada.

Alva dentadura

antónima do riso

às escâncaras desde a cilada.

Exotismo de povo flagelado

esse atroz formato

da fala.

Um Homem Nunca Chora

Autor: José Craveirinha

Moçambique

Do livro "Cela 1", poemas escritos aquando da sua passagem pelas masmorras da PIDE em Moçambique

Acreditava naquela história

do homem que nunca chora.

Eu julgava-me um homem.

Na adolescência

meus filmes de aventuras

punham-me muito longe de ser cobarde

na arrogante criancice do herói de ferro.

Agora tremo.

E agora choro.

Como um homem treme.

Como chora um homem!

Aforismo

Havia uma formiga

compartilhando comigo o isolamento

e comendo juntos.

Estávamos iguais

com duas diferenças:

Não era interrogada

e por descuido podiam pisa-la.

Mas aos dois intencionalmente

podiam por-nos de rastos

mas não podiam

ajoelhar-nos.

(1968)

Pena

Zangado

acreditas no insulto

e chamas-me negro.

Mas não me chames negro.

Assim não te odeio.

Porque se me chamas negro

encolho os meus elásticos ombros

e com pena de ti sorrio.

Depoimento Autobiográfico

Janeiro de 1977

José João Craveirinha nasceu em 28 de Maio 1922 em Maputo.

Iniciou a sua carreira como jornalista no "O Brado Africano", e colaborou/trabalhou com diversos orgãos de informação em Moçambique.

Teve um papel importante na vida da Associação Africana a partir dos anos 50.

Grande parte da sua poesia ainda se mantém dispersa na imprensa, não tendo sido incluída nos livros que publicou até à data. Outra parte permanece inédita.

Esteve preso pela Pide, de 1965 a 1969, na celebre Cela 1 com Malangatana e Rui Nogar, entre outros.

Tem muitas obras publicadas, sendo considerado um dos grandes poetas de Africa e da Língua Portuguesa. - Joaquim Falé

"Nasci a primeira vez em 28 de Maio de 1922. Isto num domingo. Chamaram-me Sontinho, diminutivo de Sonto. Pela parte da minha mãe, claro. Por parte do meu pai fiquei José.

Aonde? Na Av. do Zichacha entre o Alto Maé e como quem vai para o Xipamanine. Bairros de quem? Bairros de pobres.

Nasci a segunda vez quando me fizeram descobrir que era mulato. A seguir fui nascendo à medida das circunstâncias impostas pelos outros. Quando o meu pai foi de vez, tive outro pai: o seu irmão. E a partir de cada nascimento eu tinha a felicidade de ver um problema a menos e um dilema a mais. Por isso, muito cedo, a terra natal em termos de Pátria e de opção. Quando a minha mãe foi de vez, outra mãe: Moçambique.

A opção por causa do meu pai branco e da minha mãe negra.

Nasci ainda mais uma vez no jornal "O Brado Africano". No mesmo em que também nasceram Rui de Noronha e Noemia de Sousa. Muito desporto marcou-me o corpo e o espírito. Esforço, competição, vitória e derrota, sacrifício até à exaustão. Temperado por tudo isso.

Talvez por causa do meu pai, mais agnóstico do que ateu. Talvez por causa do meu pai, encontrando no Amor a sublimação de tudo. Mesmo da Pátria. Ou antes: principalmente da Pátria. Por causa da minha mãe só resignação.

Uma luta incessante comigo próprio. Autodidacta.

Minha grande aventura: ser pai. Depois eu casado. Mas casado quando quis. E como quis.

Escrever poemas, o meu refúgio, o meu país também. Uma necessidade angustiosa e urgente de ser cidadão desse país, muitas vezes altas horas da noite."

Eles Foram Lá

Neste dia 25 de Setembro, dia das FADM e comemoração do inicio da luta armada contra o regime colonial português, nada mais "adequado" que um excerto do livro "Babalaze das Hienas", recentemente lançado em Maputo e da autoria de José Craveirinha.

Uma edição da AEMO com o apoio do Instituto Camões.

Este "incómodo" livro de Craveirinha lembra algo de que já não se fala muito em Moçambique, os horrores cometidos durante a guerra civil que devastou o país.

Joaquim Falé

página 19:

Vovó

amanhã não precisa

ir ao hospital.

Ontem eles foram lá

deram maningue tiros

partiram tudo, tudo

mataram doentes

mutilaram o senhor enfermeiro

e violaram a senhora parteira.

Outros doentes privilegiados

foram carregar na cabeça

farinha açucar e arroz

da cooperativa

...

Foram."

página 50:

TORRESMOS À MACHIMBOMBO QUEIMADO

À partida o machimbombo parecia

um ónibus lotado de gente

em viagem.

Lá para o quilómetro 20 a oeste da Gorongosa

chaparia e respectivo tejadilho ficaram

fuliginoso similar de frigideira

fritando várias doses de torresmos

derivantes fósseis de passageiros

interrompidos antes da terminal.

Sobra este prosaico odor da sintomática

machimbombesca fotocópia de esquife.

O impaciente estardalhaço dos tiros

ainda por cima esfrangalhou o original."

Fábula

"Menino gordo comprou um balão

e assoprou

assoprou com força o balão amarelo.

Menino gordo assoprou

assoprou

assoprou

o balão inchou

inchou

e rebentou!

Meninos magros apanharam os restos

e fizeram balõezinhos."

Gente a Trouxe-Mouxe

No livro "Babalaze das Hienas", de José Craveirinha, página 11:

Gente a trouxe-mouxe da má sorte

calcorreia a pátria asilando-se onde

não cheira a bafo

de bazucadas.

Gente que gastronomiza

desapetitosos bifes de cascas

guisados de raízes ao natural

e sobremesas de capim seco.

Gente dessedentando martírios

nos charcos se chover.

...

ou a pé descalço dançando.

A castiça folia.

Das minas.

página 28

CARREIRA DE GAZA

Escusado fazer pontaria.

Chusmas de rajadas acertam sempre.

Povo armado de maternitude e velhice

esgota a lotação das carreiras de Gaza

rumo à saudade de onde saiu.

Objectivo estratégico de maternitude

machibombo da carreira de Gaza

atingido em cheio calcinou.

A mãe que dava o peito ao bebé de três meses

foi removida assim mesmo.

Gula

Autor: José Craveirinha

In "Babalaze das Hienas", AEM, Maputo, 1997

Uivam

as suas maldições

as insidiosas hienas

própria sanha.

Rituais

de tão escabrosa gulodice

que até nos esfomeados

aldeões da tragédia

a gula das quizumbas

se baba nas beiças

das catanas,

dos machados.

Outra Beleza

Autor: José Craveirinha

In "Babalaze das Hienas", AEM, Maputo, 1997

Uns exibem insólitos perfis

de outra beleza

maquilhada

no mato.

ou

do viés

ou de frente

perfeitos modelos de caveira

desfilam sem nariz.

Reza, Maria

Autor: José Craveirinha

1ª versão

Suam no trabalho as curvadas bestas

e não são bestas

são homens, Maria!

Corre-se a pontapés os cães na fome dos ossos

e não são cães

são seres humanos, Maria!

Feras matam velhos, mulheres e crianças

e não são feras, são homens

e os velhos, as mulheres e as crianças

são os nossos pais

nossas irmãs e nossos filhos, Maria!

Crias morrem á míngua de pão

vermes na rua estendem a mão a caridade

e nem crias nem vermes são

mas aleijados meninos sem casa, Maria!

Do ódio e da guerra dos homens

das mães e das filhas violadas

das crianças mortas de anemia

e de todos os que apodrecem nos calabouços

cresce no mundo o girassol da esperança

Ah! Maria

põe as mãos e reza.

Pelos homens todos

e negros de toda a parte

põe as mãos

e reza, Maria!

Sementeira

Autor: José Craveirinha

1ª versão, 1955

"Cresce a semente

lentamente

debaixo da terra escura.

Cresce a semente

enquanto a vida se curva no chicomo

e o grande sol de Africa

vem amadurecer tudo

com o seu calor enorme de revelação.

Cresce a semente

que a povoação plantou curvada

e a estrada passa ao lado

macadamizada quente e comprida

e a semente germina

lentamente no matope

imperceptível

como um caju em maturação.

E a vida curva as suas milhentas mãos

geme e chora na sina

de plantar nosso suor branco

enquanto a estrada passa ao lado

aberta e poeirenta até Gaza e mais além

camionizada e comprida.

Depois

de tanga e capulana a vida espera

espiando no céu os agoiros que vão

rebentar sobre as campinas de Africa

a povoação toda junta no eucalipto grande

nos corações a mamba da ansiedade.

Oh! Dia de colheita vai começar

na terra ardente do algodão!"

Terra de Canaã

Autor: José Craveirinha

10.8.1982

Não, piloto Israelita.

Inútil procurares nos incêndios de Beirute

e nos inocentes corpos mutilados pelos estilhaços ardentes

as belas palavras do Cântico dos Cânticos.

E voa mais baixo.

Desce velozmente mais baixo no teu caça-bombardeiro.

Voa mais baixo. Desce ainda mais baixo piloto hebreu.

Desce até Eichman. Voa até ao fundo dos ascos.

Acelera até os motores e as bombas de fósforo

contigo oscularem sofregamente o chão sagrado.

Foi para este holocausto que sobreviveste

ao teu genocídio nos tempos da Nazilandia?

Achas que é esta a tua ambicionada Terra de Canaã?

Tu achas que assim ganhas a paz na Terra Prometida?"

Makezú

Autor: Viriato da Cruz

Angola

Poemas, 1961

- "Kuakiè!!!... Makèzú, Makèzú..."

...................................................

O pregão da avó Ximinha

É mesmo como os seus panos,

Já não tem a cor berrante

Que tinha nos outros anos.

Avó Xima está velhinha,

Mas de manhã, manhazinha,

Pede licença ao reumâtico

E num passo nada prático

Rasga estradinhas na areia...

Lá vai para um cajueiro

Que se levanta altaneiro

No cruzeiro dos caminhos

Das gentes que vão pà Baixa.

Nem criados, nem pedreiros

Nem alegres lavadeiras

Dessa nova geração

Das "venidas de alcatrão"

Ouvem o fraco pregão

Da velhinha quitandeira.

- "Kuakiè... Makèzú... Makèzú..."

- "Antão, véia, hoje nada?"

- "Nada, mano Filisberto...

Hoje os tempo tá mudado..."

- "Mas tá passá gente perto...

Como é aqui tás fazendo isso?"

- "Não sabe?! Todo esse povo

Pegó um costume novo

Qui diz qué civrização:

Come só pão com chouriço

Ou toma café com pão...

E diz ainda pru cima

(Hum... mbundo kène muxima...)

Qui o nosso bom makèzú

É pra veios como tu".

- "Eles não sabe o que diz...

Pru qué qui vivi filiz

E tem cem ano eu e tu?"

- "É pruquê nossas raiz

Tem força do makèzu!..."

Namoro

Autor: Viriato da Cruz

Angola

Poemas, 1961

Mandei-lhe uma carta em papel perfumado

e com letra bonita eu disse ela tinha

um sorrir luminoso tão quente e gaiato

como o sol de Novembro brincando

de artista nas acácias floridas

espalhando diamantes na fímbria do mar

e dando calor ao sumo das mangas

Sua pele macia - era sumaúma...

Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas

sua pele macia guardava as doçuras do corpo rijo

tão rijo e tão doce - como o maboque...

Seus seios, laranjas - laranjas do Loje

seus dentes... - marfim...

Mandei-lhe essa carta

e ela disse que não.

Mandei-lhe um cartão

que o amigo Maninho tipografou:

"Por ti sofre o meu coração"

Num canto - SIM, noutro canto - NÃO

E ela o canto do NÃO dobrou

Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete

pedindo, rogando de joelhos no chão

pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigenia,

me desse a ventura do seu namoro...

E ela disse que não.

Levei á Avo Chica, quimbanda de fama

a areia da marca que o seu pé deixou

para que fizesse um feitiço forte e seguro

que nela nascesse um amor como o meu...

E o feitiço falhou.

Esperei-a de tarde, á porta da fabrica,

ofertei-lhe um colar e um anel e um broche,

paguei-lhe doces na calcada da Missão,

ficamos num banco do largo da Estátua,

afaguei-lhe as mãos...

falei-lhe de amor... e ela disse que não.

Andei barbudo, sujo e descalço,

como um mona-ngamba.

Procuraram por mim

"-Não viu...(ai, não viu...?) não viu Benjamim?"

E perdido me deram no morro da Samba.

Para me distrair

levaram-me ao baile do Sô Januario

mas ela lá estava num canto a rir

contando o meu caso

as mocas mais lindas do Bairro Operário.

Tocaram uma rumba - dancei com ela

e num passo maluco voamos na sala

qual uma estrela riscando o céu!

E a malta gritou: "Aí Benjamim !"

Olhei-a nos olhos - sorriu para mim

pedi-lhe um beijo - e ela disse que sim.

Serão Menino

Autor: Viriato da Cruz

Angola

Na noite morna, escura de breu,

enquanto na vasta sanzala do ceu,

de volta das estrelas, quais fogareus,

os anjos escutam parábolas de santos...

na noite de breu,

ao quente da voz

de suas avós,

meninos se encantam

de contos bantus...

"Era uma vez uma corça

dona de cabra sem macho...

......................................

...Matreiro, o cágado lento

tuc...tuc...foi entrando

para o conselho animal...

("não tarde que ele chegou!")

Abriu a boca e falou -

deu a sentença final:

"-não tenham medo da força!

Se o leão o alheio retém

-luta ao Mal! Vitória ao Bem!

tire-se ao leão - dê-se à corça."

Mas quando lá fora

o vento irado nas frestas chora

e ramos xuxualha de altas mulembas

e portas bambas batem em massembas

os meninos se apertam de olhos abertos:

- Eué

- É cazumbi...

E a gente grande -

bem perto dali

feijão descascando para o quitende -

a gente grande com gosto ri...

Com gosto ri, porque ela diz

que o cazumbi males só faz

a quem não tem amor, aos mais

seres busca, em negra noite,

essa outra voz de cazumbi

essa outra voz - Felicidade...

A Sombra das Galera

Autor: Alexandre Dáskalos

Angola

Poesia, 1961

Ah! Angola, Angola, os teus filhos escravos

nas galeras correram as rotas do Mundo.

Sangrentos os pés, por pedregosos trilhos

vinham do sertão, lá do sertão, lá bem do fundo

vergados ao peso das cargas enormes...

Chegavam às praias de areias argênteas

que se dão ao Sol ao abraço do mar...

... Que longa noite se perde na distância!

As cargas enormes

os corpos disformes.

Na praia, a febre, a sede, a morte, a ânsia

de ali descansar

Ah! As galeras! As galeras!

Espreitam o teu sono tão pesado

prostrado do torpor em que mal te arqueias.

Depois, apenas pestanejam as estrelas,

o suplício de arrastar dessas correias.

Escravo! Escravo!

O mar irado, a morte, a fome,

A vida... a terra... o lar... tudo distante.

De tão distante, tudo tão presente, presente

como na floresta à noite, ao longe, o brilho

duma fogueira acesa, ardendo no teu corpo

que de tão sentido, já não sente.

A América é bem teu filho

arrancado à força do teu ventre.

Depois outros destinos dos homens, outros rumos...

Angola vais na sede da conquista.

Hoje no entrechoque das civilizações antigas

essa figura primitiva se levanta

simples e altiva.

O seu cãntico vem de longe e canta

ausências tristes de gerações passadas e cativas.

E onde vão seus rumos? Onde vão seus passos?

Ah! Vem, vem numa força hercúlea

gritar para os espaços

como os dardos do Sol ao Sol da vida

no vigor que em ti próprio reverberas:

- Não sou cativo!

A minha alma é livre, é livre

enfim!

Liberto, liberto, vivo...

Mais... porque esperas?

Ah! Mata, mata no teu sangue

o presságio da sombra das galeras!

Carta

Autor: Alexandre Dáskalos

Angola

Nova Lisboa, Angola, 1924 - Guarda, Portugal, 1961

Jesus Cristo Jesus Cristo

Jesus Cristo, meu irmão

Sou fio dos pais da terra

Tenho corpo p'ra sofrer

Boca para gritar

E comer o que comer

Os meus pés que vão

No chão

Minhas mãos são de trabalho

Em coisas que eu não sei

E não tenho nem apalpo

Trabalho que fica feito

Para o branco me dizer

"Obra de preto sem jeito"

E minha cubata ficou

Aberta à chuva e ao vento

Vivo ali tão nu e pobre

Magrinho como o pirão

Meus fios saltam na rua

Joga o rapa sai ladrão

Preto ladrão sem imposto

Leva porrada nas mãos

Vai na rusga trabalhar

Se é da terra vai para o mar

Larga a lavra deixa os bois

Morre os bois... e depois?

Se é caçador de palanca

Se é caçador de leão

Isso não faz mal nenhum

Lança as redes no mar

Não sai leão sai atum...

Jesus Cristo Jesus Cristo

Jesus Cristo meu irmão

Sou fio dos pais da terra

Um pouco de coração

De coração e perdão

Jesus Cristo meu irmão.

Manhã

Autor: Alexandre Dáskalos

Angola

Poesia, 1961

Erguida do fundo das águas plácidas

dum lago surge Mulher.

Limos na pasta dos cabelos

escondem o mistério dos olhos

olhando a curva do seu ventre.

Flutuando

entre sombras e reflexos

duma luz longínqua,

a forma dos braços

ganha o mais e mais fundo das águas.

Os seios erguidos

apontam ao longe

a aurora que vem.

Em volta,

musgos, líquens, algas,

em fosforescências arbóreas

de constelações que lembram

os recessos da vida.

Em plantas aquáticas, marítimas,

chegam-lhe da floresta

lutas de homens, desesperos e cansaços,

feras e povos divididos, misturados

confundidos

para a sua criação.

E tudo esquecido ou ignorado,

só no lago

o corpo erguido,

jovem,

abrindo nas sombras o seu perfil que nasce

o seu perfil de Mãe

dos Homens do futuro.

Maria

Autor: Alexandre Dáskalos

Angola

Do Tempo suspenso, 1998

No temporal da revolução

os baús de enxovais

preciosos

das raparigas casadoiras

naufragaram.

Ainda hoje me consolo

com as leituras de Marx.

E, no entanto,

perdi meu enxoval.

MARIA

Autor: Alexandre Dáskalos

Angola

(Nova Lisba, Angola, 1924-Guarda, Portugal 1962)

O meu amor está triste

e enche-me de cuidados.

Onde está a almofada dos bilros?

Já provaste os dendêns com açucar?

Não reduzas a valsa a um cheese-burguer

num pub desconhecido!

Ele disse-me - não canses os olhos nos bilros.

O meu amor está triste e enche-me de cuidados.

Poesias

Autor: Alexandre Dáskalos

Angola

Poesias, 1961

Quando eu morrer

não me dêem rosas

mas ventos.

Quero as ânsias do mar

quero beber a espuma branca

duma onda a quebrar e vogar.

Ah, a rosa dos ventos

a correrem na ponta dos meus dedos

a correrem, a correrem sem parar.

Onda sobre onda infinita como o mar

como o mar inquieto

num jeito

de nunca mais parar.

Por isso eu quero o mar.

Morrer, ficar quieto,

não.

Oh, sentir sempre no peito

o tumulto do mundo

da vida e de mim.

E eu e o mundo.

E a vida. Oh mar,

o meu coração

fica para ti.

Para ter a ilusão

de nunca mais parar.

Porto

Autor: Alexandre Dáskalos

Angola

Poesais, 1961

Havia nos olhos postos o sentido

de não vencerem distâncias.

Calados, mudos, de lábios colados no silêncio

os braços cruzados como quem deseja

mas de braços cruzados.

Os navios chegavam ao porto e partiam.

Os carregadores falavam da gente do mar.

A gente do mar dos que ficam em terra.

As mercadorias seguiam.

Os ventos, dispersos na alma do tempo,

traziam as novas das terras longínquas.

Segredavam-se em noites e dias

a todos os homens

em todos os mares

e em todos os portos

num destino comum.

Os navios chegavam ao porto

e partiam...

E Agora Só Me Restam

Autor: Maria Alexandre Dáskalos

Angola

in "Vozes poéticas da lusofonia", Sintra, 1999

e agora só me restam

os poetas gregos.

O silêncio diz - esquece.

E o espinho da rosa enterrado no peito

é meu.

Os deuses não assistiram a isto.

Em Torno da Minha Baía

Autor: Alda do Espírito Santo

S. Tomé e Príncipe

1963

Aqui, na areia,

Sentada à beira do cais da minha baía

do cais simbólico, dos fardos,

das malas e da chuva

caindo em torrente

sobre o cais desmantelado,

caindo em ruinas

eu queria ver à volta de mim,

nesta hora morna do entardecer

no mormaço tropical

desta terra de África

à beira do cais a desfazer-se em ruinas,

abrigados por um toldo movediço

uma legião de cabecinhas pequenas,

à roda de mim,

num voo magistral em torno do mundo

desenhando na areia

a senda de todos os destinos

pintando na grande tela da vida

uma história bela

para os homens de todas as terras

ciciando em coro, canções melodiosas

numa toada universal

num cortejo gigante de humana poesia

na mais bela de todas as lições

HUMANIDADE.

Onde Estão os Homens Caçados Neste Vento de Loucura

Autor: Alda do Espírito Santo

S. Tomé e Príncipe

1958

O sangue caindo em gotas na terra

homens morrendo no mato

e o sangue caindo, caindo...

Fernão Dias para sempre na história

da Ilha Verde, rubra de sangue,

dos homens tombados

na arena imensa do cais.

Aí o cais, o sangue, os homens,

os grilhões, os golpes das pancadas

a soarem, a soarem, a soarem

caindo no silêncio das vidas tombadas

dos gritos, dos uivos de dor

dos homens que não são homens,

na mão dos verdugos sem nome.

Zé Mulato, na história do cais

baleando homens no silêncio

do tombar dos corpos.

Aí, Zé Mulato, Zé Mulato.

As vítimas clamam vingança

O mar, o mar de Fernão Dias

engolindo vidas humanas

está rubro de sangue.

- Nós estamos de pé -

Nossos olhos se viram para ti.

Nossas vidas enterradas

nos campos da morte,

os homens do cinco de Fevereiro

os homens caídos na estufa da morte

clamando piedade

gritando p'la vida,

mortos sem ar e sem água

levantam-se todos

da vala comum

e de pé no coro de justiça

clamam vingança...

... Os corpos tombados no mato,

as casas, as casas dos homens

destruídas na voragem

do fogo incendiário,

as vias queimadas,

erguem o coro insólito de justiça

clamando vingança.

E vós todos carrascos

e vós todos algozes

sentados nos bancos dos réus:

- Que fizeste do meu povo?...

- Que respondeis?

- Onde está o meu povo?...

E eu respondo no silêncio

das vozes erguidas

clamando justiça...

Um a um, todos em fila...

Para vós, carrascos,

o perdão não tem nome.

A justiça vai soar,

E o sangue das vidas caídas

nos matos da morte

ensopando a terra

num silêncio de arrepios

vai fecundar a terra,

clamando justiça.

É a chamada da humanidade

cantando a esperança

num mundo sem peias

onde a liberdade

é a pátria dos homens...

Meditando

Autor: Lopito Feijoó

Angola

- engoli dum espinheiro um grande raminho -

&

da tese concebida ao prefácio por escrever

teço toc toc enquanto toco levemente o provir

d'outra gestão

daí a cor do sangue escasso caro irmão protestante

que tão bem partes os passeios que passeio

assim que passo passo a passo me ditando!

Arremessos

Autor: Filimone Meigos

no livro "Poema & Kalash in love"

"A despeito de questiúnculas, e a despropósito das overdoses do born in, sempre e sempre o futuro, nossa fúria cosmopolita mas agora falemos de ortodoxias.

De facto, mais do que a vermelha e a clássica são estes bolsares viscerais, mangungu d'ontem maningue chatos. Para os ruminantes, barrete e folhoso são o vai-vem obvio- implícito, basta o ruminar e bolsar sobre.

Exaustos de exaurir cifrões, estão os dias que nos transportam es-cru-GULOSA-mente (m) (por via erudita). No ponto a mesma musica: os fúnebres encontros para chorarmos um entre comuns: os irmãos foram-se de largada.

É verdade que o que somos tem sempre segmentos do que fomos.. Será verdade, também, que o xibalo e a palhota sirvam para nos nacionalizarem, só porque se u$a?

Ou seremos nos, há caso, mero cidadãos do ocaso?

Mas por criar, sobram-nos os mesmos filhos que vamos sendo dos nossos pais.

É verdade irrefutável que, se a história está a ser mal escrita, a minha geração dar-se-á ao desplante de reescreve-la, me ti cu lo sa mente(m)! "

Manuel Meigos Filimone nasceu na Beira a 4 de Marco de 1960.

Foi professor secundário, secretario de governador, jornalista e oficial das Forcas Armadas de Moçambique. É editor cultural do semanário Savana. Membro activo da AEMO, tem colaboração espalhada por vários orgãos de informação.

"Poema & Kalash in Love" é o seu primeiro publicado, colecção timbila No 14 da Associação dos Escritores Mocambicanos em 1995.

Morna

Autor: Daniel Filipe

Cabo Verde

A Ilha e a Solidão

E já saudade a vela, além.

Serena, a música esvoaça

na tarde calma, plúmbea, baça,

onde a tristeza se contém.

os pares deslizam embrulhados

de sonhos em dobras inefáveis.

(Ó deuses lúbricos, ousáveis

erguer, então, na tarde morta

a eterna ronda de pecados

que ia bater de porta em porta!)

E ao ritmo túmido do canto

na solidão rubra da messe,

deixo correr o sal e o pranto

- subtil e magoado encanto

que o rosto núbil me envelhece.

Viagem na Noite Longa

Autor: Mário Fonseca

Praia, Ilha de Santiago, Cabo Verde, 1939

Selô,1962

Na noite longa

minha alma

chora sua fome de séculos

Meus olhos crescem

e choram famintos de eternidade

até serem duas estrelas

brilhantes

no céu imenso.

E o infinito se detém em mim

Na noite longa

uma remotíssima nostalgia

afunda minha alma

E eu choro marítimas lágrimas

Enquanto meu desejo heróico

de engolir os céus

se alarga

e é já céu

Tenho então

a sensação esparsamente longa

de vogar no absoluto.

De Boca a Barlavento

Autor: Corsino Fortes

Mindelo, S.Vicente, Cabo Verde, 1933

Pão & fonema, 1974

I

Esta

a minha mão de milho & marulho

Este

o sol a gema E não

o esboroar do osso na bigorna

E embora

O deserto abocanhe a minha carne de homem

E caranguejos devorem

esta mão de semear

Há sempre

Pela artéria do meu sangue que g

             o

             t

             e

             j

             a

De comarca em comarca

A árvore E o arbusto

Que arrastam

As vogais e os ditongos

para dentro das violas

II

Poeta! todo o poema:

geometria de sangue & fonema

Escuto Escuta

Um pilão fala

árvores de fruto

ao meio do dia

E tambores

erguem

na colina

Um coração de terra batida

E lon longe

Do marulho á viola fria

Reconheço o bemol

Da mão domestica

Que solfeja

Mar & monção mar & matrimónio

Pão pedra palmo de terra

Pão & património

Girassol

Autor: Corsino Fortes

in "Claridade", n°9, 1960

Girassol

Rasga a tua indecisão

E liberta-te.

Vem colar

O teu destino

Ao suspiro

Deste hirto jasmim

Que foge ao vento

Como

Pensamento perdido.

Aderido

Aos teus flancos

Singram navios.

Navios sem mares

Sem rumos

De velas rotas.

Amanheceu!

Orça o teu leme

E entra em mim

Antes que o Sol

Te desoriente

Girassol!

Pecado Original

Autor: Corsino Fortes

Cabo Verde

in "Claridade", 1960

Passo pelos dias

E deixo-os negros

Mais negros

Do que a noute brumosa.

Olho para as coisas

E torno-as velhas

Tão velhas

A cair de carunchos.

Só charcos imundos

Atestam no solo

As pegadas do meu pisar

E fica sempre rubro vermelho

Todo o rio por onde me lavo.

E não poder fugir

Não poder fugir nunca

A este destino

De dinamitar rochas

Dentro do peito...

A Pedra Filosofal

Autor: António Gedeão

" Eles nã sabem que o sonho

é uma constante da vida

tão concreta e definida

como outra coisa qualquer,

como esta pedra cinzenta

em que me sento e descanso,

como este ribeiro manso

em serenos sobressaltos,

como estes pinheiros altos

que em verde e oiro se agitam,

como estas aves que gritam

em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho

é vinho, é espuma, é fermento,

bichinho álacre e sedento,

de focinho pontiagudo,

que fossa através de tudo

num perpetuo movimento.

Eles não sabem que o sonho

é tela, é cor, é pincel,

base, fuste, capitel,

arco em ogiva, vitral,

pináculo de catedral,

contraponto, sinfonia,

máscara grega, magia,

que é retorta de alquimista,

mapa do mundo distante,

rosa-dos-ventos, Infante,

caravela quinhentista,

que é Cabo da Boa Esperança,

ouro, canela, marfim,

florete de espadachim,

bastidor, passo de dança,

Colombina e Arlequim,

passarola voadora,

para-raios, locomotiva,

barco de proa festiva,

alto-forno, geradora,

cisão do átomo, radar,

ultra-som, televisão,

desembarque em foguetão

na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,

que o sonho comanda a vida.

Que sempre que um homem sonha

o mundo pula e avança

como bola colorida

entre as mãos duma criança."

Escorraçados da Morte

Autor: Zeto Cunha Gonçalvez

Angola

in "Vozes poéticas da lusofonia", Sintra 1999

Escorraçados da morte

soletram

a nómada caligrafia dos pássaros.

Soletram - e soletram:

alfabeto de passos, um linguajar de setas

envenenadas petras.

Da Lua viemos, nascemos - obrigado,

Paizinho. Escorraçados da morte

a terra nos levará à água?

Sem mapas nem sentido

do regresso - nosso è o fogo

passo a passo em rições guardado.

E as matas - para ainda sobreviver.

Escorraçados da morte

soletram

a nómada caligrafia dos pássaros.

Soletram - e soletram:

alfabeto de passos, um linguajar

de setas

envenenadas pedras.

Os Ombros Modulam o Vento

Autor: Zeto Cunha Gonçalvez

Angola

in "Vozes poéticas da lusofonia", Sintra 1999

Entristece

a tua tristeza - e canta

(os ombros modulam o vento

modulam a noite

a soberana voz

dos horizontes)

entristece

a tua tristeza - e canta

Vem, Cacimbo

Autor:

Poetas angolanos, 1962

Estende teus dedos anelados sobre a minha carapinha

derrama a tua inconsciente tranquilidade

sobre a minha angústia submergida.

Vem, cacimbo

eu quero ver os cafeeiros ao peso dos bagos vermelhos

endireita os troncos vencidos dos bambus

coroa os cumes altos das serras do Bailundo

limpa a visão empoeirada dos comboios que descem para Benguela

nimba poeticamente os horizontes dos camionistas de Angola.

Vem, cacimbo

debruça-te cuidadosamente sobre as plantas da madrugada,

destrói a angústia resignada das gentes da minha terra

abre-lhes os horizontes dos cantos de esperança.

Vem, cacimbo

Derrama a tua inquieta saciedade sobre a minha natureza

a esta hora empoeirada com o barulho das esquinas

com o cheiro a óleo sujo dos automóveis

e com a visão daquele nosso amigo

cujo ordenado são quinze escudos diários

irremediavelmente caido sobre a grama do jardim

O cacimbo

eu quero percorrer teus campos sossegados

orquestrados pela alegria do beija-flor.

VI. Por Uma Sereia de Treva

Autor: Francisco Xavier Guita Júnior (Guita Jr.)

no livro "O agora e o depois das coisas (1990-1992)", de Guita Jr., edição da AEMO, colecção Início, No. 7. Publicado em 1997, página16:

sem segredos melhor que nós

ninguém sabe a morte a dois

e como heróis subterrâneos que somos

procuramos a vida por entre as trevas

navegamos algas ao amanhecer

para encontrar um irmão pelas mãos

empresta-me a tua máscara quero saborear

esta melodia ter nos olhos a cor

e antes que o dilúvio se propague

nademos nas profundezas do asco

talvez surja uma sereia de treva

onde possamos pousar o coração

que em fragmentos se dissolve no iodo

da atmosfera que transportamos às costas

sem segredo melhor que nós

ninguém por entre a fresta da porta

da noite apalpa este enigma:

prestar contas ao silêncio dos olhos

e conter a náusea por um instante

ultrapassando o passado hóspede da masmorra

da presente folia ardente transeunte

Francisco Xavier Guita Júnior (Guita Jr.) nasceu em Inhambane a 14 de Março de 1964. Professor de Português, membro fundador e coordenador do XIPHEFO, caderno literário que surgiu em 1987 em Inhambane, onde foram publicados os primeiros poemas de Guita Jr.

VIII. Psicoalteração do Rato

Autor: Guita Jr.

Do livro "O agora e o depois das coisas 1990-1992", página 18

rói o rato a roupa

na corda ao fim da rua

e arrota

num ror de razão o rato

rouba arroz ao porto do povo

e roto troca o troco

por trigo trancando-se atrás

do rasto raro e fica rico o rato

e por um triz não é trazido

de rastos pela rua a trote

mas chega ao trono e trás!

Rato sem roldana trás!... catrapuz!

Sem ruga roga a quem ri

rato rói rato até à raiz

mais radical a ratazana tradicional

num golpe de rins reluz ao raiar

de um enorme sol de luz

e ao farejar o rumorejar do país

corre pr'o Rand

pela ração sem retalhos

e quando regressa rola ruela

à risca e acende o rastilho

e não se rala por quem se roa

o rato resignado recolhe a rede

e rema rompendo as rugas

do mar sem rumo

e aí sem renitência reina

sem rusga nem ratoeira

e não se rala o rato roedor

rói até rédea

rato recto faz do rito revolução

XIV. No Jardim da Noite Com Estrelas de Verão

Autor: Guita Jr.

Do livro "O agora e o depois das coisas 1990-1992", página 26

para a Carla

agora órfão ou castrado

perdoadas estão as naus de da Gama

e contemplo só estrelas e flores onde tragava

a humilhação e o chicote do patrão?

vasculho as ruas da cidade

na procura do subterfúgio a nu

é inevitável o retorno

haverá fantasmas em meu redor

há micaias em meu corpo

que deflagram como minas

cansadas dos silêncios

quando sonho alegrias

acendo uma vela no peito

sobre o castiçal do coração

e volto a desaguar na escuridão

e apalpo e amarfanho a agonia

no dorso da noite

porém não tenho armas

para falar de amor

é esta a loucura da minha intenção

Carta Dum Contratado

Autor: António Jacinto

Luanda, 1924-

Eu queria escrever-te uma carta

Amor,

Uma carta que dissesse

Deste anseio

De te ver

Deste receio

De te perder

Deste mais que bem querer que sinto

Deste mal indefinido que me persegue

Desta saudade a que vivo todo entregue...

Eu queria escrever-te uma carta

Amor,

Uma carta de confidências íntimas,

Uma carta de lembranças de ti,

De ti

Dos teus lábios vermelhos como tacula

Dos teus cabelos negros como diloa

Dos teus olhos doces como macongue

Dos teus seios duros como maboque

Do teu andar de onça

E dos teus carinhos

Que maiores não encontrei por ai...

Eu queria escrever-te uma carta

Amor,

Que recordasse nossos dias na capopa

Nossas noites perdidas no capim

Que recordasse a sombra que nos caia dos jambos

O luar que se coava das palmeiras sem fim

Que recordasse a loucura

Da nossa paixão

E a amargura da nossa separação...

Eu queria escrever-te uma carta

Amor,

Que a não lesses sem suspirar

Que a escondesses de papai Bombo

Que a sonegasses a mamãe Kiesa

Que a relesses sem a frieza

Do esquecimento

Uma carta que em todo o Kilombo

Outra a ela não tivesse merecimento...

Eu queria escrever-te uma carta

Amor,

Uma carta que ta levasse o vento que passa

Uma carta que os cajus e cafeeiros

Que as hienas e palancas que os jacarés e bagres

Pudessem entender

Para que se o vento a perdesse no caminho

Os bichos e plantas

Compadecidos de nosso pungente sofrer

De canto em canto

De lamento em lamento

De farfalhar em farfalhar

Te levassem puras e quentes

As palavras ardentes

As palavras magoadas da minha carta

Que eu queria escrever-te amor

Eu queria escrever-te uma carta...

Mas, ah, meu amor, eu não sei compreender

Por que é, por que é, por que é, meu bem

Que tu não sabes ler

E eu - Oh! Desespero! - não sei escrever também!

Castigo Pró Comboio Malandro

Autor: António Jacinto

Luanda, 1924-

Poemas, 1961

Esse comboio malandro

passa

passa sempre com a forca dele

ué ué ué

hii hii hii

te-quem-tem te-que-tem te-quem-tem

o comboio malandro

passa

Nas janelas muita gente

ai bo viaje

adeujo homéé

n'ganas bonitas

quitandeiras de lenço encarnado

levam cana no Luanda pra vender

hii hii hii

aquele vagon de grades tem bois

múu múu múu

tem outro

igual como este de bois

leva gente,

muita gente como eu

cheio de poeira

gente triste como os bois

gente que vai no contrato

Tem bois que morre no viaje

mas o preto não morre

canta como é criança

"Mulonde iá késsua uádibalé

uádibalé uádibale...'"

esse comboio malandro

sòzinho na estrada de ferro

passa

passa

sem respeito

uéué ué

com muito fumo na trás

hii hii hii

te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem

Castigo Pró Comboio Malandro

Autor> António Jacinto

Luanda, 1924

Este poema do António Jacinto tem uma versão mais longa, musicada e divulgada por Fausto:

Esse comboio malandro

passa

passa sempre com a forca dele

[...]

passa

passa

sem respeito

uéué ué

com muito fumo na trás

hii hii hii

te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem

Comboio malandro

O fogo que sai no corpo dele

Vai no capim e queima

Vai nas casas dos pretos e queima

Esse comboio malandro

Já queimou o meu milho

Se na lavra do milho tem pacacas

Eu faço armadilhas no chão,

Se na lavra tem kiombos

Eu tiro a espingarda de kimbundo

E mato neles

Mas se vai lá fogo do malandro

- Deixa!-

UÉ ué ué

Te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem

Só fica fumo,

Muito fumo mesmo.

Mas espera só

Quando esse comboio malandro descarrilar

E os brancos chamar os pretos p´ra empurrar

Eu vou

Mas não empurro

- Nem com chicote -

Finjo só que faço forca

Aka!

Comboio malandro

Você vai var só o castigo

Vai dormir mesmo no meio do caminho.

Declaração

Autor: António Jacinto

Luanda 28/9/1924

1953

As aves, como voam livremente

num voar de desafio!

Eu te escrevo, meu amor,

num escrever de libertação.

Tantas, tantas coisas comigo

adentro do coração

que só escrevendo as liberto

destas grades sem limitação.

Que não se frustre o sentimento

de o guardar em segredo

como liones, correm as águas do rio!

corram límpidos amores sem medo.

Ei-lo que to apresento

puro e simples - o amor

que vive e cresce ao momento

em que fecunda cada flor.

O meu escrever-te é

realização de cada instante

germine a semente, e rompa o fruto

da Mãe-Terra fertilizante.

Era Uma Vez...

Autor: António Jacinto

Luanda, 1924-

Poemas, 1961

Vovo Bartolomé, ao sol que se coava da mulembeira

por sobre a entrada da casa de chapa,

enlanguescido em carcomida cadeira

vivia

- relembrando-a -

a história de Teresa mulata

Teresa Mulata!

essa mulata Teresa

tirada lá do sobrado

por um preto d'Ambaca

bem vestido,

bem falante,

escrevendo que nem nos livros!

Teresa Mulata - a

lumbramento de muito moço -

pegada por um pobre d'Ambaca

fez passar muitas conversas

andou na boca de donos e donas...

Quê da mulata Teresa?

A história da Teresa mulata...

Hum...

Vovo Bartolomé enlanguescido em carcomida cadeira adormeceu

o sol coando das mulembeiras veio brincar com as moscas nos lábios

ressequidos que sorriem

Chiu! Vovo tá dormindo!

O moço d'Ambaca sonhando...

Monangamba

Autor: António Jacinto

Luanda, 1924-

Poemas, 1961

Naquela roca grande não tem chuva

é o suor do meu rosto que rega as plantações;

Naquela roca grande tem café maduro

e aquele vermelho-cereja

são gotas do meu sangue feitas seiva.

O café vai ser torrado

pisado, torturado,

vai ficar negro, negro da cor do contratado.

Negro da cor do contratado!

Perguntem as aves que cantam,

aos regatos de alegre serpentear

e ao vento forte do sertão:

Quem se levanta cedo? quem vai a tonga?

Quem traz pela estrada longa

a tipoia ou o cacho de dendém?

Quem capina e em paga recebe desdem

fuba podre, peixe podre,

panos ruins, cinquenta angolares

"porrada se refilares"?

Quem?

Quem faz o milho crescer

e os laranjais florescer

- Quem?

Quem dá dinheiro para o patrão comprar

maquinas, carros, senhoras

e cabeças de pretos para os motores?

Quem faz o branco prosperar,

ter barriga grande - ter dinheiro?

- Quem?

E as aves que cantam,

os regatos de alegre serpentear

e o vento forte do sertão

responderão:

- "Monangambééé..."

Ah! Deixem-me ao menos subir ás palmeiras

Deixem-me beber maruvo, maruvo

e esquecer diluído nas minhas bebedeiras

- "Monangambéée...'"

Vadiagem

Autor: António Jacinto

Luanda, 1924-

Poemas, 1961

Naquela hora já noite

quando o vento nos traz mistérios a desvendar

musseque em fora fui passear as loucuras

com os rapazes das ilhas:

Uma viola a tocar

o Chico a cantar

(que bem que canta o Chico!)

e a noite quebrada na luz das nossas vozes

Vieram também, vieram também

cheirando a flor de mato

- cheiro gravido de terra fértil -

as moças das ilhas

sangue moço aquecendo

a Bebiana, a Teresa, a Carminda, a Maria.

Uma viola a tocar

o Chico a cantar

a vida aquecida com o sol esquecido

a noite é caminho

caminho, caminho, tudo caminho serenamente negro

sangue fervendo

cheiro bom a flor de mato

a Maria a dançar

(que bem que dança remexendo as ancas!)

E eu a querer, a querer a Maria

e ela sem se dar

Vozes dolentes no ar

a esconder os punhos cerrados

alegria nas cordas da viola

alegria nas cordas da garganta

e os anseios libertados

das cordas de nos amordaçar

Lua morna a cantar com a gente

as estrelas se namorando sem romantismo

na praia da Boavista

o mar ronronante a nos incitar

Todos cantando certezas

a Maria a bailar se aproximando

sangue a pulsar

sangue a pulsar

mocidade correndo

a vida

peito com peito

beijos e beijos

as vozes cada vez mais bebadas de liberdade

a Maria se chegando

a Maria se entregando

Uma viola a tocar

e a noite quebrada na luz do nosso amor...

Moçambicanto 1

Autor:Gulamo Khan

Gulamo Khan nasceu em Maputo a 11 de Maio de 1952.

Foi primeiro, locutor na Rádio Clube de Moçambique e, mais tarde, jornalista.

Era adido de Imprensa na Presidência da República, quando morreu a 19 de Outubro de 1986, no acidente de aviação que vitimou também Samora Machel, em Mbuzini, na África do Sul.

O livro "Mocambicanto" é uma recolha dos seus textos, elaborada após a sua morte, por Albino Magaia, Calane da Silva, José Craveirinha e Julio Navarro. Uma edição da AEMO, colecção "timbila", no. 8.

"céleres as águas

zambezeiam pela memória

das almadias do silêncio

nem o zumbido da cigarra

me entontece

nem o troar do tambor

me ensurdece

as vozes que são

sulcos das nossas esperanças

Oh pátria

Moçambiquero-te

neste alumbramento

e amar-te

devo-o à carne e ao nervo

deglutidos em revolta.

Da enxada e do martelo

é o verso escrito na palma

da tua mão punho fechado

que nas alavancas das horas

faz refulgir o aço

analfabetamente parido

Cavador maldito

pronto a decepar o tronco

deste imbondeiro tão paria

carcomido pelas talecuas

sugadoras do seu sangue

es o veneno da nhoca cuspideira

queimando as migalhas bélicas

postadas de cócoras no caminho

dos simples

assim altivo ergues o teu nome

num pais ainda

de nadas e famélicos

desbravando os crápulas bem como os satanhocos.

Sei da Pátria

o nome erguido

a estrela tatuada

no corpo do Indico

uma timbila

canção guerreira"

Casa da Justiça

Autor: Grandal Nkepe

in "Casa da Justiça", Edição do Autor, 1994

Página 48:

" Corri para a cozinha à procura da Mariana e pedi-lhe para cozinhar depressa. Os grandes pensam que os pequenos não sofrem e que eu não tenho coração só porque ontem fui buscar os óculos para ler os correios, vim a correr e deixei-os cair no chão, parti- os. Por outro lado, não ando sempre a correr. Assim, escrevi numa folha - Vou-me enforcar, e enforquei-me, mas como nunca mais morria, escondi-me com a corda ao pescoço em cima da copa do cajueiro da aldeia e daí podia ver Mariana correr para a esquerda e para a direita, para a frente e para trás, aparecer e desaparecer, chorava e chamava:

- Bruno Capanema! Bru...no! uno! Bruno Ca...pa...nema!...

Sempre pensei que Mariana é como Nossa Senhora, é boa e gosta de mim. Henriqueta, pelo contrário, é má e dizia:

- Aquele pateta inventou mais uma das suas!

- Basílio, pelo seu lado, não chorava, porque sabia que eu estava na copa do cajueiro com a minha corda esticada de sisal.

Comecei a ter medo de voltar para baixo sem me enforcar."

pagina 126:

"Excelência, a minha cabeça não é uma batata! Sou um gajo de sorte. Deixe-me apertar-lhe a mão; deixe-me viver à tripa forra para levar uma vida mais folgada, a correr o país de lés a lés, embrulhado nas mulheres com palavreado, um oficio em que posso dar à língua e que nada tem que ver com ratos nem canoas.

Eu sou um tipo afortunado, um presunto no rio.

O meu primeiro passo para ganhar a vida era ao frio, à poeira, ao barulho; tinha de partir de manha sem tomar chá, para receber uma lição de pesado fardo! Não me ralo nada. Estive vinte anos na guerra; não voltam, esses vinte anos, nem que assobie por eles, como não se pode fazer crescer as árvores; tem-se de esperar que Deus todo poderoso as faca crescer.

Eu sou um autentico homem da sociedade; ninguém é capaz de me conhecer, mas estou armado em palhaço, é o que estou a dizer. Acabei dois dias a rir. Essa é boa! O resto talvez seja o mais importante.

- Mete-me esse malandro no calabouço! - dizia o chefe, por mais que eu o tratasse por senhor chefe."

Aeroporto

Autor: Rui Knopfli

in "O monhé das cobras"

Página 56

É o fatídico mês de Março, estou

no piso superior a contemplar o vazio.

Kok Nam, o fotógrafo, baixa a Nikon

e olha-me, obliquamente, nos olhos:

Não voltas mais? Digo-lhe só que não.

Não voltarei, mas ficarei sempre,

algures em pequenos sinais ilegíveis,

a salvo de todas as futurologias indiscretas,

preservado apenas na exclusividade da memória

privada. Não quero lembrar-me de nada,

só me importa esquecer e esquecer

o impossível de esquecer. Nunca

se esquece, tudo se lembra ocultamente.

Desmantela-se a estátua do Almirante,

peça a peça, o quilómetro cem durando

orgulhoso no cimo da palmeira esquiva.

Desmembrado, o Almirante dorme no museu,

o sono do bronze na morte obscura das estátuas

inúteis. Desmantelado, eu sobreviverei

apenas no precário registo das palavras.

Mangas Verdes

Autor: Rui Knopfli, 1972

"Mangas verdes com sal

Mangas verdes com sal

sabor longiquo, sabor acre

da infância a canivete repartida

no largo semicírculo da amizade.

Sabor lento, alegria reconstituída

no instante desprevenido,

na maré-baixa,

no minuto da suprema humilhação.

Sabor insinuante que retorna devagar

ao palato amargo,

à boca ardida,

à crista do tempo,

ao meio da vida."

Matinés do Scala

Rui Knopfli

in "O monhé das cobras", edição da Caminho, 1997, página 43

Obrigatoriamente aos sábados à tarde.

O episódio da série, os desenhos animados

e a coboiada. Ao intervalo, a surtida

ao Hazis para comprar scones e laranjada.

Devolvida a senha de entrada, recomeçava

o espectáculo. Na fila Z, rente

à pantalha, gesticulante, o Piricas

regia a partitura. Hopalong Cassidy

jogava à porrada, sem que o sacana

do chapéu de aba larga lhe caísse,

alguma vez, da pinha. Empinando,

enfunadas as crinas ondulantes, palominos

amestrados completavam o circo. Mas,

neste embuste, o único herói autêntico

era, no comando das operações, o Piricas.

Miradouro

Autor: Rui Knopfli

in "O monhé das cobras", edição da Caminho, 1997, páginas 45-6

Entre a rampa e o caracol da barreira,

o picadeiro ideal para o exibicionismo

laurentino, ao fim da tarde, passeio raso,

sobranceiro à baía e à Catembe.

Enquanto a malta ia e vinha, até ser Marrocos.

Pavoneavam-se as meninas e nós,

idem, flexionando peito e músculo,

miradas discretas em redor. Rotina

diária, sempre cumprida sem atropelos.

Mesmo com a ruidosa chegada do Cagalhim,

a cavalo na sua desconjuntada carrinha Ford,

a tossir e a resfolegar, cansada das correrias

da véspera. Presumido herói, o Cagalhim

era só o bobo daquela festa. Caçador furtivo

e nocturno, sua maior aventura -

rezava a lenda - fora a de ter enfrentado,

sob o holofote, um cocone que, falhado o tiro,

o terá colhido, arrancando-lhe da cara os óculos.

De borco, espezinhado, dizem que o Cagalhim,

faca em punho, o teria capado. Pior ainda,

que vexado, o boi-cavalo, envergando os óculos

do caçarreta, até hoje percorre os matos

em busca dos testículos perdidos. Entretanto,

no Miradouro, para gáudio do pessoal,

o Cagalhim exibe, com alarido, os que não tem.

Naturalidade

Autor: Rui Knopfli

in "O País dos Outros", 1959

"Naturalidade

Europeu, me dizem.

Eivam-me de literatura e doutrina

europeias

e europeu me chamam.

Não sei se o que escrevo tem a raiz de algum

pensamento europeu.

É provável... Não. É certo,

mas africano sou.

Pulsa-me o coração ao ritmo dolente

desta luz e deste quebranto.

Trago no sangue uma amplidão

de coordenadas geográficas e mar Indico.

Rosas não me dizem nada,

caso-me mais à agrura das micaias

e ao silêncio longo e roxo das tardes

com gritos de aves estranhas.

Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.

Mas dentro de mim há savanas de aridez

e planuras sem fim

com longos rios langues e sinuosos,

uma fita de fumo vertical,

um negro e uma viola estalando."

Pedra no Caminho

Autor: Rui Knopfli

no livro Reino Submarino, 1962

" A pedra no caminho"

"Toma essa pedra em tua mão,

toma esse poliedro imperfeito,

duro e poeirento. Aperta em

tua mão esse objecto frio,

redondo aqui, acolá acerado.

redondo aqui, acolá acerado.

Segura com força esse granito

bruto. Uma pedra, uma arma

em tua mão. Uma coisa inócua,

todavia poderosa, tensa,

em sua coesão molecular,

em suas linhas irregulares.

Ao meio-dia em ponto, na avenida

ensolarada, tu és um homem

um pouco diferente. Ao meio-dia

na avenida tu és um homem

segurando uma pedra. Segurando-a

com amor e raiva."

"Mabogue ya M'bizwa"

Autor: Hortencio Langa

Capítulo I no livro "Magoda"

Hortencio Langa nasceu a 23 de Marco em Manjacaze. Viveu a sua infância e parte da adolescência no Chibuto, onde começou a interessar-se pelas artes, principalmente pela musica e pintura. É pela via da arte musical que se inicia na criação literária sob forma de composição poética para canção, tanto em língua portuguesa como em língua tsonga. Tem artigos publicados sobre temas culturais em suplementos literários. "Magoda", escrito em 1986, é o seu primeiro livro. Edição da Associação dos Escritores Mocambicanos, colecção Karingana, No. 15.

"Conta-se que, naquele tempo, o rei Mabogue para se prevenir da conspiração dos chefes das tribos vizinhas, ele próprio se disfarçou e, incógnito, penetrou no "ninho das víboras", pode assim dizer-se, pois os N'Gongwe eram uma tribo aguerrida e de terrível ferocidade. Barbudos, grossos como touros, alimentavam-se de carne e leite azedo, assim o exigia a sua natureza. Adoravam os deuses das águas, os seus feiticeiros eram consagrados no fundo dos rios onde permaneciam longo tempo dedicando-se ao estudo dos mistérios da vida e da morte. De lá, só saiam depois de prolongados rituais à beira das águas. Ao fim de longos dias e longas noites de danças e preces, emergiam numa noite de luar como monstros de matope, imundos e grotescos. Quando o lodo escorria dos seus corpos reluziam então as escamas, corais e corpúsculos aquáticos encrustados na sua pele exalando um cheiro a peixe.

Mas Mabogue ya M'bizwa também possuía o segredo da magia dos deuses da floresta sagrada onde os reis seus antepassados, em peregrinações, iam buscar coragem apondo as suas armas em riste na boca de perigosos felinos e eram vacinados por autenticas cobras mamba para alcançarem o poder da invulnerabilidade."

Topas-ou-Viras

Date: Sun, 27 Apr 1997 15:02:13 gmt+0200 From: Joaquim Falé

Autor: Hortencio Langa

in "Magoda", capítulo V, páginas 30-31

"O espírito farrista e brincalhão dos seus novos amigos depressa se revelou, quando certo dia um mecânico conhecido por Juca Mulato caiu de borco ao sair do banco onde estava sentado e para sua grande surpresa, já no chão, viu-se com os atacadores das botas atados um no outro. No bar, a gargalhada foi geral, expandindo-se à esplanada onde os miúdos que jogavam "matraquilhos" sacudiam-se em risos convulsivos.

A raiva com que ficou Juca Mulato, podia medir-se pela maneira como se desembaraçou das botas, descalçando-as, para se precipitar sobre os miúdos. Mas imaginar o que teria acontecido se uma camioneta não tivesse estacionado entre ele e os miúdos em debandada, tolhendo- lhe o passo, guinando numa travagem brusca para evitar um atropelamento fatal... é difícil senão mesmo impossível.

Juca, ainda sufocado pela sede de vingança, dirigiu-se resfolegando à mesa de "matraquilhos" e introduziu as bolas ainda por jogar baliza adentro, sob o olhar de protesto dos miúdos que ofegavam a salvo, protegidos pela distância."

Noite

Autora: Alda Lara

Angola

Noites africanas langorosas,

esbatidas em luares...,

perdidas em mistérios...

Ha cantos de tunguruluas pelos ares!...

Noites africanas endoidadas,

onde o barulhento frenesi das batucadas,

poe tremores nas folhas dos cajueiros...

Noites africanas tenebrosas...,

povoadas de fantasmas e de medos,

povoadas das histórias de feiticeiros

que as amas-secas pretas,

contavam aos meninos brancos...

E os meninos brancos cresceram,

e esqueceram

as histórias...

Por isso as noites são tristes...

endoidadas, tenebrosas langorosas,

mas tristes...como o rosto gretado,

e sulcado de rugas, das velhas pretas...,

como o olhar cansado dos colonos,

como a solidao das terras enormes

mas desabitadas...

é que os meninos brancos...

esqueceram as histórias,

com que as amas-secas pretas

os adormeciam,

nas longas noites africanas...

Os meninos brancos...esqueceram!...

Prelúdio

Autor: Alda Lara

Angola

Pela estrada desce a noite...

Mãe-Negra, desce com ela...

Nem buganvilias vermelhas,

nem vestidinhos de folhos,

nem brincadeiras de guisos,

nas suas mãos apertadas.

Só duas lágrimas grossas,

em duas faces cansadas.

Mãe-Negra tem voz de vento,

voz de silêncio batendo

nas folhas do cajueiro...

Tem voz de noite, descendo,

de mansinho, pela estrada...

Que é feito desses meninos

que gostava de embalar?...

Que é feito desses meninos

que ela ajudou a criar?...

Quem ouve agora as histórias

que costumava contar?...

Mãe-Negra não sabe nada...

Mas ai de quem sabe tudo,

como eu sei tudo

Mãe-Negra!

Os teus meninos cresceram,

e esqueceram as histórias

que customavas contar...

Muitos partiram p'ra longe,

quem sabe se hão-de voltar!...

So tu ficaste esperando,

mãos cruzadas no regaço,

bem quieta, bem calada.

é tua a voz deste vento,

desta saudade descendo,

de mansinho pela estrada...

Presença Africana

Autora: Alda Lara

Benguela, Angola

E apesar de tudo,

ainda sou a mesma!

Livre e esguia,

filha eterna de quanta rebeldia

me sagrou.

Mãe-Africa!

Mãe forte da floresta e do deserto,

ainda sou,

a Irmã-Mulher

de tudo o que em ti vibra

puro e incerto...

A dos coqueiros,

de cabeleiras verdes

e corpos arrojados

sobre o azul...

A do dendem

nascendo dos abraços das palmeiras...

A do sol bom, mordendo

o chão das Ingombotas...

A das acácias rubras,

salpicando de sangue as avenidas,

longas e floridas...

Sim!, ainda sou a mesma.

A do amor transbordando

pelos carregadores do cais

suados e confusos,

pelos bairros imundos e dormentes

(Rua 11!...Rua 11!...)

pelos meninos

de barriga inchada e olhos fundos...

Sem dores nem alegrias,

de tronco nu e musculoso,

a raça escreve a prumo,

a força destes dias...

E eu revendo ainda, e sempre, nela,

aquela

longa história onconsequente...

Minha terra...

Minha, eternamente...

Terra das acácias, dos dongos,

dos colios baloiçando, mansamente...

Terra!

Ainda sou a mesma.

Ainda sou a que num canto novo

pura e livre,

me levanto,

ao aceno do teu povo!

Regresso

Autora: Alda Lara

Angolana

Esta poesia foi escrita em 1948, quando a autora viveu alguns anos em Coimbra e Lisboa, onde se formou em medicina. Voltou, na verdade, e faleceu em 1962, em Cambambe, ANGOLA.

Quando eu voltar,

que se alongue sobre o mar,

o meu canto ao Creador!

Porque me deu, vida e amor,

para voltar...

Voltar...

Ver de novo baloicar

a fronde magestosa das palmeiras

que as derradeiras horas do dia,

circundam de magia...

Regressar...

Poder de novo respirar,

(oh!...minha terra!...)

aquele odor escaldante

que o humus vivificante

do teu solo encerra!

Embriagar

uma vez mais o olhar,

numa alegria selvagem,

com o tom da tua paisagem,

que o sol,

a dardejar calor,

transforma num inferno de cor...

Não mais o pregão das varinas,

nem o ar monotono, igual,

do casario plano...

Hei-de ver outra vez as casuarinas

a debruar o oceano...

Não mais o agitar fremente

de uma cidade em convulsão...

não mais esta visão,

nem o crepitar mordente

destes ruidos...

os meus sentidos

anseiam pela paz das noites tropicais

em que o ar parece mudo,

e o silêncio envolve tudo

Sede...Tenho sede dos crepusculos africanos,

todos os dias iguais, e sempre belos,

de tons quasi irreais...

Saudade...Tenho saudade

do horizonte sem barreiras...,

das calemas traiçoeiras,

das cheias alucinadas...

Saudade das batucadas

que eu nunca via

mas pressentia

em cada hora,

soando pelos longes, noites fora!...

Sim! Eu hei-de voltar,

tenho de voltar,

não ha nada que mo impeca.

Com que prazer

hei-de esquecer

toda esta luta insana...

que em frente estah a terra angolana,

a prometer o mundo

a quem regressa...

Ah! quando eu voltar...

Hão-de as acacias rubras,

a sangrar

numa verbena sem fim,

florir so para mim!...

E o sol esplendoroso e quente,

o sol ardente,

ha-de gritar na apoteose do poente,

o meu prazer sem lei...

A minha alegria enorme de poder

enfim dizer:

Voltei!...

Rumo

Autor: Alda Lara

Angolana

é tempo companheiro!

Caminhemos...

Longe, a Terra chama por nos,

e ninguem resiste á voz

da Terra...

Nela,

o mesmo sol ardente nos queimou

a mesma lua triste nos acariciou,

e se tu es negro,

e eu sou branca,

a mesma Terra nos gerou!

Vamos companheiro!

é tempo...

Que o meu coração

se abra á magoa das tuas maguas

e em prazer dos teus prazeres

irmão:

que as minhas mãos brancas

se estendam

para estreitar com amor

as tuas longas mãos negras...

E o meu suor,

quando rasgarmos os trilhos

de um mundo melhor.

Vamos!

que outro aceno nos inflama...

Ouves?

é a Terra que nos chama...

E é tempo companheiro!

Caminhemos...

Canção da Angonia

Autor: Gouvea Lemos

Gouvea Lemos nasceu em Lamego, Portugal. Foi para Moçambique em 1949 aos 25 anos de idade. Inicialmente começou a trabalhar na área contábil da Textafrica na Soalpo e começou ainda de lá a escrever as suas primeiras linhas como correspondente, da região do Chimoio, para o Diário de Moçambique da Beira, o jornal dos Padres. Depois passou por vários jornais de Moçambique, tendo como um dos grandes feitos ser um dos fundadores do jornal semanal Tribuna, um dos marcos do jornalismo independente de Moçambique colónia. Nos últimos anos de Moçambique foi o Director de Redacção do Noticias da Beira. José Craveirinha, Rui Knopfli, Fernando Couto (pai de Mia Couto) e muitos outros, juntos com G.L. viveram grandes momentos históricos do jornalismo moçambicano.

Em 1972, já cansado da ditadura colonial e das pressões de orgãos como os da PIDE e da censura, resolveu migrar para o Brasil. Já com problemas cardíacos e com a aflição de ter que deixar a sua Pátria adoptada, veio a falecer, três meses após a sua chegada ao Brasil, no Rio de Janeiro. Sei que G.L. nasceu em Portugal mas sei como ele sentia-se Moçambicano e como sofreu pelas injustiças dos tempos da ditadura colonialista. Sei bem disso pois como filho convivi com muitas das suas aflições. José Paulo G. Lemos

Visto a camisa lavada

e vou para o contrato.

Quem de nos,

quem de nos ira voltar?

Vinte e quatro luas,

sem ver as mulheres,

sem ver a minha terra,

sem ver o meu boi.

Quem de nos,

Quem de nos ira morrer?

Visto a camisa lavada

e vou para o contrato,

trabalhar lá longe.

Vou para além da montanha,

para lá do mato,

onde some o rio.

Quem de nos,

Quem de nos ira voltar?

Quem de nos,

Quem de nos ira morrer?

Veste a camisa lavada,

e hora de ir ao contrato.

Entra, irmão, no vagão,

vamos andar noite e dia.

Quem de nos.

Quem de nos ira voltar?

Quem de nos,

quem de nos ira morrer?

Quem de nos,

Quem de nos ira voltar

e ver as mulheres,

e ver nossas terras

e ver nossos bois?

Quem de nos ira morrer?

Quem de nos?

Quem de nos?

Menir Barroco

Autor: Manuel Sousa Lobo

Moçambique

brilham trutas na brasa um corpo na pira

arde ao ritmo de pés vísceras

de uma virgem rodando

Avoé Terra!

ânfora escorre mel

mãos azeite vão olear ombros

no capim cerveja derramaram espuma

Avoé Mandiceu!

raça grega aroma de ramisco

ostras e olhos de anho em bandejas de prata

o bode berra quer fugir da faca

Avoé Baco!

incendiou-se o colmo de um telhado

a velha já não tece cavalos desfazem

nuvens lábios sobram cinzas

Avoé Gudrun!

olhar para oriente chegaram de Damasco

vinhos muito leves frutos muito secos

Walada omíada princesa era ruiva e escrevia

Avoé Profeta!

rosado mármore açafrão café

engrenagem que chia bustos capitéis

o verbo a honra a espada roldanas degraus

Avoé Cruz!

10 caravelas indo 100 brâmanes de cócoras

1000 índios sem orelhas

10000 negros em fila

Avoé Esfera!

deitada uiva a rainha o morto sai

de um espelho Queluz tem labirintos castanholas

o infante traz coelhos para a sala do trono

Avoé Vazio!

Arte Poética

Autor: João Maimona

Angola

1979

Que erosão

no choque genésico das marés

de encontro às pedras habitadas.

Cai areia na areia.

Assim o gasto da palavra

limando os duros conformismos

libertando as verdades mais remotas

tão necessárias ao fruir dos gestos.

As Muralhas da Noite

Autor: João Maimona

Angola

A mão ia para as costas da madrugada

As mulheres estendiam as janelas da alegria

nos ouvidos onde não se apagavam as alegrias.

Entre os dentes do mar acendiam-se braços.

Os dias namoravam sob a barca do espelho.

Havia uma chuva de barcos enquanto o dia tossia.

E da chuva de barcos chegavam colchões,

camas, cadeiras, manadas de estradas perdidas

onde cantavam soldados de capacetes

por pintar no coração da meia-noite.

Eram os barcos que guardavam as muralhas

da noite que a mão ouvia nas costas

da madrugada entre os dentes do mar.

Memória

Autor: João Maimona

Angola

Baloiçando nos escombros de teu itinerário

saberás que os gados constroem estradas.

E quando a mão dezlizar pela margem

das cicatrizes que se afundam na noite

saberás que a tua mão viaja para a

colina dos dias sem escombros

e saberás que no berço da noite jaz a luz

drogada e ouvida pela cruz sobre quem viajaste.

Poema para Carlos Drummond de Andrade

Autor: João Maimona

Angola

É útil redizer as coisas

as coisas que tu não viste

no caminho das coisas

no meio do teu caminho.

Fechaste os teus dois olhos

ao bouquet das palavras

que estava a arder na ponta do caminho

o caminho que esplende os teus dois olhos.

Anuviaste a linguagem de teus olhos

diante da gramática da esperança

escrita com as manchas de teus pés descalços

ao percorrer o caminho das coisas.

Fechaste os teus dois olhos

aos ombros do corpo do caminho

e apenas viste uma pedra

no meio do caminho.

No caminho doloroso das coisas.

Alto Como o Silêncio

Autor: Maria Manuela Margarido

Ilha do Príncipe 1925-

Alto Como o Silêncio,1957

A ilha te fala

de rosas bravias

com pétalas

de abandono e medo.

No fundo da sombra

bebendo por conchas

de vermelha espuma

que mundos de gentes

por entre cortinas

espessas de dor.

Oh, a tarde clara

deste fim de Inverno!

Só com horas azuis

no fundo do casulo,

e agora a ilha,

a linha bravia das rosas

e a grande baba negra

e mortal das cobras.

Paisagem

Autor: Maria Manuela Margarido

S. Tomé e Príncipe

in "Poetas de S. Tomé e Príncipe"

Entardecer... capim nas costas

do negro reluzente

a caminho do terreiro.

Papagaios cinzentos

explodem na crista das palmeiras

e entrecruzam-se no sonho da minha infância,

na porcelana azulada das ostras.

Alto sonho, alto

como o coqueiro na borda do mar

com os seus frutos dourados e duros

como pedras oclusas

oscilando no ventre do tornado,

sulcando o céu com o seu penacho

doido.

No céu perpassa a angústia austera

da revolta

com suas garras suas ânsias suas certezas.

E uma figura de linhas agrestes

se apodera do tempo e da palavra.

Serviçais

Autor: Maria Manuela Margarido

S. Tomé e Príncipe

in "Poetas de S. Tomé e Príncipe", 1963

O aroma dos mamoeiros

desde a grota.

Os moleques sonham cazumbis

nas lajes do secador.

Lenta, a narrativa

dos serviçais sentados

no limiar da esperança

é palanca negra a derrubar

paliçadas e fronteiras,

palanca a devorar a distância,

a regressar a Angola,

aos muxitos do Sul;

é chuva grossa

empapando os campos de Cabo Verde

a germinar o milho da certeza.

Trazem na pele tatuada

a hierarquia das relíquias

alimentando-se de um sangue

desprezado

que elege os magistrados

da morte.

Amanhã os clamores da resta

acordarão as longas avenidas

de braços viris

e a terra do Sul

será de novo funda e fresca

e será de novo sabe

a terra seca de Cabo Verde,

livres enfim os homens

e a terra dos homens.

Socopé

Autor: Maria Manuela Margarido

S. Tomé e Príncipe

in "Poetas de S. Tomé e Príncipe", 1963

Os verdes longos da minha ilha

são agora a sombra do ocâ,

névoa da vida,

nos dorsos dobrados sob a carga

(copra, café ou cacau - tanto faz).

Ouço os passos no ritmo

calculado do socopé,

os pés-raizes-da-terra

enquanto a voz do coro

insiste na sua queixa

(queixa ou protesto - tanto faz).

Monótona se arrasta

até explodir

na alta ânsia de liberdade.

Vós Que Ocupais a Nossa Terra

Autor: Maria Manuela Margarido

S. Tomé e Príncipe

in "Poetas de S. Tomé e Príncipe", 1963

É preciso não perder

de vista as crianças que brincam:

a cobra preta passeia fardada

à porta das nossas casas.

Derrubam as árvores fruta-pão

para que passemos fome

e vigiam as estradas

receando a fuga do cacau.

A tragédia já a conhecemos:

a cubata incendiada,

o telhado de andala flamejando

e o cheiro do fumo misturando-se

ao cheiro do andu

e ao cheiro da morte.

Nós nos conhecemos e sabemos,

tomamos chá do gabão,

arrancamos a casca do cajueiro.

E vós, apenas desbotadas

máscaras do homem,

apenas esvaziados fantasmas do homem?

Vós que ocupais a nossa terra?

Caminho Longe

Autor: Gabriel Marianp

Cabo Verbe

in "12 poemas de circunstância", 1965

Caminho

caminho longe

ladeira de São Tomé

Não devia ter sangue

Não devia, mas tem.

Parados os olhos se esfumam

no fumo da chaminé.

Devia sorrir de outro modo

o Cristo que vai de pé.

E as bocas reservam fechadas

a dor para mais além

Antigas vozes pressagas

no mastro que vai e vem.

Caminho

caminho longe

ladeira de São Tomé

Devia ser de regresso

devia ser e não é.

Única Dádiva

Autor: Gabriel Mariano

Cabo Verbe

in "12 Poemas de Circunstância", Praia, Minerva, 1965

Os engajadores levaram

a nossa única dádiva

e já ninguém devolve

o que nos foi roubado.

Longa è a ladeira que a fome alonga.

Enquanto eu vivo

as perguntas duram

E eu vivo da fome

interrogativamente.

Longa è a ladeira que a fome alonga.

Como podem ladrões

rondar meus olhos

se amor só

meus olhos tem?

Longa è a ladeira que a fome alonga

terralonginquamente.

Morte

Autor: Filimone Meigos

Angola

in coluna "é verdade...", jornal Savana

Morte, essa unidade tridimensional do Universo Cósmico

(24 horas antes do enterro da minha irmã)

Imagino-te amanhã

a olhares-me

morta

e a pores a malta toda a viajar contigo

nas três dimensões vitais.

É verdade

a vida são três dias: ontem, hoje e amanhã.

II

Onde morre um preto há sempre um feitiço a quem arranjar dono,

tal é o mito

UKEMELIDAS

- No dia do enterro -

Não tenho que imaginar nada

aqui estas sensível ao ser

desta ausência suprema

tua presente inexistência.

Numa dimensão religiosa

"da terra vieste e à terra retornaste".

Mas

como imaginar-te, tu minha irmã querida

a seres comida por esses vermes sub-terraneos

só por causa dum paraíso?

Tempo espaço

não sei se me refaço.

No teu olhar mais uma pazada de dor.

No meu coração

qual acto, urna de contrição.

III

(choro de minha mãe)

Sentada ao lado de S. Pedro estas

minha filha ao lado dos que já cá não estão

pai nosso que estais no céu

desgraça a minha nesta terra

que se fendeu

e recebeu minha Dina.

Já não tenho duvidas

fender é sempre receber

buraco dá, buraco leva

tal é o destino de todos eles

(isto é, todos nos)

Sobre os mortos

OS MORTOS TAMBÉM AMAM

ACASALAM-SE À TERRA

E FAZEM-SE LENDA

PARA QUE NOVAS GERAÇÕES

SE AMEM MAIS E MELHOR...

NO ENTANTO

CUSTA-ME PRESENCIAR ENTERROS

TAL É A AVERSÃO QUE OS EVITO

EMBORA OS HAJA INEVITÁVEIS.

O PONTO É QUE

ENTRE A PIOR IMAGEM DA TUA VIDA

E ESTA DO TEU ENCAIXILHO

PREFIRO A VIVA REMADORA CONTRA A MARÉ

QUE ERAS.

Dunas

Autor: João Melo

Angola

in "Vozes poéticas da lusofonia", Sintra 1999

Dunas brancas dunas

onde

altivo

brilha o sol;

tuas nádegas

Dunas firmes dunas

onde

célere

pulsa o sangue;

Dunas doces dunas

onde

trémulo

sucumbo ardendo;

tuas nádegas

suaves frescas e belas

Exortação

Autor: Orlando Mendes

no seu livro "Adeus de Gutucumbui", edição da Académica Lda, colecção O SOM E O SENTIDO,p. 25

"Jovem, se tens exercícios de literatura

escritos há mais de um mês, destrói-os.

Rasga-os ou queima-os de preferência

(consta ser universalmente mais ortodoxo)

e se a chama te chamuscar unhas e pele

e as sujar a cinza, não queixes a dor

e lava-te. Destrói-os. Guarda-os todavia

fiéis na memória, palavra por palavra,

para que possas transmiti-los a um amigo

quando depois do venal acto de amor

forem também vender a irresistível suspeita

da tua voz trémula e dos teus outros actos.

Mas não deixes de escrever. Peço-te que não."

História

Autor: Orlando MendesBR>Moçambique

Diz a História que descendo

De celtas, mouros e visigodos.

Descendo e deles herdei todos

Os caracteres fundamentais

E talvez herdasse alguns mais

Da mestiçagem de outras raças

Que fizeram guerras, combatendo

Conquistaram e perderam praças.

Diz a História e não tenho

Do contrario uma prova séria

Em testamento que a revele.

E admito pois que o tamanho,

O rosto, o sangue, a cor da pele,

A fria razão e o instinto,

Adquiri em séculos de Ibéria

Para ser o que penso e sinto

O que mostro e o que oculto,

Excitável carne e uma voz

Memória de um país adulto

Que se não cala por não trair-me

No idioma de meus avós,

Para ser a mão direita firme

Que enche de palavras o papel,

Perpétuo aprendiz que sou eu

De velho oficio sem licença.

Admito. E as datas festejo

E retomo lutas que não venço

E amo nas horas do desejo

Com o mesmo requinte que deu

Origem de mim à Criação

E bebo o vinho e como o pão

Da minha sede e da minha fome.

Admito. E por isso, deponho.

Contudo, nada herdei que dome

A grandeza nova que transmito,

Não apenas sede, fome e sonho

De vinho, de pão ou de infinito,

Desejo, posse e fecundidade

Coragem forjada no segredo

Medo que se chore ou se brade

Guerra de amigo ou de inimigo,

Não própriamente o enredo

Mas esta seiva elementar

De África nos versos que digo

E os homens a saibam cantar.

Noiva

Autor: Orlando Mendes

in "Adeus de Gutucumbui" p. 33

Eu te daria frescas flores de laranjeira

para uma grinalda na carapinha desfrisada.

Eu te daria um colar de missangas coloridas

para uma cruz de outra carne a fogo marcada

sobre o seio esquerdo ao rasgar da virgindade.

Eu te daria um trevo de quatro folhas verdes

para que te nascesse o primeiro filho varão.

Eu te daria se não fosses a noiva de todos

fazendo bandeira com uma capulana garrida

às nove da noite naquela rua de areia

suburbana. Uma rosa encarnada se desfolha

na fonte do teu corpo em cada lua nova como

se fosses a virgem noiva a quem eu daria

flores de laranjeira, um colar e um trevo

que te darei talvez para usares quando não

puderes ser noiva de todos fazendo bandeira

às nove horas da noite naquela rua de areia."

Para um Fabulário

Fazei as medições convencionais

Por esbatido que seja o horizonte

Declarai que existe uma fronteira

Onde a dor já não possa calar-se

Guardai incontaminada a esperança

Pelo desespero de um e outro lado

Apagai na vossa terra bem amada

Os vestígios de passos paralelos

Deixai envelhecer nos rostos viris

As rugas impregnadas de silêncio

Escutai a noite que o vento possui

Com a sedução das palavras matinais

Escolhei um dia claro e fecundo

De flores abertas, amor consumado

E contai a todas as crianças, contai

Que se fundou o país das maravilhas."

De Asas Sob a Terra

Autor: José Luís Mendonça

Angola

Ergue-te cidade

malar vigília

de pássaros

estrangulados

cheiras a crepúsculos e

água, cidade

onde o vinho abre o sexo

ao gume dos astros

ó tambor de sangue

espuma de um

tempo e metal à proa

que mãos

te alijam o som

de asa sob a terra.

África

Autor: David Mestre

Angola

1972

é neste silêncio neste assalto do vento a

navegar a floresta neste sol neste amor

neste vegetal cobrir-me de verde e ser

catana cerce a executar o ânimo

afagar as mulheres no regresso da lavra

fazer das mãos a festa sonora do sexo

na cultivação do milho

é neste grito rente ao corpo frágil das

folhas que mais em ti me venço e

moro nas grandes batalhas da vida

no extenso vale das nossas angústias

no duelo cíclico das nossas intenções

Espera

Autor: David Mestre

Angola

in "Crónica do ghetto", 1973

existo acento de palavra, carapinha

recordação áspera de monandengue,

mapa de conversas na visitação da lua,

grávida luena sentada no verso da fome.

aqui esqueço África, permaneço

rente ao tiroteio dialecto das mulheres

negras, pasmadas na superfície do medo

que bate oblíquo no quimbo quebrado.

num gabinete da Europa, dois geógrafos

vão assinalar a estranha posição

dum poeta cruzado na esperança morosa

das palavras africanas aguardarem acento.

O Sol Nasce a Oriente

(de um quadro de Malangatana

Autor: David Mestre

Loures, Portugal, 1948

Vive em Angola desde os oito meses de idade

Povo, de ti canto o movimento

teu nome, canção feita de fronteiras

lua nova, javite ou lança

tua hora, quissange em trança

Do longo longe do tempo

arde minha flecha, meu lamento

minha bandeira de outro vento

aurora urdida nos lábios de Zumbi

De ti guardo o gesto

as conversas leves das árvores

a fala sabia das aves

o dialecto novo do silêncio

e as pedras, as palavras do medo

os olhos falantes da mata

quando a onça posta a sua arte

nos fita, guardada em sua mágoa.

De ti amo a denuncia felina

das tuas mãos quebradas ao presente

a dança prometida do sol

nascer um dia a Oriente

Os Olhos da Cobra Verde

Autor: Lila Momplé

in "Os olhos da cobra verde", colecção Karingana Nº 18 da AEMO, 1997

página 23

"Mulher e Cobra fitam-se longamente, sem a menor animosidade ou receio.

A mulher, já velha em anos e sofrimento, não obstante a postura derreada do corpo, conserva no rosto a rara luminosidade de quem uma longa vida não conseguiu extinguir a inocência e a capacidade de encantamento próprios da infância. A Cobra reconhece-lhe essa íntima mansidão visto que também ela é uma cobra mansa, isenta de veneno e de malícia. Por isso a observa com os seus olhinhos redondos, brilhantes e verdes, como duas esmeraldas incrustradas no corpo delgado e curto, de um verde mais claro."

Barcos

Autor: Yolanda Morazzo

Mindelo, Ilha de S.Vicente, Cabo Verde, 16/12/1928

"Nha terra é quel piquinino

É São Vicente é que di meu"

Nas praias

Da minha infância

Morrem barcos

Desmantelados.

Fantasmas

De pescadores

Contrabandistas

Desaparecidos

Em qualquer vaga

Nem eu sei onde.

E eu sou a mesma

Tenho dez anos

Brinco na areia

Empunho os remos...

Canto e sorrio...

A embarcação:

Para o mar!

É para o mar!...

E o pobre barco

O barco triste

Cansado e frio

Não se moveu...

Chão de Pátria

Autor: Marcelo Mosse

in revista "XIPHEFO", Dezembro 1994

"Cale-se a vergonha dos balazios

leva-se o verbo ao escárnio

e nos

aos escombros

Eis-me perante o rancor

que emerge da merda

das etiquetas oficiais;

os pseudo discursos expendidos

com nojo a tiracolo.

Olho com fixidez.

Vasculho num traço

flutuante:

as garras do tédio novamente charmosas

e o labor perene das micaias

nas franjas da alma."

A Noiva de Kebera

Autor: Aldino Muianga

in "A noiva de Kebera", edição do autor e Editora Escolar, 1992

Página 13

Com a habilidade nascida da experiência, Sanga-Kebera virou o ambiente frio e fúnebre que ameaçava viciar aquela noite de serão. Narrou um arrepiante nkaringana que ouvira nos remotos tempos do avô Sa-Kebera, com mortos e vivos a confraternizar em fantásticas orgias, bebendo e vertendo cabaças de sangue sobre as cabeças uns dos outros. É tal o dramatismo e o entusiasmo que põe na narração que as imagens dos personagens parecem suspender-se na atmosfera da palhota como seres reais e concretos.

A própria tia Taba-Mayeba não conseguiu suster um calafrio que lhe sacudiu o corpo inteiro.

Maria, Minh'Amor

Autor: Aldino Muianga

do conto Maria, Minh'Amor, p. 67

Aldino MUIANGA nasceu a 1 de Maio de 1950 em Maputo. Cresceu e viveu nos arrabaldes alagadiços desta cidade, tendo-se deixado contagiar e marcar pela vida agreste dos bairros pobres suburbanos. XITALA-MATI é a sua estreia em livro. Uma edição da AEMO, colecção INÍCIO número 7 de 1987

«Eu disse há-de matar este home um dia. Juro cinco chaga. Maria com ele está a brincar comigo. Eu já sabe, ele é amante de Maria e entra aqui em casa já. Este família não é bom família. Tudos dia costuma ir levar Maria na letaria, eu não pode companhar Maria por caso dele. Família sabe eu quer casar Maria, mas porqué deixa esta gajo entrar aqui? Deixa cabar festa, você vai saber qué nhé filho de Mutchatchane».

E apalpa o inseparável canivete de mola metido no bolso traseiro das calças.

Pelo canto do olho, papá Fopence apercebe-se da brusca mudança de atitude do seu acompanhante. Não lhe dá importância e retorna à conversa com os da casa.

Há um grupo de pessoas que se aglomera à porta. A mesma matrona que ali os introduzira adianta-se e, ordeiramente, distribui lugares pelas cadeiras e esteiras previamente preparadas para o efeito.

Maria não está lá.

«Oh Maria, onde você estás? Juro que você estás lá fora esperar conversar com aquela tua amigo. Então porqué não vens? Maria, faz favor não faz poco de mim, senão eu mata vocês dois e depois morre também.»

Faustino vai correspondendo distraidamente aos cumprimentos. Está ausente, vaga nas nuvens montado em tenebrosos planos.

- Este é pai de Maria. Este é avô de Maria. Este é...

As pessoas vão-se sucedendo nos cumprimentos. Uns entram, outros saem, todos mirando-o, curiosos, e invejando Maria pela aparente boa escolha que fizera.

Faustino está à beira de um desmaio. De queixo caído, varado de surpresa ouve a matrona apresentar-lhe:

- Este é Jacobe, irmão de Maria.

Faustino não crê no que ouve. À sua frente, empertigado e exibindo no rosto um sorriso de triunfo, «aquela gajo com olho de cão» estende-lhe a mão com confiança.

E envolvem-se num abraço quente que dissipa para sempre a cortina de ciúme que Faustino erguera e deixam-se sacudir por uma gargalhada convulsiva que é o presságio de uma amizade sólida e duradoira.

Ai, o Mar

"As palavras que desenhei na areia

O mar as levou em lembrança

Os meus segredos de criança

O mar os contou à sereia.

As conchas do mar também ficaram

Com os meus segredos do anoitecer

Tudo o que os meus avós me sussurraram

Ainda estava por tecer.

Os estilhaços da minha infância

Ficaram emulsionados na forca da água

Os versos feitos em minhas mágoas

Também ficaram em turbulência.

O mar levou o meu amor

A filha do gra-marinheiro

Pois ela partiu primeiro

Sem escutar o meu clamor."

Ensaio de Lágrimas

Autor: Hélder Muteia

in "Verdades e Mitos", colecção Timbila Nº 6 da AEMO, p. 85

Se as nossas lágrimas

apagassem o ódio que nos cerca

e apagassem também o fogo que nos mata

mãe

eu pediria as lágrimas de todos

sangrando as pupilas.

Mas temo, mãe

que nos afoguemos um dia

dentro das nossas lágrimas."

Reflexão

Autor: Hélder Muteia

Helder Muteia nasceu em Quelimane, Setembro de 1960, e "Verdade dos Mitos" foi o seu primeiro livro publicado. Pela AEMO, colecção TIMBILA nº 6. O autor foi secretario-geral da AEMO e é deputado na Assembléia da República.

"E se fosse apenas

a dor matemática do chicote

sorria

e olhava-te nos olhos

e cuspia-te na cara

só!

E se fosse apenas

a dor física da inércia das lágrimas

bem, ai talvez fingisse

chorar a mulher amada

e cuspia-te somente à cara!

Mas de que nos adianta agora

discutir a matemática e a física?"

Antigamente Era

Autor: Agostinho Neto

Angola

1951

Antigamente era o eu-proscrito

Antigamente era a pele escura-noite do mundo

Antigamente era o canto rindo lamentos

Antigamente era o espírito simples e bom

Outrora tudo era tristeza

Antigamente era tudo sonho de criança

A pele o espírito o canto o choro

eram como a papaia refrescante

para aquele viajante

cujo nome vem nos livros para meninos

Mas dei um passo

ergui os olhos e soltei um grito

que foi ecoar nas mais distantes terras do mundo

Harlem

Pekim

Barcelona

Paris

Nas florestas escondidas do Novo Mundo

E a pele

o espírito

o canto

o choro

brilham como gumes prateados

Crescem

belos e irresistíveis

como o mais belo sol do mais belo dia da Vida.

Com os Olhos Secos

Adutor: Agostinho Neto

Angola

Com os olhos secos

- estrelas de brilho inevitável

através do corpo através do espírito

sobre os corpos inanimes dos mortos

sobre a solidão das vontades inertes

nós voltamos

Nós estamos regressando África

e todo o mundo estará presente

no super-batuque festivo

sob as sombras do Maiombe

no carnaval grandioso

pelo Bailundo pela Lunda

Com os olhos secos

contra este medo da nossa África

que herdámos dos massacres e mentiras

Nós voltamos África

estrelas de brilho irresistível

com a palavra escrita nos olhos secos

- LIBERDADE.

Confiança

Autor: Agostinho Neto

Angola

O oceano separou-me de mim

enquanto me fui esquecendo nos séculos

e eis-me presente

reunindo em mim o espaço

condensando o tempo

Na minha história

existe o paradoxo do homem disperso

Enquanto o sorriso brilhava

no canto de dor

e as mãos construiam mundos maravilhosos

John foi linchado

o irmão chicoteado nas costas nuas

a mulher amordaçada

e o filho continou ignorante

E do drama intenso

duma vida imensa e útil

resultou certeza

As minhas mãos colocaram pedras

nos alicerces do mundo

mereço o meu pedaço de pão.

Lá no Horizonte

Autor: Agostinho Neto

Angola

Poemas, 1961

Lá no horizonte

o fogo

e as silhuetas escuras dos imbondeiros

de braços erguidos

No ar o cheiro verde das palmeiras queimadas

Poesia africana

Na estrada

a fila de carregadores bailundos

gemendo sob o peso da crueira

No quarto

a mulatinha dos olhos meigos

retocando o rosto com rouge e pó de arroz

A mulher debaixo dos panos fartos remexe as ancas

Na cama

o homem insone pensando

em comprar garfos e facas para comer à mesa

No céu o reflexo

do fogo

e as silhuetas dos negros batucando

de braços erguidos

No ar a melodia quente das marimbas

Poesia africana

E na estrada os carregadores

no quarto a mulatinha

na cama o homem insone

Os braseiros consumindo

consumindo

a terra quente dos horizontes em fogo.

O Choro de África

Autor: Agostinho Neto

Angola

Poemas, 1961

O choro durante séculos

nos seus olhos traidores pela servidão dos homens

no desejo alimentado entre ambições de lufadas românticas

nos batuques choro de Africa

nos sorrisos choro de Africa

nos sarcasmos no trabalho choro de Africa

Sempre o choro mesmo na vossa alegria imortal

meu irmão Nguxi e amigo Mussunda

no circulo das violências

mesmo na magia poderosa da terra

e da vida jorrante das fontes e de toda a parte e de todas as almas

e das hemorragias dos ritmos das feridas de Africa

e mesmo na morte do sangue ao contacto com o chão

mesmo no florir aromatizado da floresta

mesmo na folha

no fruto

na agilidade da zebra

na secura do deserto

na harmonia das correntes ou no sossego dos lagos

mesmo na beleza do trabalho construtivo dos homens

o choro de séculos

inventado na servidão

em histórias de dramas negros almas brancas preguiças

e espíritos infantis de Africa

as mentiras choros verdadeiros nas suas bocas

o choro de séculos

onde a verdade violentada se estiola no circulo de ferro

da desonesta forca

sacrificadora dos corpos cadaverizados

inimiga da vida

fechada em estreitos cérebros de maquinas de contar

na violência

na violência

na violência

O choro de Africa é um sintoma

Nós temos em nossas mãos outras vidas e alegrias

desmentidas nos lamentos falsos de suas bocas - por nós!

E amor

e os olhos secos.

Poema à Mãe Angolana

Autora: Eugénia Neto

Portugal/Angola

Avança Mãe Angolana

E dá o melhor de ti própria

Nesta luta de vida ou de morte

Avança pelos rios perigosos

Pelos pântanos lodosos

Pela savanas sem fim.

Avança pelo incomensurável horror da guerra

Entre a chuva de bombas que ilumina a terra

Mas avança porque é necessário.

Avança com teus bracos feitos asas

Abertas sobre o solo pátrio

Para proteger os teus filhos.

Não te detenhas nos gemidos do vento

Não prendas a forma das flores

Sublima o amor neste momento.

Avança Mãe Angolana

Que a tua coragem fará vacilar os soldados

Os soldados que já foram meninos

Os soldados

A que o fascismo tolheu a vontade

E que caminham sobre os cadáveres das crianças

Com risos sarcásticos de vingança...

Avança Mãe Angolana

Na terra ensopada de sangue

Dor e lágrimas

Causadas pela guerra.

Que ela florescerá

Sustentada pelo teu querer

E terás para os teus filhos

O sol aberto nas pétalas

E a serenidade dos heróis

Depois de ganha a batalha.

Angolano

Autor : Neves e Sousa

Pintor e Poeta Angolano

Ser angolano é meu fado, é meu castigo

Branco eu sou e pois já não consigo

mudar jamais de cor ou condição...

Mas, será que tem cor o coração?

Ser africano não é questao de cor

é sentimento, vocação, talvez amor.

não é questao nem mesmo de bandeiras

de lingua, de costumes ou maneiras...

A questao é de dentro, é sentimento

e nas parecencas de outras terras

longe das disputas e das guerras

encontro na distância esquecimento!

Ilha de Moçambique

Autor: Neves e Sousa

Angola

Ilha de oiro e angustia

Feita de sol e de prata

Marfim talhado em reliquias

Cobre batido do vento

Num moinho de saudades.

Fortaleza escancarada

A memórias esquecidas...

Senhora do Baluarte velando

As brancas velas do Canal.

Sermões de S. Francisco Xavier

Guardados nas rochas de coral.

Riquexos vagueando ão sol

Brancas praias sonolentas

Enfeitadas de saris e cofios

Brancos, pretos, encarnados

E rostos cor da verdade

De viver num monumento

De prata, de oiro e de cobre

Cobre batido do vento...

Portico dos sonhos, momento

de indias descobertas e vencidas

Monumento, monumento,

De memórias esquecidas...

Alem-portas de marfim

Paredes meias com a História

Dentro da fama e memória

Para que nela sempre fique

A Ilha de Moçambique.

A Coruja

Autor: Malangatana Valente Ngwenya

in "Vinte e quatro poemas", Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lisboa, 1996

Malangatana Valente NGWENYA nasceu a 6 de Junho de 1936 em Matalana, Moçambique. Produziu uma vasta obra no campo da pintura e é hoje um dos mais notáveis artistas africanos.

Representado em inúmeros museus e colecções particulares em todo o mundo, Malangatana, artista multifacetado, que canta, dança, faz poemas, teatro, cerâmica e escultura, é grande animador sócio-cultural e vê erguer-se presentemente o sonho de construção do Centro Cultural na sua aldeia natal..

Página 35

A coruja agoira-me

e diz-me que nunca chegarei

além onde o desejo me leva

e assim evapora-se o sonho;

O tambor foi tocado

na noite densa do feitiço

enquanto Kokwana* Muhlonga

apitava o Kulungwana** mortal;

Na noite sem estrelas

dois gatos pretos iluminaram

a cabana da Kokwana Hehlise

que morreu depois dos gatos terem miado.

Eu lutando comigo só

é impossível vencer as ondas

que feiticeiramente me esboçam

as corujas, gatos e tambores."

* kokwana = avó **kulungwana = ulular

Amor Verde

Autor: Malangatana Valente Ngwenya

in "Malangatana - Vinte e quatro poemas", ISPA Instituto Superior de Psicologia Aplicada - CRL, Lisboa, 1996

Porque o amor não é sempre verde

que bom quando verde é

nem quero que mudes de cor

oh amor verde, verde, verde

ele é tão bom, bom, bom

Na cama quando passei a primeira noite

senti-me feliz quando corria dentro dela

a lágrima que nos fez amigos infinitos

porque dela veio quem nos chama: Papá e Mamã

o nosso primeiro filho, tão lindo, lindo."

Double Trouble

Autor: Mutxhini Ngwenya

Chimoio, 09.06.97

Quiz vestir esta lua,

Meu fato mais bonito,

Engomado e arejado,

Flor vermelha na lapela,

Guitarra acesa na mão,

Minha arma de trova.

Quiz brindar as estrelas,

Fazer oferendas á lua,

Dançar uma valsa,

Beber teus pomos,

Enxugar minha jornada,

Arrasar a praça,

Teu abraço me vestindo.

Quiz minha parra de barro,

Quebrá-la e branquear minha alma,

Lavá-la na enxurrada de beijos,

Saltar, e, atirar para ontem,

Rosas ressequidas de espera,

Lançar sementes estrelas.

Quiz tantas, tantas vezes

Fazer poema fresco,

Dizer ás gaivotas e ao vento

Que em suas asas levassem,

Notícias flores ao mundo,

Mas,

Minha alma parra,

Não sabe ainda

A cor de tua alegria..."

Mutxhini Ngwenya Chimoio, 09.06.97

A Mamã Preocupada

Autor: Malangatana Valente Ngwenya

in "Vinte e quatro poemas", edição do ISPA, Portugal, p. 24

Nos teus braços eu fiquei

quando me nasceste muito preocupada

quem estava aflita

naquela altura perigosa

com o receio de que Deus me vai levar?

Tudo em silêncio olhava

para ver se o parto corria bem

tudo lavava as mãos

para poder receber quem vinha dos Cés

e toda a mulher quieta e aflita

Mas quando afastei-me

do lugar em que me guardaste durante longo tempo

dei logo o primeiro respiro

tu gritaste logo de alegria

o primeiro beijo foi o da Avó

Que levou-me logo para o lugar

que me guardaram e é secreto

tudo foi proibido a entrar no meu quarto

porque tudo cheirava mal

e eu todo fresco, fresco

respirava finalmente dentro das minhas fraldas

Mas a Avó que se supunha doida

estava sempre ao meu lado

ver-me e rever-me sempre

porque as moscas vinham ter comigo

e os mosquitos inquietavam-me

Deus que revia-me também

era o amigo da minha Avó velhinha

Malangatana Valente NGWENYA nasceu a 6 de Junho de 1936 em Matalana, Moçambique. Produziu uma vasta obra no campo da pintura e é hoje um dos mais notáveis artistas africanos.

Representado em inúmeros museus e colecções particulares em todo o mundo, Malangatana, artista multifacetado, que canta, dança, faz poemas, teatro, cerâmica e escultura, é grande animador sócio-cultural e vê erguer-se presentemente o sonho de construção do Centro Cultural na sua aldeia natal.

Pensar-Alto

Autor: Malangatana Valente Ngwenya

in catálogo da exposição retrospectiva e antológica de Malangatana que teve lugar na Sociedade Nacional de Belas Artes, Portugal, em 1986

Sim

às marrabentas

às danças rituais

que nas madrugadas

criam o frenesi

quando os tambores e as flautas entram a fanfarrar

fanfarrando até o vermelho da madrugada fazer o solo sangrar

em contraste com o verdurar das canções dos pássaros

sobre o já verduzido manto das mangueiras

dos cajueiros prenhes

para em Dezembro seus rebentos

dançarem como mulheres sensualíssimas

em cada ramo do cajual da minha terra

mas, sim ao orgasmo

das mafurreiras

repletas de chiricos

das rolas ciosas pela simbiose que só a natureza sabe oferecer

mas sim

ao som estridente do kulunguana

das donzelas no zig-zague dos ritos

quando as gazelas tão belas

não suportam mais quarenta graus à sombra dos canhueiros em flor

enquanto as oleiras da aldeia, desta grande aldeia Moçambique

amassam o barro dos rios

para o pote feito ser o depositário

de todo o íntimo desse Povo que se não cala disputando

ecoosamente com os tambores do meu ontem antigo."

Nome de Pão

Autor: Oswaldo Osório

Cabo Verde

O Cântico do Habitante

ouso nosso pão e posso

ouso nosso pão e posso

ainda molecular a ideia

para dedos de haver esperança

ouso pensar

coragem e amar

e tanta coisa que é pão.

Cavalos de Silex

Autor: Oswaldo Osório

Cabo Verde

O Cântico do Habitante

1971

ainda estávamos em guerra quando fomos a lua

e tínhamos fome e feridas nos olhos de cegar

agarrávamos o futuro com a luz do laser

e as flores gelavam aqui donde partíamos com carbúnculos nos braços

pássaros de pio futuro por onde andávamos

deixámos a terra grávida de salamandras esventradas

ganhávamos o pão nosso cada dia com medidas de suor

e um inverno de vómito estarrecia sob as raizes

as galáxias mediam-se por braçadas de legumes ou milho ou arroz

que no-las distanciavam e as estrelas fugiam perseguidas

por cavalos de sílex

o sonho criava lodo cada manha

as palavras mal nasciam apodreciam em limo

nesta situação-limite os seios o sexo o sémen

convenceram os homens nas suas fábricas

de cavalos de sílex

tarde

peitos punhos pulsos resolvemos ousar nosso pão

Holanda

Autor: Oswaldo Osório

Cabo Verde

Holanda companheiros

chegámos

chegámos com barcos guildas nos olhos e desejo de vencer

chegámos intermináveis e actuais às docas

betão aço cargueiros e braços precisados

chegámos numa dimensão nova

(ah as roças de S.Tomé serviçal meu irmão)

e pusemos todo o nosso esforço

lubrificámos máquinas

alimentámos caldeiras

navegámos por oceanos de fogo e fiordes de gelo

mas foi nos mares da terra nova

no tempo em que de Boston a América mandava seus barcos baleeiros

para nos contratar

que ganhámos o bronze da nossa pele

The Best Sailors of the World

sob bandeiras estrangeiras brigámos guerras que não eram nossas

para agora amarmos ao ritmo de torno novo

e múltiplas bocas ao nos verem dizem

Let them get by

chegámos às docas companheiros

nas docas com barcos guildas nos olhos e nossa terra nos nossos sonhos

chegámos intermináveis para o match

e pusemos todo o nosso esforço na luta

pusemos esperança na nossa força de trabalho

e quando nos vêem chegar dizem

Let them get by

aqui ou ali passaremos sempre porque chegámos companheiros

a esperança transformada em actos nos nossos punhos

a seca o sol o sal o mar a morna a morte a luta o luto

ao nos verem passar dizem que ultrapassaremos os sonhos

e o match é em nossa terra que vai terminar

Manhã Inflor

Autor: Oswaldo Osório

S. Vicente, Cabo Verde, 1937

1971

as héveas murcharam

desertas de folhas

desertas de flores

propositadamente

nem só o sangue mas também a seiva

nem só a criança mas também a pétala

nem só o homem mas também a planta

nem só a carne mas também a lenha

propositadamente

tudo o hamadricida flagelou

a beleza da flor

a inocência da criança

a certeza dos campos

o aconchego duma sombra

mas nos covis a vida continuou

e o apelo a luta redobrou

as héveas murcharam

e com as héveas

a manhã inflor

a terra nua

mas ainda a vida

nos covis continua

A Lua e a Morte

Autor: Marcelo Panguana

in "As Vozes que Falam de Verdade", conto "A Lua e a Morte"

" - Não.

A mulher ficou espetada à sua frente ostentando aquela atitude exacta e decidida. Isto não pode continuar assim, acrescentou. O homem observou-a e rapidamente concluiu que aquelas palavras tinham amadurecido anteriormente, e ali, naquele confronto a dois, surgiam decididamente tempestuosas. Como a forca do vento na mudança das estações.

Um pouco depois estalaram-se os nervos. O corpo retesou-se e depois se fez o gesto. Não foi com pouca violência que a vassoura atirada deitou abaixo um bonito quadro que retratava um conhecido tema tradicional. Samo, assim se chamava o homem, estava atónito. Dobrado sobre si mesmo à entrada da porta que dava acesso a sala comum, percorria o olhar um pouco por toda a parte, ainda incapaz de adoptar uma atitude apaziguante. A meia distância do espaço que o separava da Lindiwe, a mulher, os fragmentos de duas chávenas de fabrico chinês e uma porcelana de barro.

O barulho provocado pela queda do quadro acentuara o choro da Isa, a filha mais nova, às voltas com umas dores de estômago que faziam questão de ser irremoviveis, apesar da propalada eficiência dos médicos e dos medicamentos ingeridos. O tempo passava e a criança ia minguando a olhos vistos. O Beto e a Flavia, filhos mais velhos, aproximaram-se e a expectativa infantil ficou depois a envolver a conversa cada vez mais acesa entre marido e mulher."

Milagre Obstrético

Autor: Antonio Pinto de Abreu

Moçambique

in "Antologia da nova poesia moçambicana"

As lampadas da cidade

fundiram-se todas

e numa das esquinas

da grande aldeia de cimento

um latão urbanizado

pariu um pirilampo...

Glória ao novo ser

que nasceu ao anoitecer.

O jornal não deu a grande noticia

- os fotografos tinham as maquinas

aguardando o plano superior.

Contudo

no velho latão urbanizado

o pirilampo brinca e chora

(como alguns meninos)

luzindo com o satírico brilho

da esvaziada lata de sardinhas

da "ração de combate".

Mané Fú

Autor: Virgilio Pires

Praia, Cabo Verde, 1935

Louco que povoou a minha infância

Que contava histórias maravilhosas

Histórias de Branca Flor

De bruxas e de princesas

Mané Fú Mané de Deus

Que tinha o corpo todo preto

Mas as palmas das mãos brancas

Porque as sextas-feiras subia aos céus

E ia banhar os anjos

Mané Fú Mané de Deus

Outras histórias me empolgam hoje

Histórias de crianças famintas

(Lembro-me do filho da Violante

Que comia a cal das paredes)

Histórias de velhos abandonados

(Como aquele que morreu a chorar

No Pavilhão de Alienados

E não era doido)

Histórias de prostitutas

(Ah! humilhadas amigas)

Histórias tristes nunca divulgadas

Reminiscência

Autor: Virgilio Pires

Praia, Cabo Verde, 1935

Quem não se lembra dos bailes da bola preta?

ritmos brasileiros fox mazurcas

E a morna a sublimar paixões

Ao longe na Achada o roncar cadenciado

Dos tambores da Tabanca

No campo de futebol ali pertinho

O Vitória sucumbia perante um Trovadores

Em que o Chabali era o rei

O mundo em guerra

E na terra amaldiçoada

Sem canhões sem Hitler

O povo morria de olhos voltados para o céu

Num gesto clamor secular

Que o hábito tornou ritual

Chuva! Fome! Chuva! Fome!

Quem não se lembra dos bailes da bola preta?

A sala decorada com bolas pretas

Os ritmos brasileiros a transportar os pares

Para o "Rio de Janeiro cidade maravilhosa"

Mazurcas com passos rigorosamente medidos

E a morna morna no violino crioulo do Djédji

Há muitos anos

Os nazis perderam a guerra

A Tabanca desapareceu

Anatematizada como vergonhosa reminescência africana

O Chabali morreu

Surgiram outras guerras

Outros tiranos outros ídolos outros ritmos

E na terra amaldiçoada

O ano passado hoje e sempre

O povo continua com os olhos voltados para o céu

Num gesto ritual

Clamor súplice para outros homens e para Deus

Chuva! Chuva! Chuva!

Paisagem do Nordeste

Autor: Jofre Rocha

Cachimane, Angola, 1941-

Tempo de cicio, 1973

rio estátua

braço sem carne

chuva no mar

em terra seca

sol na paisagem

terra em desgraça

fome nos lábios

fome nos olhos

ossadas brancas

urubus em volta

terra em brasa

ar calcinado

plantas com fome

homens com fome

fome nos olhos

no ar morte

Quando a Manhã Vier

Autor: Jofre Rocha

Cachimane, Angola, 1941-

Quando a manhã vier

com um sol maduro

ofertando beijos

aos órfãos da ternura

quando a manhã vier

em apoteose de luz

a semear no vento

risos de alegria

quando a manhã vier

definitivamente

em alvorecer roseo

de paz e tranquilidade

de mãos nas mãos

saberemos chegado o nosso dia.

Símbolo

Autor: Luis Romano

Ilha de Santo Antao, Cabo Verde, 1922

Clima, 1963

O formato daquele berço foi um símbolo

O menino em miragens impossíveis

dormia sonhando com navios de papel

enquanto eu contemplava

a cismar,

o conjunto daquela harmonia

sumindo-se na linha do mar.

Navio-berço de menino crioulo

navio-guia que ficou sem ir

"navio idêntico ao navio da nossa derrota parada".

Vida

Autor: Luis Romano

Ilha de Santo Antao, Cabo Verde, 1922

Clima, 1963

A crioula que meus olhos beijaram a medo

perdeu-se na confusão de um porto francês

Ela sorria continuamente, erguendo no seu riso uma canção extraordinária.

Não foi um romance de amor

nem mesmo um pequeno segredo entre ambos.

Somente, quando Ela falava ao pé de mim, eu sentia:

um aprazível devaneio

pela maravilha escultural duma Mulher Perfeita.

Depois,

a Vida separando Nós-Dois

a confusão, os ruidos, os braços agitando-se

e o vapor levando para outros mares,

outros portos,

a graça, o mistério, o perfume e os cantares

da crioula que meus olhos beijaram a medo

no tombadilho daquele vapor francês.

O Jogo

Autor: Manuel Rui

Nova Lisboa, Angola, 1941-

A Onda, 1973

Que jogo é este

o de saber nos pés

só a espuma

de imensas madrugadas.

Que jogo é este

o de chorar os destroços

de um navio/que chegou a navegar

ou as asas de uma gaivota

apodrecida/que voou

Sem me chorar

Que jogo é este

o de esperar

um rebentar da onda

sem me estender

sem me estender pelos teus túneis.

Museu

Autor: Manuel Rui

Nova Lisboa, Angola, 1941-

A Onda, 1973

De meus antepassados não recordo

mas invento em cada pedra colocada

em praças por seus braços noutros braços

onde pombas poisam e turistas fazem

souvenirs de sol e manuelinos

E pátrias não conheço

Assisto aos exercícios outonais

da morte sem idade do cremar

olhos na distância por noivas adiadas

e mãos correndo terços de velhas esperando

a morte simplesmente

E deuses não conheço

Não fui navegador

embora me quisessem em vários continentes

em que sempre estive e disse nunca

para que naufragasse minha história com o peso

das grilhetas amarrado aos oceanos

E epitáfios não conheço

O que ergueram meus braços

não está em Africa

a minha musica

não está em Africa

a minha estatuária

não está em Africa

idem para o meu marfim

as minhas lanças

os meus diamantes

o meu ouro

idem

idem

A Abóbora Menina

Autor: Ana de Santana

Angola

Benguela, 1983

Tão gentil de distante, tão macia aos olhos

vacuda gordinha,

de segredos bem escondidos

estende-se a distância

procurando ser terra

quem sabe possa

acontecer o milagre

folhinhas verdes

flor amarela

ventre redondo

depois é só esperar

nela desaguam todos os rapazes.

Núpcias

Autor: Ana de Santana

Angola

Penetro

esse colchão de cristal

e

um lençol de mar

me envolve

tecendo o meu vestido raro,

espuma e sal.

Interrompo estas núpcias com o coral,

vem-me o mavioso murmurar

das palmeiras pela brisa,

será que não aprovam?

Rapariga

Autor: Ana de Santana

Angola

Sabores, Odores & Sonho, 1985

Cresce comigo o boi com que me vão trocar

Amarraram-me já ás costas, a tábua Eylekessa

Filha de Tembo

organizo o milho

Trago nas pernas as pulseiras pesadas

Dos dias que passaram...

Sou do clã do boi -

Dos meus ancestrais ficou-me a paciência

O sono profundo do deserto

a falta de limite...

Da mistura do boi e da árvore

a efervescência

o desejo

a intranquilidade

a proximidade

do mar

Filha de Huco

Com a sua primeira esposa

Uma vaca sagrada

concedeu-me

o favor das suas tetas úberes.

A Mulemba Secou

Autor: Aires de Almeida Santos

Angola

A mulemba secou.

No barro da rua,

Pisadas, por toda a gente,

Ficaram as folhas

Secas, amareladas

A estalar sob os pes de quem passava.

Depois o vento as levou...

Como as folhas da mulemba

Foram-se os sonhos gaiatos

Dos miudos do meu bairro.

(De dia,

Espalhavam visgo nos ramos

E apanhavam catituis,

Viuvas, siripipis

Que o Chiquito da Mulemba

Ia vender no Palacio

Numa gaiola de bimba.

De noite,

Faziam roda, sentados,

A ouvir, de olhos esbugalhados

A velha Jaja a contar

Histórias de arrepiar

Do feiticeiro Catimba.)

Mas a mulemba secou

E com ela,

Secou tambem a alegria

Da miudagem do bairro;

O Macuto da Ximinha

Que cantava todo o dia

já não canta.

O Ze Camilo, coitado,

Passa o dia deitado

A pensar em muitas coisas.

E o velhote Camalundo,

Quando passa por ali,

já ninguem o arrelia,

já mais ninguem lhe assobia,

já faz a vida em sossego.

Como o meu bairro mudou,

Como o meu bairro esta triste

Porque a mulemba secou...

So o velho Camalundo

Sorri ao passar por la!...

Meu Amor da Rua Onze

Autor : Aires de Almeida Santos

Angola (Benguela)

Tantas juras nos trocamos,

Tantas promessas fizemos,

Tantos beijos roubamos,

Tantos abracos nos demos.

Meu amor da Rua Onze,

Meu amor da Rua Onze,

já não quero

Mais mentir.

Meu amor da Rua Onze,

Meu amor da Rua Onze,

já não quero

Mais fingir.

Era tao grande e tao belo

Nosso romance de amor

Que ainda sinto o calor

Das juras que nos trocamos.

Era tao bela, tao doce

Nossa maneira de amar

Que ainda pairam no ar

As promessas que fizemos.

Nossa maneira de amar

era tao doida, tao louca

Qúinda me queimam a boca

Os beijos que nos roubamos.

Tanta loucura e doidice

Tinha o nosso amor desfeito

Que ainda sinto no peito

Os abracos que nos demos.

E agora

Tudo acabo.

Terminou

Nosso romance.

Quando te vejo passar

Com o teu andar

Senhoril,

Sinto nascer

E crescer

Uma saudade infinita

Do teu corpo gentil

De escultura

Cor de bronze,

Meu amor da Rua Onze.

A Vigília do Pescador

Autor: Arnaldo Santos

Angola

Na praia o vulto do pescador

é mais denso que a noite...

E enquanto espera

A sua ansia solidifica em concha

E sonoriza os ventos livres do mar.

E enquanto espera

A sua ansia descobre

os passos da mare na praia

e o sono do borco das canoas.

é manha

e o pescador

ainda espera

e enquanto o mar

não lhe devolve o seu corpo de sonhos

Num lencol branco de escamas

Um torpor de baixa-mar

Denumcia algas nos seus ombros.

Ódio

Autor: Marcelino dos Santos

Marcelino dos Santos, com apelido de Lilinho Micaia Kalungano, nasceu a 20.5.1929 no Lumbo - Nampula.

Membro fundador da Frelimo, é um dos seus mais populares dirigentes. Os seus trabalhos literários foram traduzidos em russo, checo, holandês e italiano.

O texto reproduzido foi publicado na Gazeta de Artes e Letras, revista Tempo No 915.

" Foi assim

que tudo aconteceu

senti uma dor aguda

e o cão não ladrou

o xirico não cantou

a lua não estava

a lua não estava

Foi ali

na estrada Ilha-Monapo

era 14 de Marco

Uma enorme gargalhada

e tudo foi silêncio

sem cor

Cerrei os dentes

O peito inchou

duro

Uma lágrima desce

lenta

pesada

Uma só

Anita caiu

morreu

Mamã onde está a minha arma"

16.3.1988 - xirico = pássaro

Sonho de Mãe Negra

Autor: Kalungano (Pseudonimo de Marcelino dos Santos)

Moçambique

Mãe negra

Embala o seu filho

E na sua cabeça negra

Coberta de cabelos negros

Ela guarda sonhos maravilhosos

Mãe negra

Embala o seu filho

E esquece

Que o milho já a terra secou

Que o amendoim ontem acabou

Ela sonha mundos maravilhosos

Onde o seu filho iria à escola

À escola onde estudam os homens

Mãe negra

Embala o seu filho

E esquece

Os seus irmãos construindo vilas e cidades

Cimentando-as com o seu sangue

Ela sonha mundos maravilhosos

Onde o seu filho correria na estrada

Na estrada onde passam os homens

Mãe negra

Embala o seu filho

E escutando

A voz que vem de longe

Trazida pelos ventos

Ela sonha mundos maravilhosos

Mundos maravilhosos

Onde o seu filho poderá viver.

Tudo Treme

Autor: Monteiro dos Santos

Cutato, Angola, 1947

Mar ie mil, 1974

tudo treme

neste poiso de espanto breve.

apresso a palavra e digo país:

e o teu corpo se despenha vertical

aqui entre as cordas desta febre.

digo espaço e as águas demoram.

de que me servem dedos

no contorno estéril da mão?

A Pátria Dividida

Autor: Nelson Saúte

in "A pátria Dividida", VEGA,Portugal, Colecção A Palavra Africana, 1993

ao Rui Knopfli e ao Eugénio Lisboa

Os mortos tombam no poema.

Nada os ampara. Nem a luz

acanhada do candeeiro

quando escrevo na obscuridade

ao pulsar da mão emboscada

na metáfora que me conduz.

Na incerta madrugada

diviso os rostos mutilados

que vigiam os meus gestos

e narram sonhos degolados.

O algoz estilhaçou o coração

frágil da criança aos gritos

nas imagens do apocalipse na televisão.

Na ignomínia noticiada pelos jornais

esta consentida memória dos mortos

para sempre insepultos

porque não existe vala comum

para os gritos da mulher

rasgada à baioneta

numa manhã inocente.

Não se enterram os sonhos

dos mutilados em perfil

no chão ultrajado

desta pátria dividida."

A Ignorância do Poeta

Autor:Nelson Saute

in "A Pátria Dividida", Vega, Lisboa, 1993

Pagina 17:

O poeta contempla o mar

no agoniado tédio da tarde.

Caminha ao som de seus passos

ombros recurvos mãos nos bolsos

perseguindo a sua sombra.

O cão que lhe roça a solidão

não tolhe o verso escrito da memória.

Os namorados não o fitam.

De esguelha admira a inocência

dos gestos amorosos.

À sombra de jacarandás

percorre o trajecto

sobre as folhas silenciadas.

O poeta ignora mas a direcção

leva-o ao coração dos homens."

Canção do Silêncio

Autor: M. Correia da Silva

in " Cantares de Angola "

Ouvindo o silêncio das coisas remotas,

Distingo legendas que os outros não

lêem...

Vislumbro paisagens confusas, remotas,

- Silhuetas de imagens que muitos não

vêem!...

Desvendo os mistérios da selva distante,

Aonde costuma rugir o leão...

- Arroios cantando, num som murmurante,

Anharas perdidas p'ra além do sertão...

Capim verdejante nas húmidas chanas,

Lençol de esmeralda que o sol vai

corando...

Matizes da selva, luar das savanas,

Mabecos fugindo, pacacas pastando...

silêncio das noites sombrias, caladas,

Segredos da selva, murmúrios da aragem...

-Holongos ligeiros, fugindo, em manadas,

Regatos correndo por entre a folhagem...

Latidos de hienas em torno dos quimbos,

já dentro da noite, se a fome as aperta;

Quimbundas alegres, sachando os arimbos

Depois que o som cavo do goma as desperta

Chingufos ao longe - rufar permanente -

Chamando ao batuque de intensa folgança...

E os pretos, gingando pra trás e pra

frente,

Agitam as ancas na febre da dança!...

E a lua, do alto - qual "hóstia boiante" -

Envolve o cenário num manto sidério...

- Canção do silêncio da selva distante,

Bem poucos entendem teu som de mistério!

As Águas

Autor: Onesimo Silveira

Mindelo, São Vicente, Cabo Verde, 1935

in Hora Grande, 1962

A chuva regressou pela boca da noite

Da sua grande caminhada

Qual virgem prostituída

Lançou-se desesperada

Nos braços famintos

Das árvores ressequidas!

(Nos braços famintos das árvores

Que eram os braços famintos dos homens...)

Derramou-se sobre as chagas da terra

E pingou das frestas

Do chapéu roto dos desalmados casebres das ilhas

E escorreu do dorso descarnado dos montes!

Desceu pela noite a serenar

A louca, a vagabunda, a pérfida estrela do céu

Ate que ao olhar brando e calmo da manha

Num aceno farto de promessas

Ressurgiu a terra sarada

Ressumando a fartura e a vida!

Nos braços das árvores...

Nos braços dos homens...

Quadro

Autor: Onesimo Silveira

Mindelo, Ilha de S. Vicente, Cabo Verde, 10/2/1935

in Hora Grande, 1962

Lá vem nho Cacai da ourela do mar

Acenando a sua desilusão

De todos os continentes!

Ele traz o peito afogado em maresias

E os olhos cansados da distância das horas...

Lá vem nho Cacai

Com a boca amarga de sal

A boiar o seu corpo morto

Na calmaria da tarde!

Nho Cacai vem alimentar os seus filhos

Com histórias de sereias...

Com histórias das farturas das Américas...

Os seus filhos acreditam nas Américas

E sabem dormir com fome...

Cantos de Meu País

Autor: Julião Soares Sousa

Guiné-Bissau

in Um Novo Amanhecer, 1996

Canto as mãos que foram escravas

nas galés

corpos acorrentados a chicote

nas américas

Canto cantos tristes

do meu País

cansado de esperar

a chuva que tarde a chegar

Canto a Pátria moribunda

que abandonou a luta

calou seus gritos

mas não domou suas esperanças

Canto as horas amargas

de silêncio profundo

cantos que vêm da raiz

de outro mundo

estes grilhões que ainda detêm

a marcha do meu País

Magaíça

Autor: Noémia de Sousa

Moçambique

in M. de Andrade e Francisco J. Tenreiro: Poesia negra de expressão portuguesa, Lisboa, 1953, Ed. dos Autores

A manhã azul e ouro dos folhetos de propaganda

engoliu o mamparra,

entontecido todo pela algazarra

incompreensível dos brancos da estação

e pelo resfolegar trepidante dos comboios

Tragou seus olhos redondos de pasmo,

seu coração apertado na angústia do desconhecido,

sua trouxa de farrapos

carregando a ânsia enorme, tecida

de sonhos insatisfeitos do mamparra.

E um dia,

o comboio voltou, arfando, arfando...

oh nhanisse, voltou.

e com ele, magaíça,

de sobretudo, cachecol e meia listrada

e um ser deslocado

embrulhado em ridículo.

Ás costas - ah onde te ficou a trouxa de sonhos, magaíça?

trazes as malas cheias do falso brilho

do resto da falsa civilização do compound do Rand.

E na mão,

magaíça atordoado acendeu o candeeiro,

à cata das ilusões perdidas,

da mocidade e da saúde que ficaram soterradas

lá nas minas do Jone...

A mocidade e a saúde,

as ilusões perdidas

que brilharão como astros no decote de qualquer lady

nas noites deslumbrantes de qualquer City.

Não Me Lavem o Rosto

Autor: Sukrato

Boavista, Cabo Verde, 1951

Não me lavem os olhos!

Não; já disse não!

Deixai-me ver,

sentir, viver tudo em mim

mas não me lavem os olhos!

Deixai-me crer por mim

aceitar a realidade

mas não me barrem a caminhada

não me lavem os olhos!

Deixai-me sofrer realidade

ao sonhar fraternidade

mas... por favor...

não me lavem os olhos!

Curvo-me ao Obstinado Peso das Raízes

Autor: José Luís Tavares

Cabo Verde

Curvo-me ao obstinado peso das raízes.

Mais alto se erguem os morosos frutos

da inquietude. Por todo o meu corpo

animais em deserção, bélicos murmúrios,

impendentes murmúrios, desdenhada fortuna.

Não sei de barcos, não sei de pontes,

para outro tão melodioso território.

Afeiçoados ficaram os olhos ao sonhado

verde dos campos. Derrotados sob o

adivinhado zelo do sol por quantos dias

a ilha estremece ao temor da sede

e da ruína.

Deram-lhe navegadores nome de santo,

quando à vista das angras lágrimas

e gritos se confundiram. E na hora terreal,

feito o sinal da cruz, divisa de quem

por tão longes terras os mandara navegar,

um destino de penumbra ali se traçou.

E ficámos náufragos, irmãos dos chibos,

pela ocidental terra que o dia já desnuda.

Pelos sinos da matriz avisando da inexorável

aproximação dos corsários (um tempo

de rapina subjaz ainda na memória desses

anos) eu vos saúdo, velho cadamosto,

diogo gomes, antónio da noli; eu vos saúdo

desde esses picos de sede de onde a noite

mais veloz se confunde com os desfraldados

estandartes da alegria.

Cerimónia de Passagem

Autor: Paula Tavares

Angola

Luanda, 1985

           "a zebra feriu-se na pedra

           a pedra produziu lume"

a rapariga provou o sangue

o sangue deu fruto

a mulher semeou o campo

o campo amadureceu o vinho

o homem bebeu o vinho

o vinho cresceu o canto

o velho começou o círculo

o círculo fechou o princípio

           "a zebra feriu-se na pedra

           a pedra produziu lume"

Coração em África

Autor: Francisco José Tenreiro

São Tomé

1967

Caminhos trilhados na Europa

de coração em África

Saudades longas de palmeiras vermelhas verdes amarelas

tons fortes da paleta cubista

que o sol sensual pintou na paisagem;

saudade sentida de coração em África

ao atravessar estes campos de trigo sem bocas

das ruas sem alegrias com casas cariadas

pela metralha míope da Europa e da América

da Europa trilhada por mim Negro de coração em África.

De coração em África na simples leitura dominical

dos periódicos cantando na voz ainda escaldante da tinta

e com as dedadas de miséria dos ardinas das cities boulevards e baixas da Europa

trilhada por mim Negro e por ti ardina

cantando dizia eu em sua voz de letras as melancolias do orçamento que não equilibra

do Benfica venceu o Sporting ou não.

Ou antes ou talvez seja que desta vez vai haver guerra

para que nasçam flores roxas de paz

com fitas de veludo e caixões de pinho:

Oh as longas páginas do jornal do mundo

são folhas enegrecidas de macabro blue

com mourarias de facas e guernicas de toureiros.

Em três linhas (sentidas saudades de África) -

Mac Gee cidadão da América e da democracia

Mac Gee cidadão negro e da negritude

Mac Gee cidadão Negro da América e do Mundo Negro

Mac Gee fulminado pelo coração endurecido feito cadeira eléctrica

(do cadáver queimado de Mac Gee do seu coração em África e sempre vivo

floriram flores vermelhas flores vermelhas flores vermelhas

e também azuis e também verdes e também amarelas

na gama policroma da verdade do Negro

da inocência de Mac Gee) - três

linhas no jornal como um falso cartão de pêsames.

Caminhos trilhados na Europa

de coração em África.

De coração em África com o grito seiva bruta dos poemas de Guillen

de coração em África com a impetuosidade viril de I too am America

de coração em África com as árvores renascidas em todas estações nos belos

poemas de Diop

de coração em África nos rios antigos que o Negro conheceu e no mistério do

Chaka-Senghor

de coração em África contigo amigo Joaquim quando em versos incendiários

cantaste a África distante do Congo da minha saudade do Congo de coração em

África,

de coração em África ao meio dia do dia de coração em África

com o Sol sentado nas delícias do zénite

reduzindo a pontos as sombras dos Negros

amodorrando no próprio calor da reverberação os mosquitos da nocturna

picadela.

De coração em África em noites de vigília escutando o olho mágico do rádio

e a rouquidão sentimento das inarmonias de Armstrong.

De coração em África em todas as poesias gregárias ou escolares que zombam

e zumbem sob as folhas de couve da indiferença

mas que tem a beleza das rodas de crianças com papagaios garridos

e jogos de galinha branca vai até Franca

que cantam as volutas dos seios e das coxas das negras e mulatas

       de olhos rubros como carvões verdes acesos.

De coração em África trilho estas ruas nevoentas da cidade

de África no coração e um ritmo de be bop be nos lábios

enquanto que à minha volta se sussurra olha o preto (que bom) olha

       um negro (óptimo), olha um mulato (tanto faz)

       olha um moreno (ridículo)

e procuro no horizonte cerrado da beira-mar

cheiro de maresias distantes e areias distantes

com silhuetas de coqueiros conversando baixinho a brisa da tarde.

De coração em África na mão deste Negro enrodilhado e sujo de beira-cais

vendendo cautelas com a incisão do caminho da cubata perdida na carapinha

alvinitente;

de coração em África com as mãos e os pés trambolhos disformes

e deformados como os quadros de Portinari dos estivadores do mar

e dos meninos ranhosos viciados pelas olheiras fundas das fomes de Pomar

vou cogitando na pretidão do mundo que ultrapassa a própria cor da pele

dos homens brancos amarelos negros ou as riscas

e o coração entristece à beira-mar da Europa

da Europa por mim trilhada de coração em África;

e chora fino na arritmia de um relojo cuja corda vai estalar

soluça a indignação que fez os homens escravos dos homens

mulheres escravas de homens crianças escravas de homens negros escravos dos homens

e também aqueles de que ninguém fala e eu Negro não esqueço

como os pueblos e os xavantes os esquimós os ainos eu sei lá

que são tantos e todos escravos entre si.

Chora coração meu estala coração meu enternece-te meu coração

de uma só vez (oh orgão feminino do homem)

de uma só vez para que possa pensar contigo em Africa

na esperança de que para o ano vem a monção torrencial

que alagará os campos ressequidos pela amargura da metralha

       e adubados pela cal dos ossos de Taszlitzki

na esperança de que o Sol há-de prenhar as espigas de trigo para os meninos viciados

e levará milho as cabanas destelhadas do último rincão da Terra

distribuirá o pão o vinho e o azeite pelos alíseos;

na esperança de que as entranhas hiantes de um menino antípoda

haja sempre uma túlipa de leite ou uma vaca de queijo que lhe mitigue a sede da existência.

Deixa-me coração louco

deixa-me acreditar no grito de esperança lançado pela paleta viva de Rivera

e pelos oceanos de ciclones frescos das odes de Neruda;

deixa-me acreditar que do desespero másculo de Picasso sairão pombas

que como nuvens voarão os céus do mundo de coração em Africa.

Romance de Sam Marinha

Autor: Francisco José Tenreiro

São Tomé

Ilha de nome santo, 1942

Sam Marinha

a que menina foi no norte

chegou naquele navio à ilha.

Risadas brancas

e goles de champagne!

A hora do espalmadoiro

os moços do comércio

passaram de gravatas garridas.

O monhé chegou na porta

e limpou o suor

ao lenço de seda que importou do Japão!

Ai!

       Aquela que chegou na ilha

como uma risada branca

está fechando a carinha à terra.

Braços pendentemente tristes

só os olhinhos

estão pulando para lá da fortaleza

querendo ver a Europa!...

À hora do espalmadoiro

os moços do comércio

passaram de gravatas garridas.

O monhé chegou na porta

e limpou o suor

ao lenço de seda que importou do Japão!

Ai!

       Aquela que chegou na ilha

como uma risada branca

está fechando a carinha à terra.

Braços pendentemente tristes

só os olhinhos

estão pulando para lá da fortaleza

querendo ver a Europa!...

Coleccionador de Quimeras

Autor: António Tomé

Quando as minhas angústias

       começam a morder-me

       ponho-lhes a trela

       saio a rua a passeá-las

       e deixo-as ladrar

       ao tédio transeunte.

       Depois ponho-lhes asas

       e deixo-as voar

       como pássaros

       em busca de primaveras

       imprevisíveis.

Nunca é Tarde

Quando no cais só fica ancorada

A indiferença e já não resta nada

Senão as ilusões a que te agarras.

Ouve a voz inefável das guitarras

Tingindo de paixão a madrugada

No fim duma viagem povoada

Do canto indecifrável das cigarras.

Saberás então que há sempre um começo

No profano rio em que a vida arde,

E é nessa maré viva que estremeço.

Mas, ainda que saibas que nunca é tarde,

não tardes, que sem ti eu anoiteço,

E não peças jamais ao rio que aguarde."

Exemplo Geral

Autor:João Vario (conhecido também como T.T.Tiofe)

S. Vicente, Cabo Verde 1937

Exemplo Geral, 1966

(Fragmento)

Há muito passado no estar aqui com o tempo,

Fim e reconhecimento, e não sofrendo nada mais do que o tempo concede,

Fim de novo e reconhecimento de novo

E tudo é crime, ou crime sempre, crime ou crime,

Criminosissimamente crime,

Quando arriscamos a intensidade, comemorando.

Aumento e festa, ou cilício, e tempo de cair e tempo de seguir,

Tempo de mal cair e tempo de mal seguir,

Oh amamos tanto, amamos tanto estar aqui com o tempo

E sabendo que há nisso pouco passado.

Porque maiores que os desígnios da vida

São os desígnios da medida e, divididos

Em dois por eles, com eles indo, se por eles

Ganhamos o tempo, pedimos a forma mais fácil

De indagar que vamos morrer e, um dia, se

O tempo for deles e, a memória, de outros,

Havemos de ser úteis como mortos há muito,

Sem que a causa, o delírio, a designação,

O julgamento nossa medida abandonem,

Dividida em duas por elas, e ganhando constância.

Depois, depois faremos ou fará o tempo, por sua vez,

Aquele blasfemissimo comentário,

E então consta que amámos.

Fragmento

Autor: João Vario

S. Vicente, Cabo Verde, 1937

Exemplo Relativo, 1968

E então subimos aquele grande rio

e as portas do Rodão, chamadas. Era em abril

dois dias depois da neve

e da cidade dos nevões, na serra.

E olhamos para os penhascos da beira-rio,

as oliveiras, o chisto, a cevada

as ervas de termo, e as colinas.

E, junto da via férrea, os homens do país

miravam-nos como se fôssemos nós

e não eles os mortos desta terra,

homens do medo e do tempo da discórdia

que trazem para o cimo das estradas

a malícia que vai apodrecendo

seus pés neste mundo e em terras de outrem.

Que fazeis do mundo e da sua chama imponderável, o homens,

perdidos que estais, hoje como ontem,

entre a casa e o limiar?

E evocamos, mais uma vez, esse provérbio sessouto.

E, na verdade, porque regressaremos,

após tantos anos, a este tema?

Será que a morte nos ensinou

a olhar para o homem com pavoroso êxtase?

Canto do Verbo em Busca da Forma

Autor: Teodomiro Alberto Azevedo Leite de Vasconcelos

Moçambique

Teodomiro Alberto Azevedo LEITE DE VASCONCELOS nasceu a 4 de Agosto de 1944. Faleceu no dia 29 de Janeiro de 1997, vítima de prolongada doença. Alguns dias antes de falecer disse: "gostaria de ter publicado o meu livro". Com o título "Resumos, Insumos e dores emergentes", o mesmo foi lançado pela AEMO (colecção Timbila No 16) em agosto de 1997, numa cerimónia que juntou muitos amigos.

Eu presido a todos os enganos

os do céu os da terra há tantos anos

que nem o tempo os lembra Antes do mar

fui voo Antes do sal fui mar

e sede antes da água fresca Antes do verso

eu fui a poesia Eu sou antes de Deus e do universo

Estando antes eu nunca fui ontem

e sendo a tudo preso nunca fui refém

nem de mim mesmo porque a minha fome

não tem distância horizonte não tem nome

Sempre que me contam sou inumerável

sempre que me caçam sou invulnerável

Eu nunca estou no pé e nunca estou no passo

a minha dimensão é outra sou o compasso

cósmico a que palpitam todas as galáxias

e a que se geram flores nos ramos das acácias

Não fui planeado nem projecto Não sou vontade

Nas letras de prisão lêem-me liberdade

não a minha a tua a deles ou a de todos

Eu sou a liberdade do desejo Do desejo dos lodos

e das aves dos rios dos homens e mulheres

de todo o espaço de todas as coisas de todos os seres

Por isso eu presido a todos os enganos

os do céu os da terra há tantos anos

que nem o tempo os lembra Sou a razão

de todas as derrotas o coração

da mágoa as mãos do desespero

Eu sempre estou e permaneço e espero

desde o cáos e canto o refazer do desejo

na sua liberdade como lábios no beijo

Em mim tudo recomeça

grão a grão ponto a ponto peça a peça

mão a mão sol a sol segundo a segundo

porque comigo recomeça o mundo

até que tudo seja o que não vejo

até que o mundo seja o do desejo"

Declaração

Autor: Leite de Vasconcelos

Moçambique

in "Irmão do Universo, AEMO/93, p. 101

Eu, abaixo assinado, embalsamador de profissão,

declaro por minha honra

que deste corpo extraí o que pulsava

e fazia cumprir suas funções

quando funcionava.

Mais declaro que nele não encontrei

outro elemento além dos ditos e descritos

nos comuns manuais de anatomia.

Ausentes dele qualquer abstracção,

sintomas de tristeza, desagrado,

sinais de medo ou discordância

em relação à hora da paragem.

Por minha fé ainda certifico

a apropriada condição estéril

do que remanesceu e expeço via aérea

com garantia firme

de ser reconhecido por quem o conheceu

quando o corpo era inteiro e se reconhecia."

Ladaínha

Autor: Leite de Vasconcelos

in "Irmão do Universo", colecção Timbila no 12 da AEMO, 1993

Leite de Vasconcelos nasceu em 1944 e é predominantemente jornalista. Tem trabalhos dispersos em jornais, revistas e antologias. "Irmão do Universo" foi o seu primeiro livro.

extraído d' O Ciclo da cidade, p. 36

XXV

Pela noite pela rua

passamos gatos e cães

somos as lendas raivosas

do sangue das nossas mães

Pela noite pela rua

somos cavernas e vento

temos a boca cansada

do asfalto e do cimento

Pela noite pela rua

somos navalhas abertas

já fomos estátuas mas

tivemos canções e festas

Pela noite pela rua

vendemos a mocidade

somos canções esquecidas

parasitas da saudade

Pela noite pela rua

de braço em braço tocado

tecemos o nosso tempo

levamos a morte ao lado

Pela noite pela rua

já nem somos o pecado

perdoou-nos o silêncio

deste seio amarrotado."

Baião de Luanda

Autor: Reis Ventura

Angola

Tão velhinha e tao linda, e tão presa

nos mistérios das ondas do mar,

é Luanda uma flor, uma beleza

com perfume e encantos sem par.

De S. Paulo à Marginal

- Vem ver , meu amor! -

Luanda ao sol-por,

Como é sem favor, divinal!

Raparigas do Bungo e da Samba,

do Cruzeiro e da Se, do Balão,

na Paris, Polo Norte ou Mutamba,

são a nossa maior tentação.

Nesta terra onde eu nasci

eu quero casar

e ter o meu lar

e rir e chorar

só por ti.

Pelos bailes selectos da Alta,

nos batuques tão ricos de cor,

é Luanda que dança e que salta,

numa festa de vida e amor.

Bungo, Samba e Sambizanga

ou Portas do Mar

- Tudo isto é Luanda,

cidade e quitanda

ao luar...

Tão velhinha e tão bela e fagueira,

debruçada nas ondas do mar,

É Luanda sagaz, feiticeira.

Quem cá chega, cá quer ficar!

As Idades da Pedra - I

Autor: Cândido da Velha

Angola

in As Idades de Pedra, 1969

É do mar que vêm estas vozes

silabando a linguagem das marés,

gravando na areia estranhas grafias

onde, quem sabe ver, desvenda o rumo

no sobressalto das ondas.

Este permanente arfar marinho

desperta a ressonância de oculto escuro

de obscuros templos submersos onde o coração,

descompassadamente, se perturba

na iminência do segredo revelado.

Cheiros de primeira pâtria,

nesta urgência de sal em nossos membros,

atrai as pegadas para a líquida planura

pela saudade de verde glauco

que estira o corpo na fronteira do mar.

Reminiscência da primeira voz,

neste marulhar à concha dos ouvidos,

desperta nossa cólera e angústia

de malograda fuga e de nos vermos,

na babugem das águas, de olhos vítreos,

adormecidos peixes sobre a areia.

Idades da Pedra - II

Autor: Cândido da Velha

Angola

in As Idades de Pedra, 1969

As pálidas luas das tuas mãos negras,

os olhos da paisagem insular,

teu corpo conspirando com a noite,

(beijo africano de húmidas pressões),

toda a claridade da hora aprofundada

no ventre generoso e farto.

A viagem regressiva aos ancestrais:

O reencontro para lá da linha quebrada,

oculta no tempo; justificação

de sermos outra vez humanos, simples,

tudo nas pálidas palmas das mãos

quando, materna, apresentaste o peito

à concha do ouvido para que ouvisse

o rumor da noite longinqua

e permitiste ao sono que viesse, amável,

na grande verdade a nosso respeito.

e em toda aquela aurora sem mentira

arborizando o corpo quebrantado

ansiávamos o dia para celebrarmos

o cacimbo matinal em nosso olhar

no fresco odor da casa de madeira.

Dia de Chuva no Mato

Autor: Geraldo Bessa Vitor

Angola

"Chove,

E a trovoada

é um batuque incessante,

uma estranha batucada.

Os raios sao setas de fogo

que mesteriosamente, em tom de guerra,

espiritos do mal lancam da Altura

para incendiar a Terra.

O vento

Ora violento, ora brando,

o vento é o cazumbi dos cazumbis

-o deus do mar, do ria e da floresta-

que vai cantando e dancando,

em tragicómica festa,

o seu coro de mil vozes,

os seus bailados febris.

As nuvens negras sao virgens tontas,

quais almas do outro mundo,

errando como sonambulas

pelo ceu negro e profundo...

E a chuva, constante e forte,

é o pranto (parece eterno)

dos deuses negros que a Morte

sacrificou no Inferno.

Não Venhas Mais ao Cais

Autor: Geraldo Bessa Victor

Angola

não venhas mais ao cais, menina negra.

Que esperas tu ainda?

já sabes a tua sina:

o branco que partiu não volta mais!

E tu, olhando o cais,

menina negra linda,

ves o teu lindo sonho que já finda...

Cantaram o feitiço do teu corpo,

nessa noite sensual em que tiveste

por lencol nupcial uma folha de palma;

cantaram o feitiço do teu corpo,

mas não sabias nem soubeste

que o branco tem feitiço na alma.

Habituada ao balouco da canoa

nas margens do rio Dande,

e depois embalada pelo amor,

sonhaste viajar num enorme vapor

que navega no mar grande

e vai para Lisboa!

Ouve, menina negra: mato não é cidade,

oceano não é rio, dongo não é navio

e o sonho que sonhaste não é sonho, é saudade...

não venhas mais ao cais,

que o branco não volta mais!

O Menino Negro Não Entrou na Roda

Autor : Geraldo Bessa Victor

Angola

O menino negro não entrou na roda

das crianças brancas - as crianças brancas

que brincavam todas numa roda viva

de canções festivas , gargalhadas francas...

menino negro não entrou na roda.

E chegou o vento junto das crianças

- e bailou com elas e cantou com elas

as canções e danças das suaves brisas,

as canções e danças das brutais procelas.

O menino negro não entrou na roda.

Pássaros, em bando, voaram chilreando

sobre as cabecinhas lindas dos meninos

e pousaram todos em redor. Por fim,

bailaram seus vôos, cantando seus hinos...

O menino negro não entrou na roda.

"Venha cá, pretinho, venha cá brincar"

- disse um dos meninos com seu ar feliz.

A mamã, zelosa, logo fez reparo;

o menino branco já não quiz, não quiz...

o menino negro não entrou na roda.

O menino negro não entrou na roda

das crianças brancas. Desolado, absorto,

ficou só, parado com olhar cego,

ficou só, calado com voz de morto.

O Feitiço do Batuque

Autor : Geraldo Bessa Victor

Angola

Sinto o som do batuque nos meus ossos,

o ritmo do batuque no meu sangue.

é a voz da marimba e do quissange,

que vibra e plange dentro de minhàlma,

- e meus sonhos, já mortos, já destrocos,

ressuscitam, povoando a noite calma.

Tenho na minha voz ardente o grito

desses gritos febris das batucadas,

nas noites em que o fogo das queimadas

parece caminhar para o infinito...

E meus versos sao feitos desse canto,

que o vento vai cantando, em riso e pranto,

quanto o batuque avanca desflorando

o silêncio de virgens madrugadas.

Músicos negros, colossos,

e negras bailarinas, sensuais,

tocam e dancam, cantando,

agitando meus impetos carnais.

O batuque ressoa-se nos ossos,

seu ritmo louco no meu sangue vibra,

vibra-me nas entranhas, fibra a fibra,

sinto em mim o batuque penetrando

- e já sou possuido de magia!

A batucada tem feitiço eterno.

O batuque de dor e de alegria,

que sinto no meu ser, dentro de mim,

nunca mais tera fim,

nem mesmo alem do Ceu e alem do Inferno!

Capítulo 15. O Camaleão

Autor: Alberto Viegas

Angola

in " O que nos dizem certos animais" (contos e fábulas)

Alberto Viegas nasceu em Kharau, distrito de Cuamba, província do Niassa, a 10 de Junho de 1927. É professor sendo este o seu primeiro livro publicado. Edição da Associação Moçambicana de Escritores, colecção " a palavra ao lado", n. 2

" O desgraçado tinha-se enganado de todo. Afinal, as cinzas não estavam frias como ele pensava e escondiam perigosa e traiçoeiramente um fogo vivo...

Ficou com as mãos, os pés e todo o corpo gravemente queimados. A sua sorte foi passarem por ali, naquele mesmo instante, uns viandantes que, acorrendo em seu socorro, o tiraram do fogo e o levaram a um , onde ficou internado durante muito tempo, recebendo tratamento que o salvou da morte, ficando apenas com dois dedos em cada mão e em cada pé.

Uma vez curado, o camaleão decidiu firmemente nunca dar um único passo sem se ter certificado da ausência de fogo e doutros perigos. E... vai cumprindo até hoje:- Uma vez, queimei-me!... Uma vez, queimei-me!- diz o camaleão de cada vez que levanta e poisa a mão ou pé nalgum sítio, no seu passo vacilante."

Nirvana

Autor: Jorge Viegas

Moçambique

in "Vozes Poéticas da Lusofonia", Sintra 1999

Ser como uma arvore na paisagem,

Existir, existir sem sofrimento.

Buscar na placidez o alimento,

Tornar menos pesada a minha imagem.

Estar, mas num estar que é viagem.

Iluminar o sol, esporear o vento,

deixar adormecer o pensamento,

Não haver marcas da minha passagem.

Esboroar-me na terra humilde e fria

Sem o suor negro da melancolia

A orlar-me a testa, a inundar-me os nervos.

Poeta que não sou, vida que não tive

Permiti que o sono que em mim vive

Se torne o mais humilde dos meus servos.

Isto é Que Fazem de Nós

Autor: Armenio Vieira

Ilha de Santiago, Cabo Verde, 29/1/1941

             Isto!

E perguntam-nos:

             - sois homens?

Respondemos:

             - animais de capoeira.

Dizem-nos:

             - bom dia.

Pensamos:

             lá fora...

Isto é que fazem de nós

quando nos inquirem:

             - estais vivos?

E em nós

as galinhas respondem:

             - dormimos.

Poema

Autor: Arménio Vieira

Praia, Santiago, Cabo Verde 1941-

1962

Mar! Mar!

Mar! Mar!

Quem sentiu mar?

Não o mar azul

de caravelas ao largo

e marinheiros valentes

Não o mar de todos os ruídos

de ondas

que estalam na praia

Não o mar salgado

dos pássaros marinhos

de conchas

areias

e algas do mar

Mar!

Raiva-angústia

de revolta contida

Mar!

Siléncio-espuma

de lábios sangrados

e dentes partidos

Mar!

do não-repartido

e do sonho afrontado

Mar!

Quem sentiu mar?

Sofrimentos

Autor> Carlos-Edmilson M. Vieira

Guinéu-Bissau

in "Um Cabaz de Amores", Éd. Nouvelles du Sud, Ivry-sur-Seine, 1998

A dor que em mim mora

não é o mal no meu corpo

carne destinada à terra húmida

última guardiã do sofrimento

pois esse já fiz oferenda

ao mais Homem de todos os Homens

mumificado pela injustiça humana

que estrangula o nosso ser

a dor que em mim mora

é a que vi em Bissau

é a que viveram na travessia para Dakar

é a que viveram na travessia para Cabo Verde

é a que vejo no corpo dos outros

MESMO

Coqueiro

Autor: Tomaz Vieira da Cruz

Angola

Ali, na rua do Carmo

um coqueiro ficou abandonado

quando destruiram a casa velha

a que deu sombra.

E onde um par enamorado

teve sonhos de Amor,

nesse pedaco de Luanda antiga

agora modernizada.

E o coqueiro ligado ah terra,

tombado na direcção

da Rua da Pedreira,

como filho nos maternos bracos

ali ficou.

Talvez para saudar alguem

que muito sofreu e amou...

Mas tudo acaba e o tempo

tudo anda a destruir,

- porque tudo é passageiro,

quando se vive a mentir.

Oh pincelada verde na cidade,

ruina e gotica coluna

de marmore verde...

Morre, coqueiro morre,

Antes que os homens, tao maus,

cometam a crueldade

de te expulsar e matar.

Morre de pura saudade...

E perdoa, mas sofre como um homem,

coqueiro das verdes palmas,

porque tudo, afinal, na vida, é triste

quando se matam almas...

Fruta

Autor: Tomaz Vieira da Cruz

Angol

Quitanda de fruta verde,

da-me um gomo de laranja

para matar a sede.

Ou, então, será melhor

dar-me um veneno qualquer

porque eu ando perturbado

e o meu sonho anda queimado

por uns olhos de mulher!

- Minha senhora, laranja,

limao, fresquinho, caju,

ananas ou abacate!...

E a quintandeira passou,

saudavel, viva, graciosa,

com uma flor desfolhada

no seu sorriso escarlate.

E no ar um som de musica ficou

e um perfume de fruta

que não matou minha sede

Oh agri-doce quitanda

da fruta verde!...

N'gola - Flor de Bronze

Autor : Tomaz Vieira da Cruz

Angola

Filha de branco que morreu na guerra

e de uma preta linda do Libolo,

o teu olhar ate de noite encerra

todo o luar das lendas do Catolo!

Oh flor estranha! já não tem consolo

a tua magoa, a tua dor na terra!

Oh flor estranha do febril Capolo

neta dum soba que perdeu a guerra!

Estatua ardente em bronzeadas chamas

que tentação e perdição derramas

por sobre a história negra, quase finda!

Neta dum soba que acabou chorando,

filha de branco que morreu lutando

e duma preta tristemente linda!

Quissange - Saudade Negra

Autor: Tomaz Vieira da Cruz

Angola

não sei, por estas noites tropicais,

o que me encanta...

Se é o luar que canta

ou a floresta aos ais.

não sei, não sei, aqui neste sertão

de música dolorosa

qual é a voz que chora

e chega ao coração...

Qual o som que aflora

dos lábios da noite misteriosa!

Sei apenas, e isso é que importa,

que a tua voz, dolente e quase morta,

já mal a escuto, por andar ausente,

já mal escuto a tua voz dolente...

Dolente, a tua voz "luena",

lá do distante Moxico,

que disponho e crucifico

nesta amargura morena...

Que é o destino selvagem

duma canção em que tange,

por entre a floresta virgem

o meu saudoso "Quissange".

Quissange, fatalidade

deste meu triste destino...

Quissange, negra saudade

do teu olhar diamantino.

Quissange, lira gentia,

cantando o sol e o luar,

e chorando a nostalgia

do sertão, por sobre o mar.

Indo mares fora, mares bravos,

em noite primaveril

acompanhando os escravos

que morreram no Brasil.

não sei, não sei,

neste verão infinito,

a razão de tanto grito...

-Se és tu, oh morte, morrei!

Mas deixa a vida que tange,

exaltando as amarguras,

e as mais tristes desventuras

do meu amado Quissange!

Rebita

Autor: Tomaz Vieira da Cruz

Angola

Mulata da minha alma

batuque dos meus sentidos,

meus nervos encandecidos

vibram por ti, sem ter calma.

Por isso vou ah rebita,

quase triste e indeciso,

a queimar minha desdita

nas chamas do teu sorriso.

E, triste, assim, vou dancar,

vou dancar e vou beber

o vinho do teu olhar,

que me faz entontecer.

Ouvindo, longe, tocar

o quissange do gentio,

que vive, alem no palmar,

onde corre o verde rio!

E depois adormecer

na tua esteira de prata,

onde quero, enfim, morrer,

oh minha linda mulata.

..........................................

Mulata da minha alma,

batuque dos meus sentidos...

Por isso vou ah rebita,

quase triste e indeciso,

a queimar minha desdita

nas chamas do teu sorriso.

Romance de Luanda

Autor: Tomas Vieira da Cruz (1900/1960)

radicado em Angola desde 1924

in Tatuagem - Poesia d'Africa, 1942

Coqueiros esguios - leques ao vento

abanando a Ilha.

Um dongo flutua

na baia.

E ela, a negra maravilha

condecorada com reflexos de prata

com que o céu a está beijando,

com que o céu a está vestindo,

- adormeceu sonhando

placidamente sorrindo.

Nas águas verdes da baia calma,

caem pétalas vermelhas

de uma linda flor de ónix!

E o timoneiro, um preto atleta,

jovem pescador

e um brutal Cupido,

- é o Deus do Amor

em bronze reproduzido!

Nas águas verdes da baia calma,

caem pétalas de sangue,

duma flor já desfolhada...

Um dongo flutua

na baia.

Vai rompendo a madrugada!

Canção Para Luanda

Autor: Luandino Vieira

Angola

A pergunta no ar

no mar

na boca de todos nos:

- Luanda onde esta?

silêncio nas ruas

silêncio nas bocas

silêncio nos olhos

- Xé

mana Rosa peixeira

responde?

-Mano

não pode responder

tem de vender

correr a cidade

se quer comer!

"Ola almoco, ola almocoeee

matona calapau

ji ferrera ji ferrereee"

- E voce

mana Maria quintandeira

vendendo maboques

os seios-maboque

gritando, saltando

os pes percorrendo

caminhos vermelhos

de todos os dias?

"maboque, m'boquinha boa

doce docinha"

- Mano

não pode responder

o tempo é pequeno

para vender!

Zefa mulata

o corpo vendido

baton nos labios

os brincos de lata

sorri

abrindo o seu corpo

- seu corpo cubata!

Seu corpo vendido

viajado

de noite e de dia.

- Luanda onde esta?

Mana Zefa mulata

o corpo cubata

os brincos de lata

vai-se deitar

com quem lhe pagar

- precisa comer!

- Mano dos jornais

Luanda onde esta?

As casa antigas

o barro vermelho

as nossas cantigas

tractor derrubou?

Meninos das ruas

cacambulas

quigosas

brincadeiras minhas e tuas

asfalto matou?

- Manos

Rosa peixeira

quitandeira Maria

voce tambem

Zefa mulata

dos brincos de lata

- Luanda onde esta?

Sorrindo

as quindas no chão

laranjas e peixe

maboque docinho

a esperanca nos olhos

a certeza nas mãos

mana Rosa peixeira

quitandeira Maria

Zefa mulata

- os panos pintados

garridos, caidos

mostraram o coração:

- Luanda esta aqui!

Sons

Autor: Luandino Vieira

Angola

1963

A guitarra

é som antepassado.

Partiram-se as cordas

esticadas pela vida.

Chorei fado.

Que importa hoje

se o recuso:

o ngoma é o som adivinhado!

Cançao para Joana Maluca

Autor: Joao Maria Vilanova

Angola

Para eles

eras unicamente a suja

a piolhosa

colhendo beatas

á porta do Nacional

E lestos

enquanto o sol brincava

no ombro alcantilado

das encostas

seus rafeiros te lancavam

de dentro dos quintais.

Joana

eles sabiam tua mao

e a temiam

(tua mao espinho-de-piteira

tua mao ngana-acusadora-mesmo

ah! kikata kikata muene)

ate quando

estendida tua mao

pedia.

Na escudela da noite entre cassuneiras e muxixis uma pobre escura flor adormecia...

Canção na morte de nga-Caxombo

Autor: Joao Maria Vilanova

Angola

Olho nga-Caxombo ali

na esteira

deitado morto

a todo comprimento

Vejo-o caminhar sem descanso

do Amboim ao Seles

do Seles ao quipeio

outra vez ao Seles

rotas sem rota mato longe

quem que sabia?

Tipoia o ombro pesava que pesava

duramente Zua

e voz de Kalandu

voz serena do sertao

ele a escutava

atraves do fogo

atraves da agua

o geito sem raizes

de amar o coração das coisas.

Olho-o pela vez ultima

na luz rasante desse dez de Julho

a barba ah monangamba

cavada sua negra face

morto

deitado morto

a todo o comprimento.

15 - Lei do Passe

Autor: Tomas Vimaro

Moçambique

in "Terra do Alambique", V Capítulo

Tomas Vieira Mario, de seu verdadeiro nome, nasceu em Inhambane a 6/5/1959. É jornalista e tem publicações dispersas por jornais moçambicanos e portugueses. Fez parte do movimento CHARRUA e "Terra no Alambique" é o seu primeiro livro, o qual foi escrito entre 1979 e 1984.

"...

- Ai tem pequeno problema - atrapalhou-se a outra. - É que não tem mesmo tampa... Mas minha senhora deve ter em sua casa panelas do mesmo tamanho, para a questão da tampa - apressou-se a considerar, a Ancia outra vez de mãos nas ancas, no seu espanto.

- Mas... como não tem tampa?!

- Minha senhora... é que não deu tempo... para apanhar as tampas, na fabrica. São coisas que a gente tira lá mesmo na hora do despego, naquela pressa toda, por causa dos vigilâncias populares, está a ver, não? Então acontece que no mesmo dia que apanhei estas panelas, o chefe da secção, na atrapalhice das pressas, tinha chegado primeiro e ficado com as tampas, para mais tarde lá voltar buscar então as panelas. A sorte, minha senhora, é que eu cheguei lá a tempo e então carreguei logo as panelas... - divertida com a história, ela mesmo dizia isto rindo as gargalhadas, e a Ancia aproveitou para rir também, admirada. - Minha senhora, o que é que pensa?! Se os chefes até são os primeiros no roubo! - E, gelatinosa, o corpo lhe dançava, na gargalhada. - Então, dessa maneira, as tampas quem roubou o chefe!..."

Rota Longa

Autor: Teobaldo Virgínio

Cabo Verde

in "Viagem Para Lá da Fronteira", 1973, Lisboa, Publicações da Casa de Cabo Verde

Irei na rota branca

da rosa de espuma

na hora madrugada

promissora da brisa.

Rota longa rota longa

Irei com a pétala ressequida

da tórrida paisagem

para além das distâncias secas.

Rota longa rota longa

Rota longa de espuma

vou irei espalhar minhas pétalas ressequidas

na hora madrugada

das correntes desatadas.

Rota longa rota longa

Vou irei sem detença

para além das distâncias secas

em busca do abraço ancorado

na outra margem da curva líquida.

Rota longa rota longa

Vou irei na hora alta desta vigília

e a manhã clara acontecerá.

Rota longa rota longa

Vou irei contra todas as cadeias protestantes do meu rumo

em cada protesto que embarco

na ondulação que se desatraca.

O País em Mim

Autor: Eduardo White

Moçambique

Do livro "O País de Mim", Eduardo White colecção Timbila no 10, edição AEMO 1989

O peso da vida!

Gostava de senti-lo à tua maneira

e ouvi-la crescer dentro de mim,

em carne viva,

não queria somente

rasgar-te a ferida,

não queria apenas esta vocação paciente

do lavrador,

mas, também, a da terra

e que é a tua

2.

Assume o amor como um oficio

onde tens que te esmerar,

repete-o até a perfeição,

repete-o quantas vezes for preciso

até dentro dele tudo durar

e ter sentido

Deixa nele crescer o sol

até tarde,

deixa-o ser a asa da imaginação,

a casa da concórdia,

só nunca deixes que sobre

para não ser memória.

Poemas da Ciência de Voar

Autor: Eduardo White

Moçambique

do livro: "Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave", Caminho, Lisboa, 1992

Página 17

"Uma mão relampeja na casa da escrita.

Faísca

Troveja.

Procura um claro instante para a aparição.

Pode-se ve-la correr pelo dorso do papel,

deitada do seu lado ou do seu modo rastejante,

pode-se ve-la provando o ruminante delírio das palavras,

a sua rasante arrumação,

e leva vozes aquela mão em cada delicada passagem,

rítmica, latejante

ou um nervo animal que faz lembrar

a textura pedestre do papel.

Mas a mão voa, explosiva,

e não cai nem agoniza no espaço vibrante onde se comunica.

Voar é um fervoroso recolhimento.

E no que é quase a medida elementar do esquecimento

a escrita navega

num estuário de silêncio.

Escrever é uma droga antiga,

uma bebedeira que queima com lentidão

a cabeça,

traz as luzes desde as vísceras,

o sangue a ferver nas vias tubulantes,

traz a natureza estimulante das paisagens

que temos dentro."

Página 28

"Ocorre-me agora

a pupila minúscula de uma criança.

A sua engenharia

desde o corpo na guerreira pequenez

ao dedo provador da boca.

Ocorre-me esta criança

este monge da franqueza em seu templo de inocência.

Amo-a. Vivo-a.

Voar é poder amar uma criança.

Sonhar-lhe o peso no colo, as mãos acariciantes

sobre a palma da alma.

Voar é tardar a boca

na rosa do rosto de uma criança.

Pronunciar-lhe a ternura,

a seda fresca e pura

da sua infância.

Voar é adormecer o homem

na mão sonhadora

de uma criança."

Sorrisos Mutilados

Autor: Carlos Zimba

Moçambique

na revista "XIPHEFO", Dezembro 1994

"No meu país

a (in)competência doentia

mutila-nos o sorriso

e nós teimosamente

arranjamos muletas e sorrimos

deitados à sombra da esperancà

esculpida pela nossa paciência

Coragem, gente

pois galopa celere o instante

em que sorriremos sem muletas!"

Os Molwenes

Autor: Isaac Zita

Moçambique

no livro "Os Molwenes"

Com a mão estendida e bem aberta, a cega está sentada no chão de cimento e move sem descanso as pálpebras desprovidas de pestanas, pondo a descoberto, deliberadamente, as cicatrizes vermelhas que figuram no lugar dos olhos.

Um homem idoso pára à frente dela, olha para as horríveis orbitas e mete uma mão no bolso de onde extrai uma moeda de prata.

A seguir, fica alguns instantes a contemplá-la, indeciso, talvez pensando na alegria que com os seis bolos comprados com aquela moeda, poderia proporcionar aos netos quando chegasse a casa.

Uma voz interior segreda-lhe que deve dar a moeda de prata porque é uma boa acção e lá no Céu, Deus-Todo-Poderoso, além de aumentar os seus dias de vida, irá perdoar todos os pecados que cometeu, até mesmo aqueles que já tinha esquecido; outra voz, entretanto, diz-lhe que o melhor será comprar os bolos e fazer essa surpresa aos netos, que por essas e por outras, cada vez o adorarão mais.

Por fim, evitando olhar para os olhos da cega, estende a mão e entrega-lhe uma moeda que ela, sofregamente, se apressa a guardar na capulana rota e suja, com uma rapidez inesperada numa invisual.

Fascinado, o homem de idade permanece de mão estendida e agora vazia, comovendo-se quando a ouve balbuciar um doce "Obrigado", ecoando como o som cristalino da água a deslizar num regato celestial.

Quando o homem se refaz do encantamento, já a cega estende de novo a mão e diz um novo - "Bom dia", continuando sempre a bater com as pálpebras sem pestanejar.

O homem idoso recomeça a caminhar, pressentindo uma lágrima de emoção a querer soltar-se dos olhos e a voz de Deus-Todo-Poderoso a confirmar que os seus pecados já tinham sido absolvidos e prometendo, se ele continuasse a ser assim bonzinho, enviar mais cedo ou mais tarde, uma pomba direita ao seu coração.

...

...

...

- Avô - consegui interromper eu, finalmente - Porque é que Deus é sempre branco e Satanás, sempre negro? É assim que o padreca ensina...

O avô mostrou-se pela primeira vez perturbado e limitou-se talvez por isso, a olhar alternadamente para a pele negra que cobria os nossos rostos e mãos. Depois, levantando-se ruidosamente, apenas disse:

Já vai alta a noite. Vamos dormir, meu filho...

Morte em Dois Actos

Autor: Mauro Pindula

in Jornal Savana, 6/06/1997, Página Juvenil

"Estacionou o carro junto à calçada. Saltou e com dois passos ágeis entrou no edifício do jornal "NOTÍCIAS". Dirigiu-se ao sector de publicidade e preencheu o formulário que encontrou no balcão. Era um texto necrológico. Humedeceu os lábios e disse:

- É para dois dias.

- Traz a foto? - perguntou o balconista. Era grisalho e baixinho. O homem que queria anunciar mexeu na sacola preta de couro e tirou de lá uma foto nítida. Arrastou a foto pelo balcão e o grisalho recebeu-a. Não pôde deixar de abrir os olhos: era a foto do próprio homem.

Entrou silenciosamente e inspirou o cheiro a sândalo. Era reconfortante. Atirou a sacola preta de couro para o chão da sala. Foi buscar café à máquina, sentou-se no sofá e ligou a televisão. Deixou o café a meio e trocou-o por um uísque.

Entretanto soou o telefone. Levantou o auscultador e ouviu uma voz rouca e feminina. Já sabia que não precisaria de cerimónias:

- Jantas comigo?

- Não sei...

A voz do outro lado calou-se.

- Sinto-me algo desestruturado, sabes..."

Stress

Autor: Lilia Momplé

in "Lua Nova", nº 3, abril/junho 1997, órgão da AEMO, p. 7

A amante do major-general crava os olhos no homem que está sentado na varanda do 2o andar mesmo em frente e sibila, indignada: "bêbado".

Consegue vê-lo perfeitamente, recostado na cadeira de napa meio encardida, Xirico na mesinha ao lado, copo de cerveja na mão. "Bêbado", repete ela, sem desviar os olhos do homem "toda a tarde vai beber". E, com estas palavras, procura escamotear de si própria o motivo real da sua indignação.

O homem vai beberricando a cerveja com uma sofreguidão mal contida, a atenção centrada no copo e no Xirico. Por um instante, a amante do major-general supõe que ele dá pela sua presença mas logo se apercebe que, como sempre, aquele olhar resvalante a exclui do seu campo de visão, inteiramente preenchido pelo Xirico e pelo copo de cerveja.

É domingo, e como acontece todos os domingos a esta hora, a amante do major-general vem até à varanda que dá para a rua. Almoçou sózinha, na enorme sala comum que poderia ser alegre e arejada, dadas as suas dimensões, a cor branca das paredes e a ampla porta envidraçada que comunica com a varanda. É, pórem, um local sombrio, tal a profusão de mobiliário de precioso e escuríssimo jambire, alcatifas, bibelots de metal, maples de veludo e pesados cortinados. Até mesmo a poeira parece circular na sala agitadamente, ansiosa por se libertar de tamanha ostentação.

Autor: Simeão Mazuze

in "Calças Molhadas", p. 30

Uma voz rouca e baixa convidou-o a entrar. Empurrando a porta assomou para o interior da cela e abarcou a imagem de um homem deitado sobre um catre de ferro sem colchão coberto com retalhos de cartão, restos duma embalagem de acondicionamento de chá, "Five Roses Tea", lia-se num dos cantos a mercadoria que transportara.

Surpreso por não ver o amigo apesar de ainda em paralelo se encontrar outra cama nas mesmas condições, timidamente balbuciou.

- Boas tardes, senhor... Não é aqui a cela do senhor Mussava?

- Você bateu para perguntar isso? Donde vem você? Não é deste pavilhão concerteza, senão saberia que o Mussava se não está na cela dele o No. 0990, está na cela 0303 a conversar com os amigos dele.

- Obrigado senhor, só queria saber onde encontrá-lo. Não queria incomodar.

- Já disse... desapareça. - redarguiu.

- Já viram isto! Um gajo está a descansar nesta merda fedorenta, a curtir uma de "jell" e aparece um estupor de preso para incomodar e ainda diz que não queria incomodar!

O Tomás boquiaberto retirou a cabeça e respirando fundo fechou a porta. Relanceando o olhar em volta, notou por cima daquela porta estava pintado o No. 090 a vermelho. Tinha-se enganado.

Picasso

Autor: Simeão Mazuze (Salimo Mahomed)

in "Calças molhadas", 1996, edição do autor, o qual é mais conhecido como cantor

Página 8

"- Picasso fez o teu retrato, tal como estás agora no camião, meu amigo!

- O meu retrato? Perguntou Roberto.

- O quê? Não oiço nada. Tenho os ouvidos tapados.

- O teu retrato - repetiu. - Parecidíssimo,... exacto como uma foto. É o retrato do nosso camião.

Três homens que ocupam o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo. Um tem cinco pernas, o outro três cabeças. Tu,... tu tens a voz, mas não tens a boca, e eu não tenho senão a cabeça falta-me o corpo. Uma cabeça que avança no espaço e de cima de um camião.

Quando vi pela primeira vez este quadro, a coisa passava-se em Portugal, gostei muito, mas não compreendi o que ele queria representar. E só agora começo a perceber.

Era o quadro do nosso camião... fielmente pintado. Não lhe escapou um único pormenor. Pinta como se fotografasse. Só coisas reais. É um génio."

O Macaco e o Cágado

Do livro "Contos Macuas", 1992, Associação dos Amigos da Ilha de Moçambique - coordenação de Elisa Fuchs -ilustrações de Malangatana

"O macaco e o cágado fizeram-se amigos. Certo dia, o macaco disse:

- Amigo, vem a minha casa.

O cágado respondeu:

- Está bem.

O cágado saiu e foi a casa do seu amigo. Quando lá chegou, o macaco matou um galo, fez echima, pô-la na mesa e disse:

- Amigo, vamos lá comer a echima.

- Ah, o meu amigo pôs a echima na mesa sabendo que eu não consigo subir? - pensou o cágado. Tentou subir, tentou, mas não conseguiu comer a echima! Por fim resolveu ir para casa, mas antes pediu ao macaco:

- Amigo, dá-me as minhas ferramentas para me ir embora. Quando estava para sair, perguntou ao macaco:

- Quando é que vais a minha casa?

- Hei-de ir na próxima semana - disse o macaco.

- Está bem - respondeu o cágado.

Na semana seguinte, o macaco foi a casa do amigo. Quando lá chegou, mataram um galo, fizeram echima. O cágado deitou fora a água das panelas e disse para o amigo:

- Não há água, mas podes lavar as mãos no poço. Tem cuidado para não as pores no chão quando voltares.

O macaco foi ao poço com a sua mulher. Lavou as mãos e começou a andar só com duas patas. O cágado tinha queimado todo o capim à volta da casa e havia muita cinza. Quase ao chegar, o macaco não aguentou mais e pôs as mãos no chão ficando com elas todas sujas.

Teve que voltar ao poço para as lavar de novo. Fez isto tantas vezes que acabou por desistir. Foi com a sua mulher despedir-se e pedir as suas ferramentas. A partir daí o macaco e o cágado nunca mais voltaram a ser amigos."

echima - farinha de milho cozida

A Guerra dos Cem Anos

Autor: Carneiro Gonçalves, in "Contos Moçambicanos", 1990, Global,Brasil/Livraria Universal, Maputo

"- Ouve - disse a criança.

O adulto soergueu-se, apoiado no mesmo braço.

- Ser mulher e ter um amante é mau?

Para ganhar tempo o homem sentou-se, remexeu na areia.

- Depende.

- Mas pode não ser mau?

- Pode não ser mau.

- Bem - disse a criança - refiro-me ao caso de a mulher não ter marido

Olharam-se bem nos olhos.

- Depende - repetiu o adulto.

- Depende de que??

- De muitas coisas.

- Assim como - insistiu a criança.

- Talvez não entendas.

- Vai à merda.

E logo a seguir: - Desculpa. Pergunto para saber, percebes? Isto não tem nada a ver com a minha mãe. Eu é que quero saber.

...

- Sim, gosta muito dos dois - disse o homem.

- Mas de qual gosta mais?

- Gosta-se sempre mais dos filhos.

- De certeza?

- Não tenho duvidas.

- Bem, - voltou a criança, e foi então que rompeu a chorar. - Parece- me que tens razão. És um tipo simpático, vamos ficar amigos. Tenho dez escudos, vais beber uma laranjada comigo.

- Calha bem - disse o adulto - Estou cheio de sede."

António CARNEIRO GONCALVES apresentava-se assim: "Tenho trinta e um anos, vi a luz do dia em Braga, mas nasci em Tête. Faço questão de conhecer o Zambeze. Com os contos que tenho poderia pelo menos publicar 2 livros. Lá virá o dia. Ensaiei 1 romance que reescrevi várias vezes. Ontem ia mesmo na primeira pagina..."

Não alcançaria o Zambeze, não voltaria ao romance nem assistiu ao lançamento do seu livro "Contos e Lendas", publicado a seguir à sua morte em 1974, com 33 anos. Morreu num acidente de viação, quando viajava para o Zambeze.

A Lua do Advogado

Autor: António Carneiro Gonçalves

in "Contos e Lendas",p. 29-30, Instituto Nacional do Livro e do Disco, 1980

Eu conhecia Noémia há muito tempo. Vi-a pela primeira vez à saída da igreja e comecei logo a gostar dela, assim a modos de paixão, com força, como costumam os homens gostar das mulheres. Mais uma saída, encontrei-a depois no futebol de quinta-feira, outro domingo, engasguei-me ao princípio, ela disse que sim, que eu devia ser franco como um rochedo. Depois comparou-me ainda a um rio (isto mais tarde), que eu tinha a impetuosidade dos rios. Só costumávamos dar beijos à noitinha. No quintal havia uma árvore e uma gazela. A gazela olhava os nossos abraços, roçava-se nas nossas pernas. Uma vez ela até confundiu o roçar da gazela com uma caricia minha e disse "isso não... isso não". Ri como um perdido. Depois veio aquela coisa difícil, aquele momento chato de que nenhum homem gosta. Lá falei aos pais dela, que sim senhor, que eu era honesto e bom rapaz, ela esperava-me cá fora, no quintal. Abraçamo-nos. O resto, os senhores sabem como é, horas a fio, seguidinhas, ela "tenho mais uma renda, a nossa mesinha de cabeceira, a festa, a boda", eu ouvia- a alegre, respondia, disse-lhe muitas vezes que a felicidade de um homem está no verdadeiro amor. Faltava um mes para o casamento. Ah! carago, posso dizer sem mentir que me comoviam os trapos que ela comprava todos os dias e me mostrava sempre. Uma vez, à tardinha, àquela hora em que nos costumávamos dar beijos, eu fui franco como o rochedo e impetuoso como o rio. A lua já tinha nascido, a tal talhada de que falava o advogado. Eu disse-lhe não sei quantas coisas, mordi-lhe os ouvidos (devagarinho, já se vê...), fiz-lhe aquela festa que costumava fazer a gazela. Recordo, lembro-me bem, que ela não disse "isso não... isso não" como tinha acontecido da outra vez. Ela disse apenas "aqui não".

Eu estava aturdido, eu gostava dela a valer. Era sábado. Nos sábados, quando calhava, Noemia ia jantar a casa duma amiga, a Luisa, rapariga que eu conheço bem. Merda para as amigas. Ela disse "aqui não".

Autor: Hilário Manuel Eugénio Matusse

jornalista e escritor nascido a 22 de Junho de 1956 em Maputo

in "Ecos da RDA", Organização Nacional de Jornalistas, capítulo "Candongas e Açambarcamentos na RDA", p. 44

"Estes foram no momento imediatamente anterior às eleições, protagonistas de um fenómeno de açambarcamento nunca visto por ali, segundo se comenta. Formando enormes bichas nos maiores estabelecimentos comerciais, eles adquiriam tudo o que é caro e raro, produtos que habitualmente ninguém olhava para eles. São os casos de televisores a cores e vídeos, electrodomésticos dos mais variados tipos e até de carácter supérfluo, alcatifas, mobílias e também produtos alimentares. E tudo isso era comprado em grandes quantidades.

Pelo que se pode depreender das informações que então correram, há duas razões para este fenómeno: para os géneros alimentícios o problema está ligado a rumores de que o Governo vai retirar proximamente, após as eleições, os subsídios aos preços desses produtos. No que se refere aos móveis e a outros artigos valiosos, trata-se de se precaver da união monetária e suas consequências, pois adquirindo esses artigos todos guarda-se o dinheiro, de forma a reinvesti-lo em momentos mais adequados e quando as coisas já estiverem claras..."

A Viagem de Adalfredo

Autor: Mapfuxa-tô-tala

in "Oásis" - Jovens pela literatura - nº 1, p. 9 - publicação regional propriedade da AEMO e financiada pela Cooperação Francesa

Toda a vez que chega o Verão, como desta vez, o quarto do madala Adalfredo costuma não aguentar muito calor.

O sol do meio-dia, além de se derreter no zinco que protege a mesinha de cabeceira, penetra também por um enorme vazio, deixado por um zinco que sempre faltou. Adalfredo Faz de Tudo, de seu nome completo, chegara a ter o dinheiro para comprar aquele zinco, mas porque quisera apressar a inauguração da casa, optara em comprar bebidas no candongueiro.

Agora a casa sofre de dores de coluna, e parece-se com ele quando encurvado com a bengala.

É por causa desse sol do meio-dia, que Adalfredo estende-se horas e horas na sombra da bananeira. O calor aperta o passo, a sombra abandona-lhe, mas Adalfredo não sente a careca a transpirar. Como que há-de sentir? Os olhos roubaram a mente e foram ficar lá, no infinito.

Cansado de ficar distante, a sua vista mergulhou-o na escuridão. E a mente começou a levá-lo para viajar na boleia dos tempos em que a sua careca ainda curtia na juventude. Lembra da Maria Das Dores, a única mulher que já adorou de verdade, aqueles rapoios de fazer inveja, aquelas tetas ainda verdes que saltavam a corda, bastava Das Dores andar depressa. Lembra do dia do lobolo que ficou com dívida de duas capulanas de chita. Lembra de tudo, desde o dia que viu Das Dores passar pela esquina do Muchina, onde ele vendia dobrada. Mas, Maria Das Dores perdeu-se no tempo. Perdeu-se na noite em que Macuácua, aquele stapor, com braçadeira castanha-amarela e nariz impinado, arrombou a sua porta e indicou-o aos milícias:

- Ele é desempregado!

Viagem em Bicicleta em Moçambique

Autor: Emídio Mabunda

Moçambique

in "Viagem em Bicicleta em Moçambique", p. 9

Do local onde estava, a localidade mais próxima era Inchope e situava-se a cerca de 180 km, mais adiante, havia duas grandes elevações (subidas), nas quais tive dúvidas em as ultrapassar. Para tal tive que pedir uma ajuda divina fazendo uma oração, retomei a caminhada.

Quase a atingir a metade da primeira subida senti nas costelas algo de estranho, soprava um vento quente que me empurrava deixando assim de pedalar, a bicicleta ia sempre subindo. Galgados estes dois monstros o vento que fazia sentir sobre mim parou, assim continuei pedalando todo espantado pelo milagre feito por Deus, cheguei a Inchope onde hospedei na Administração.

Vozes do Sangue

"Eu sou José Zefanias Machava. Tenho 14 anos e sou natural de Massinga, província de Inhambane. O meu pai era um miliciano que os bandidos mataram quando chegaram a minha casa. Depois de matarem o meu pai me exigiram para mostrar os amigos dele. Eu disse que não sabia quem eram nem onde estavam. Então eles cortaram-me um dedo para eu falar. Tornaram-me a perguntar dos amigos do meu pai e eu repeti a dizer que não sabia. Acabaram-me quatro dedos e eu a dizer que não sabia. Ai zangaram mesmo e cortaram-me uma orelha.

Deixaram-me assim mesmo a sangrar e foram embora. Consegui curar com remédios tradicionais, mas esperei um ano até ficar bom. Depois de acabar esse ano, no ano a seguir fui raptado pelos bandidos. Treinei lá na base, aprendi a desmontar arma e a montar. Agora a minha missão era andar a procura de água e de lenha. Um dia desses mandaram- me procurar a agura. Eu aproveitei, abandonei a lata e fugi. Não sabia onde ia, só andava de qualquer maneira. Assim mesmo cheguei num quartel e apresentei aos soldados. Era em Sinhavuro. Quando me pegaram começaram a perguntar de onde eu vinha. Eu disse que estava a fugir dos bandidos. Logo aqueles soldados disseram para eu ir mostrar onde era. Fui lá com a tropa. Encontramos só uma pessoa, que mataram. Então os soldados levaram aquelas coisas da base e eu fui levado para Inhambane. Investigaram-me, investigaram-me até enviarem- me aqui para o Centro de Lhanguene. Vivo bem aqui. Já estou a estudar na 2ª classe."

O livro "Vozes do Sangue" reúne depoimentos de crianças que foram vitimas de atrocidades da guerra em Moçambique. Recolha e tratamento de texto de Eduardo White e Helder Muteia. Edição Tempografica, financiamento da ASDI, Autoridade Sueca para o Desenvolvimento Internacional, e UNICEF, Fundo das Nações Unidas para a Infância.

Vamos Cantar, Crianças

in "Vamos Cantar, Crianças" - Cancioneiro - Vol.1, Edição do Inst. Nacional do Livro e do Disco, Maputo, 1981

1. A dança do jacaré, Ilha de Moçambique

"Eu, Maria, fui lavar os pés

lá no rio onde mora o jacaré

Paro e vejo: quem vem dançar?

É mamã que traz o Tomé p'ra tocar

Toca, toca bem, primo Tomé

Quero ver como dança o jacaré

Ah! o bicho a água engoliu

deu a volta, saltou e logo tossiu

Ei! Já chega meu primo Tomé

Acabei de lavar agora o meu pé"

2. A árvore que eu vi chorar, Ilha de Moçambique

"Queres mesmo saber quem eu vi chorar?

Foi ali, ao pé do jardim

Eu vi uma árvore tão triste

Porque chorava tanto

       chorava assim,

       sem mais fim

Só não sei quem a fez chorar

Como a vi posso recordar

Tinha um largo tronco, folhas verdes

e uma sombra grande

       uma sombra assim

       sem mais fim"

3. O passarinho e os outros animais - (Cabo Delgado)

"O elefante

o elefante passeia o passarinho

que lhe tira todos os bichinhos

A palapala

a palapala passeia o passarinho

que lhe tira todos os bichinhos

O crocodilo

o crocodilo passeia o passarinho

que lhe tira todos os bichinhos

O passarinho

o passarinho voa bem baixinho

come muito e volta para o seu ninho"

4. Maria Alegria - (Tête)

"Ouçam o que eu vou contar

ouçam o meu cantar

Saia todo o dia a levar o gado para pastar

via também Maria que logo cedo ia machambar

Enquanto o boi mugia eu via Maria com atenção

e só queria Maria Alegria morando em meu coração

Mais uma vez o galo cantou bem cedo p'ra me acordar

mas eu não vi Maria que com João fora se casar

Não vou chorar

sim vou cantar

Não vou chorar

sim vou cantar"

Um Epidécio ao Escritor Maconde

Autor: Stefan Florana Dick

texto escrito após o assassínio de Grandal Nkepe numa das barracas de Maputo

in revista Lua Nova, nº 4, p. 18

"Se não estou em erro, fui um dos mais corajosos que te disse cara-a- cara:

- Nkepe, não consegui ler CASA DE JUSTIÇA, e mesmo que venha a fazer esforço a mais, não hei-de o conseguir ler. Este livro é uma merda que não devias publicar agora. Merecia a gaveta por cinco a dez anos, e só depois de lido, relido, treslido, tetralido, pentalido, por ti próprio, é que podias ter a ousadia de o mandar publicar.

E tu, cheio de copos na cabeça, mandaste-me à fava e:

- Caguei para ti, Stefan. Tens inveja de mim, porque consegui singrar ao lado desses filhos da mãe que se acham donos de literatura. E tu com a mania de que és amigo desses cágados, vens a mando deles denegrir a minha escrita. Lixem-se. Quem quer leia, quem não quer, que não leia. E ficas a saber: o meu livro é um sucesso.

...

Morreste. E lá no subsolo ou no céu, descansas em paz. Já não tens maçada de aturar professores chatos que te faziam vida negra na Universidade; os alunos que se riam do teu ar boémio nas escolas onde eras professor part-time; os outros escritores que achavam que a tua literatura era de dó menor. Morreste. Os vivos, quer queiram, quer não, hão-de ler os teus livros, como tu próprio tinhas essa certeza, e serão obrigados a admirar-te pela coragem que tiveste em publicar aquilo que te ia na alma e no pensamento."

Filhos da Miséria

Autor: Joaquim Falé

Moçambique

Pedaços de fundo vagabundo buscando no lixo um mundo perdido fugindo de tudo sábios esquecidos nunca arrependidos

Vinde ó ilustres da miséria a nossa hora está chegando recompensa merecida estamos num canto fechados vingando o passado somos o lixo por este ou aquele motivo

Levantemo-nos Irmãos! Derrotemos a Razão vão-se desviar de nos vão escutar bem alto a nossa voz rosto aberto de encontro aos mascarados somos flores do Inferno crescemos num deserto açoitados pelo vento noite e dia enfeitiçados pela morte desejados somos cinzas somos restos despojos amordaçados corremos mesmo parados não fujimos quando somos olhados

Esquecidos pela esperança vagueamos na escuridão almas desertas abraços de solidão entre as pedras adormecemos companheiros na ilusão somos pássaros da noite artistas com vida de cão

Não temos capas de vergonha não disfarçamos o medo sentimos o desespero não trocamos de lugar não nos podem dominar já mortos nos hão-de lembrar enquanto vivos vão-nos evitar

Está-nos reservado o fel sabemos porque pagamos o preço da liberdade fugindo do tempo não temos idade amantes sedentos conquistamos cidades

Brincamos como crianças num jardim de terceira idade fingimos ser apenas uma flor no paraíso vingamo-nos da memória bolsas vazias perdidas no Infinito

Vestimo-nos no escuro de amor e desespero saímos noite adentro buscando alimento

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Dados Biográficos

Sebastião ALBA

Pseudónimo de Dinis Albano Carneiro Goncalves, nasceu em Braga, Portugal, a 11.03.1940. Radicado em Moçambique a partir de 1950, voltou a Portugal em 1984. Professor e jornalista, publicou Poesias em 1965, o qual viria a retirar da sua biografia, O Ritmo do Presságio em 1974 e A Noite Dividida em 1982.

João ARMANDO ARTUR

Nasceu na Zambézia, a 28 de Dez. 1962. "Estrangeiros de Nós Próprios" é o seu terceiro livro publicado. Os anteriores: "Espelho dos Dias" (1986) e "O Hábito das Manhas" (1990).

Carlos CARDOSO

Nasceu a 10.08.1951 na Beira, Moçambique. Jornalista e analista político, Prêmio de jornalismo investigador em 1987. Publicou Direito ao Assunto em 1985. Continua activo como jornalista.

Mia COUTO

Pseudónimo de Antonio Emilio Leite Couto, nascido a 5.07.1955 na cidade da Beira, Moçambique. Foi jornalista com funções de chefia no diário "noticias" e Agência de Informação de Moçambique, é actualmente biólogo e um dos escritores moçambicanos mais conhecidos no exterior, com livros traduzidos em diversas linguas.

José CRAVEIRINHA

José João Craveirinha nasceu a 28.05.1922 em Maputo. Jornalista com o pseudónimo Mario Vieira, escritor, atleta e cronista, entre outras actividades. Foi preso pela PIDE/DGS de 1965 a 1969 por fazer parte da Frelimo. Colabodor de jornais e revistas de diversos países, tem numerosas obras publicadas e recebeu alguns prêmios literários.

Rafael KNEPE

Rafael André Luis Grandal Nkepe nasceu a 10 de Maio de 1958 em Muidumbe, Nangololo, província de Cabo Delgado. Depois de uma adolescência bastante vagabunda, teve que sobreviver. Com diversas participações na imprensa escrita moçambicana, "Casa da Justiça" foi o seu primeiro livro, editado em 1994.

Rui KNOPFLI

Rui Manuel Correia Knopfli nasceu a 10.08.1932 e fez os seus estudos na Africa do Sul.Poeta, jornalista, crítico literário e de cinema, foi um dos elementos mais activos da então Lourenco Marques. Deixou Moçambique em 1975. É de nacionalidade portuguesa com alma assumidamente africana. Tem colaboração dispersa por varios jornais e revistas e publicou alguns livros. Desempenhou (é possivel que ainda assim seja) funções na Embaixada Portuguesa em Londres.

Orlando MENDES

Orlando Marques de Almeida Mendes nasceu na Ilha de Moçambique a 4.08.1916. Licenciado em Ciências Biológicas pela Universidade de Coimbra, da qual foi assistente, e altura em que se estreou na literatura. Poeta, romancista e dramaturgo com numerosas obras publicadas, colaborou em várias revistas e jornais moçambicanos e portugueses.

Malangatana NGWENYA

Malangatana Valente NGWENYA nasceu a 6 de Junho de 1936 em Matalana, Moçambique. Produziu uma vasta obra no campo da pintura e é hoje um dos mais notáveis artistas africanos. Representado em inúmeros museus e colecções particulares em todo o mundo, Malangatana, artista multifacetado, que canta, dança, faz poemas, teatro, cerâmica e escultura, é grande animador sócio-cultural e vê erguer-se presentemente o sonho de construção do Centro Cultural na sua aldeia natal.

Isaac ZITA

Isaac Mario Manuel Zita nasceu em Maputo a 2.02.1961. Professor durante 2 anos, freqüentava o curso de Professores de Português para as 7ª, 8ª e 9ª classe quando morreu, a 17.07.1983, com apenas 22 anos. Publicou Os Molwenes.

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Esta RocketEdition® é de inteira responsabilidade e iniciativa de ebooks@TeoCom [] e Teotonio Simões [teotonio@]. Foi preparada a partir de texto público localizado em "Autores Africanos - Do Rovuma ao Maputo" []mantida por [Carlos.Pinto-Pereira@cern.ch ] que você está cordialmente convidado a visitar. Todo conteúdo original foi preservado, editorado para RocketEdition e, todos os créditos identificados, mencionados e explicitados. Autorizado o uso e reprodução apenas para fins educacionais. Todos os direitos de versão para RocketEdition® renunciados.

RocketEdition®

setembro de 1999

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