ANAIS DO - ABRAPSO



ANAIS DO 1.°ENCONTRO MINEIRO DE

PSICOLOGIA

SOCIAL

Departamento de Psicologia da UFMG Departamento de Psicologia da PUC.MG ABRAPSO - Associação Brasileira de Psicologia

Social - Regional Minas

ANAIS DO I ENCONTRO MINEIRO

DE PSICOLOGIA SOCIAL - v. 1; 1986

BELO HORIZONTE, 1986

1. PSICOLOGIA- PERIÓDICOS

I - FAFICH/UFMG, ed.

COMISSÃO ORGANIZADORA:

Elizabeth de Melo Bomfim Marcos Vieira Silva

PROMOÇÃO:

Departamento de Psicologia/UFMG – Regina Helena Campos Departamento da Psicologia/PUC-MG - Vânia Franco ABRAPSO / Regional Minas Gerais - Marcos V.silva

EDITORA:

Elizabeth de Melo Bomfim

Composição - Martha Rúsia Montagem - Henrique Lísandro

CORRESPONDÊNCIA PARA A EDITORA RUA CARANGOLA, 288- SANTO ANTÔNIO BELO HORIZONTE - 30000

ANAIS DO

I ENCONTRO MINEIRO

DE PSICOLOGIA SOCIAL

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA DA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

BELO HORIZONTE - 1986

SUMÁRIO

Andanças com a Psicologia Social .......................................................... ..... 6 Marcos Vieira Silva

O Encontro: Breve Roteiro...........................................................................................8 Elizabeth de melo Bomfim Texto lido na abertura do Encontro...........................................................................11 Marcos Vieira silva Mesa Redonda – Psicossociologia:Recordes.............................................................15 Cabeças Importadas: por que não uma psicossociologia brasileira? 16 Elizabeth de Melo Bomfim Psicologia social: Recortes teóricos..........................................................................18 José Renato Amaral Um referencial especial para a disciplina “Psicologia Comunitária e Ecologia Humana......................................................................................................21 Júlio Mourão Para-paixões/Espelhos paralelos...............................................................................26 Lúcia Afonso Des-razões de grupos operando em uma instituição psiquiátrica..............................29 Maria Regina Godoy Almeida Transversos do social e alquimias da prática em Psicossociologia..........................36 Marilia da Mata Machado História Social e Leitura de Processos de Grupo...................................................44 Regina Helena de Freitas Campos Audiovisuais.............................................................................................................48 Marcos Vieira Silva Debate:Psicologia Social e Educação..........................................................................50 Regina Helena Campos/Elza Maria Cataldo / Carlos Henrique Gerken Comunicações Roque Santeiro: O novelo, a novela e a verdade em questão...................................56 Sérgio Augusto c. Lara Formações comunitárias em Belo Horizonte..........................................................62 Introdução: Elizabeth Melo Bomfim Horto de Ferro e Fé:.................................................................................................63 Antonio C. Ferreira e Margareth A. Toledo Da vila são Gabriel ao Bairro Nazaré......................................................................69 Jorge Luiz da Costa Vila, miséria, Maria................................................................................................73 Eny Barbosa e Valéria Marques

Casas malditas: rendy-vous de desencontros.................................................................. 76 Elizabeth Assis e Marcia Azevedo

Saúde Mental e Saúde Pública.........................................................................................81

Maria Stella BrandãoGoulart

Análise Institucional: Roteiro histórico.......................................................................... 88 Vera Zaverisa

Os texto do painel

Heresias a um quadro: percepção singular de uma instituição..................................... 102 Elizabeth de Melo Bomfim

Manifesto Sol-Ar: em prol do pós-moderno..................................................................104

Elizabeth de Melo Bomfim

Praça da liberdade..........................................................................................................106

Lúcia Afonso

E nós na constituinte?...................................................................................................107

Júlio Mourão

Os textos anexos

Sugestões para a disciplina de Psicologia Comunitária a Ecologia Humana............... 110

Marília Novais Mata Machado

Comunidades alternativas: uma reflexão em torno da tema......................................... 114 Introdução: Elizabeth de Melo Bomfim

In - Comum ................................................................................................................. 116

Sérgio Augusto C. Laia

Movimento dos favelados em Belo Horizonte............................................................. 119 Cleide R.. Andrade

A República dos Guaranis............................................................................................121

Vander de Paula Oliveira

Canudos....................................................................................................................... 124

Robson P. Perry

A tecnologia para uma nova sociedade.......................................................................127 Vinicius P. Queirós

Caminho da vida e outros atalhos: andanças e reflexões em

torno de uma igreja pentecostal....................................................................................129

Sérgio Augusto Laia.

Eles queriam se chamar as: (Título proibido).............................................................133 Simone C. Fonseca e Patrícia M. Lacerda

O ”Anais do I Encontro Mineiro de Psicologia

Social" é a primeira publicação conjunta de trabalhos dos professores, e alunos de Psicologia Social de Belo Horizonte.

Sem pretender traduzir a discussão mineira em torno desta área de conhecimento, permite um flash do momento do pensamento psicossociológico apresentado em formas de debates, comunicações e mesas redondas. Aqui são também reproduzidos os textos fixados no painel expositivo (textos do painel) e os trabalhos que, de uma forma ou de outra, estavam relacionados com o “Encontro“ (textos anexo). Todos eles reproduzem os originais entregues pelos autores.

A diversidade de temas e de tratamentos poderá possibilitar algum deleite aos diferentes leitores.

Pela publicação agradecemos o empenho pessoal de Regina Helena Campos e dedicamos este número à memória de Rodrigo Garcia.

A Editora.

ANDANÇAS COM A PSICOLOGIA SOCIAL - Caminhos e Dez caminhos ou Encontros e Dez encontros do Io Encontro Mineiro de Psicologia Social

Marcos Vieira Silva

A idéia de organizar um Encontro da Psicologia Social de Minas Gerais já é antiga entre nós. Desde 1980, época da criação da ABRAPSO - Associação Brasileira de Psicologia Social (eu voltei do Rio de Janeiro crente que logo, logo, vamos conseguir organizar o nosso grupo da Psicologia Social), ela aparece, ora na PUC, ora na UFMG. Em alguns destes momentos, como um sonho ainda difícil, distante, em outros como uma proposta mais clara da um grupo já maior de pessoas, tanto da PUC, quanto da UFMG ...

Em 1983, um momento importante nesta caminhada: de 02 a 07 de maio foi realizada a Semana de Debates sobre Temas da Psicologia Social e Educacional, promovida pelo Setor de Psicologia Social e Educacional do Depto. de Psicologia da PUC/MG. A receptividade foi muito boa; o auditório ficou lotado durante todos os dias e os debates foram muito interessantes.

Ainda em 1983, no segundo semestre - setembro - o pessoal de Maringá nos convida para participar do Encontro Regional Sul da ABRAPSO - Psicologia Social: .. Enfoque da Psicologia como Ciência e Profissão, organizado por eles no bojo do processo de reforma curricular da Escola.

O convite era tentador: Maringá oferecia estadia e metade das passagens . A PUC pagou o restante das passagens e lá vou eu pra Maringá, que por sinal, e uma cidade muito gostosa. Além de apresentar o meu trabalho, fui também representando o pessoal do Setor - U F MG.

Lá, durante o Encontro, cresce a vontade de organizar um encontro em Minas. Temos experiências e tradição para isto. O problema é que as pessoas estão muito dispersas. Por enquanto ( eu sempre otimista!), parece difícil que este bando de psicólogos sociais consiga fazer alguma coisa junto!???!...

Um 2o momento importante em nossa caminhada foi a organização do curso Psicologia Social e Educação Popular, promovido pela ABRAPSO durante a 37 a Reunião Anual da SBPC, de 11 a 17 de julho de 1985, em Belo Horizonte.

Como eu iria coordenar o curso, achei que seria uma boa oportunidade para que nós mineiros ocupássemos um espaço.

6

Lá vou eu, de novo, para a UFMG, discutir com o pessoal do setor... Confesso que sai meio desanimado com a primeira discussão...

Depois as coisas engrenaram: discutimos a proposta do curso; a

idéia da Regional Minas da ABRAPSO e o nosso tão esperado Encontro para o segundo semestre. Marilia e Beth toparam participar e o curto acabou sendo muito bom. Contamos com professores da PUC/MG, UFMG, Paraíba e Maringá. Cerca de 90 a 100 pessoas assistiram ás palestras e participaram dos debates. Todos ficamos entusiasmados. A. Regional Minas era realidade. A idéia do Encontro Mineiro foi abraçada por todos nós. (UFA!!...)

Durante a Assembléia Nacional da ABRAPSO, SBPC, foi oficializada a criação da Regional Minas e nós já estávamos

propondo o Encontro Mineiro como sua primeira programação.

Depois de uma folga, voltamos a nos reunir (sábado né Beth ?), agora Já para organizar o Encontro, que tem/tinha para nós um significado Importante: um momento de recuperar uma história vivida por todos nós em momentos e de maneiras diferentes, mas ainda pouco registrada (Marilia acabou fazendo isto magistralmente) .

Depois de várias reuniões, uma boas, outras, nem tanto

(Beth falou/falará delas), o 1o Encontro Mineiro (bem mineiro) de Psicologia Social acontece.

Vamos á ele!!!

7

O ENCONTRO: BREVE ROTEIRO

Manhã ensolarada de sábado e uma primeira reunião marcada. Ai que preguiça macunaimica. Enfim, decido ir Ligo para a Marilia mas ela tem de cuidar do André e seu amiguinho. Convido minha filha Carolina e, com a promessa de um sorvete, a posteriori, entramos no carro, Marquinhos e um pequeno grupo aguardavam. Conversa vai, conversa vem, criamos a Regional da ABRAPSO, Stela convidava para o seu chá de panela à noite e discutimos as primeiras idéias do encontro. Relacionamos uns dez audiovisuais e alguns nomes de possíveis convidados. Confirmamos a exposição do material que tínhamos e das peças do museu. Sobre esta exposição já havíamos, calorosamente, discutido, entre vinhos e queijos, na casa de Marilia, quando da despedida, a caminho para a França, do Newton. Marcamos nova reunião e chamaríamos mais gente.

Sala 307A, segunda-feira, 17:00 horas. Aguardo na minha sala. Chegam Regina Helena, Marquinhos, Stela, etc. Começamos com medo. Stela propõe adiar o Encontro. Marquinhos vacila e Regina, fica atenta. Eu digo não. Devemos fazer logo o primeiro encontro, Quando? Confirmamos 8 e 9 de novembro. Proponho que deva ser algo sério mas não sisudo, que deveríamos ter música, teatro, cafezinho, pão de queijo, etc. Os olhos de Regina brilham, Serginho salta e logo Se encarrega do grupo de teatro Minas Arte Gerais, Marquinhos topa e Stela estranha, dando a impressão de que, na sua opinião, isto é baderna. Marilia entra com o André, gosta da idéia e sai. Cornelis aparece com os três filhos e confirma o debate sobre Psicologia Social e saúde. Regina dá o apoio do Departamento de Psicologia da UFMG. Marcamos outra reunião na esperança de mais gente.

Quinta-feira, 14:00 horas, sala 307A. Eu e Marquinhos. Inútil o esforço de chamar mais pessoas. Baixa meu astral. Tenho a sensação de ter de tomar as rédeas. Falo do meu desânimo mas Marquinhos está eufórico. Decidimos que seria uma promoção conjunta ABRAPSO/ DEPARTAMENTO PSICOLOGIA-UFMG/ DEPARTAMENTO PSICOLOGIA PUC-MG. A Abrapso forneceria os certificados, a Federal o local e a infra-estrutura possível e a Católica o cartaz. Confirmamos a mesa redonda Psicossociologia: recortes.

Quinta-feira, 14:00 horas. A sara 307 A está enlouquecida. Marilia, evidentemente, com seu sorriso largo. A coordenadora do mestrado de Biblioteconomia discute com Regina Helena, Marilia, Lucinha e eu a solicitação de um curso para professores sobre metodologia de pesquisa. Regina Godoy, Júlio, Sônia e Sergio entram para acertarem a ida à XV Reunião Anual de Psicologia de Ribeirão Preto, para a qual havíamos sido convidadas. Marquinhos e Stela chegam para mais uma reunião do Encontro. A princípio eles conversam entre eles, mas a reunião com a coordenadora está demorando muito. Ela nos solicita, naquele momento um programa.

8

nós só conseguimos relacionar possíveis temas. Marquinhos e Stela se inquietam. Vou até eles e Iniciamos. num canto, a reunião. Marquinhos está de péssimo humor. Parece ter se dado conta da nossa responsabilidade. Stela não só tem pressa como está agressiva. Dá a impressão de querer organizar tudo aquilo e logo diz: vocês têm de eleger um responsável pelo “Encontro”. Marquinhos e eu nos entreolhamos. Lucinha, de passagem, diz que se depender de elegermos alguém estamos perdidos. Mostro o esboço de um cartaz que tem a forma triangular. eles dizem ter gostado mas eu acho que não é verdade. Marquinhos leva-o para a gráfica da Católica. Confirmamos o debate sobre Psicologia Social e Educação. Stela propõe a criação de um painel onde pudessem ficar fixados alguns textos. Aprovamos a idéia. Serginho inscreve seu trabalho nas comunicações e Marilia inscreve o texto sobre Internato Rural do Joaquim a Celso. A partir de então, o apoio da Vânia (chefe da Psi Católica)e da Regina helena (chefe da Psi Federal) entra em cena. É ótimo ter gente nossa nos dois cargos.

Vários para a decisão sobre o cartaz. A forma triangular é cara e o pessoal da católica não gosta. eles apresentam um novo cartaz. Marquinhos mostra·me . A frase liberado para menores de dez anos foi cortada. Eu não gosto do novo cartaz que é morto e cheio de paralelas monótonas. Um horror. Eles fazem novas tentativas com o pessoal da gráfica. Marquinhos me liga e diz que o atual cartaz é retangular e que o verde, vermelho e branco iniciais foram substituídos pelo branco, roxo e preto. Meu humor alcança altos pontos negativos. Marquinhos não quer assumir o cartaz sozinho e marcamos um encontro. Espero-o mais de meia hora e eis que, de súbito, caminha pelo pátio figura de branco. estou com Marilia e Carolina tomando café. Preciso preparar o espírito da Marilia e o meu. Falo do esforço que eles estão fazendo e tento convencer-me. Decido, antes, de vê-lo, que iria aceitá-lo. Marilia ainda insiste na forma triangular e sugere um quadrado que pudesse ser cortado diagonalmente. Marquinhos, mais uma vez tentaria conversar na gráfica. Fomos procurar alguém que pudesse corta-lo, caso a idéia do quadrado fosse viável. Tudo em vão. Iria ficar caríssimo. Pelo telefone com o Marquinhos decidimos , finalmente, o cartaz. Posteriormente, várias pessoas elogiaram. Confirmei com os alunos de Psicologia Comunitária a inscrição do trabalho Formações comunitárias em Belo Horizonte. Marquinhos fica como o coordenador das sessões de audiovisuais. Stela decide apresentar seu trabalho. Tarcisio e Sandra Guerra confirmam a sessão musical.

De volta da Reunião de Psicologia de Ribeirão Preto e da visita à exposição de arte da XVIII Bienal de São Paulo, fecho, finalmente, a programação do Encontro. Marquinhos entrega os cartazes e leva a programação e as fichas de inscrição para os puc-ianos de Beagá. Celso , o monitor, Se recusa afazer as

9

Inscrições e nos revezamos na secretaria: Cristina, Marcelo, Ritinha, Regina, Lucinha e eu. Preparo, com Marquinhos o material de divulgação e enviamos para os jornais e boletins locais. São publicados no Estado de Minas, no boletim UFMG e no Boletim da PUC-MG. Faço a lista do material necessário e discuto com Zé Afonso. Solicito a utilização das instalações do coleginho , audiovisual da reitoria e várias outras providências; Regina pede-me para ler o trabalho da Vera. leio-o e decidimos inclui-lo.

Na reunião do pessoal da Social, quinta-feira, decidimos dar uma ordem nas apresentações dos trabalhos da mesa redonda. Pergunto por um convite a ser feito ao Célio, Marilia informa já tê-lo convidado. José Renato sugere e se encarrega de convidar Anna Edith, Solicito material para a exposição e inicio os preparativos finais.

Sexta.feira, o dia. No encontro com Zé Afonso várias, dificuldades. Não conseguimos permissão para utilizar as cadeiras do auditório e nem um painel vazio do saguão. Tínhamos de improvisar. Chegam Marquinhos, Marilia e Lucinha. Iniciamos a preparação do local: exposição, salas; cartazes informativos, etc.. Como na pressa o tempo voa, encontrei-me, inesperadamente, tensa mas percebendo o bom astral reinante, saudando os participantes nos termos:

Dando as boas vindas em nome do Setor de Psicossociologia e Psicanálise e do Departamento de Psicologia, da Universidade Federal de Minas Gerais, gostaria de dizer que este I Encontro Mineiro, de Psicologia Social é resultado do trabalho e do empenho de muitas pessoas. Não irei citá-las nominalmente, porque há muita temos sonhado e trabalhado juntas e não me acho no direito de agradecer pessoas que, muito mais do que eu, têm lutado pela Psicologia Social em Minas Gerais. Tudo que posso fazer é convidar à persistir neste caminho e neste Sonho porque, como está escrito em um dos contos de”As mil e uma noites”, a verdade não é feita de um único sonho, mas da soma de muitos sonhos” Portanto, sonhemos juntos por uma psicossociologia mais Criativamente significativa.

Muita obrIgado.

Elizabeth de Melo Bomfim novembro-1985

* Professor adjunto do Departamento de Psicologia -UFMG

10

TEXTO LIDO NA ABERTURA DO ENCONTRO

Marcos Vieira Silva

Este Encontro está sendo promovido pela ABRAPSO -Associação Brasileira de Psicologia Social - Regional Minas Gerais, pelo Departamento de Psicologia da UFMG e Departamento de Psicologia da PUC/MG.

Para os que ainda não a conhecem, a ABRAPSO foi fundada em 1980, com as finalidades de:

a) Garantir e desenvolver as relações entre pessoas dedicadas ao estudo, ensino, investigação e aplicação da Psicologia Social no Brasil;

b) Propiciar a difusão e o intercambio de informações sobre o desenvolvimento do conhecimento no campo da Psicologia Social;

c) Organizar conferências e cursos e promover a publicação de trabalhos de interesse para o desenvolvimento da Psicologia Social.

A ABRAPSO tem procurado promover Cursos e debates regionais e, durante as reuniões da SBPC, encontros e cursos nacionais. Publica um Boletim com textos e programações de seminários e cursos.

Este Encontro é uma primeira promoção da Regional Minas, que foi criada durante a ultima reunião da SBPC, em Belo Horizonte. Esperamos criar espaços para divulgação e discussão de trabalhos para encontros de pessoas interessadas e envolvidas em Psicologia Social.

Gostaríamos de agradecer a presença do prof. Sergio Ozella, da PUC/SP, que veio representando a ABRAPSO - Nacional.

O Encontro acontecerá 3 (três) salas:

1a. sala - MUSEU. - Um pouco da história da Psicologia Social, o laboratório de Psicologia Social da FAFICH e Publicações, Boletins e Revistas que falam um pouco da história da Psicologia entre nós.

2a. sala - Mesas redondas debates e comunicações de trabalhos, hoje e amanhã.

3a. sala - Exibição de filmes e audiovisuais, amanhã, sábado.

Nossa programação é a seguinte:

11

I ENCONTRO MINEIRO DE PSICOLOGIA SOCIAL

DIA 8/11-6a feira 20:00 horas

Abertura. Exposição.

Mesa Redonda: Psicossociologia: Recortes - Elizabeth Bomfim, José Renato Amaral, Julio Mourão, Maria Lúcia Afonso, Maria Regina Almeida, Mari1ia Mata Machado, Regina Helena Campos.

DIA 9/11 - Sábado 08:00 horas

Debate: Psicologia Social e Saúde· - Cornelis van Stralen, José S.Felipe, Francisco E. Campos e Francisco A. Machado.

10 horas

Música, cafezinho e pão de queijo

10:30 horas

Comunicação de trabalhos. Apresentações de audiovisuais e filmes

14:30 horas.

Debate: Psicologia Social e Educação - Carlos H. Gerken e Elza Cataldo.

15:30 horas

Comunicação de trabalhos - Apresentação de audiovisuais.

11:00 horas

Teatro - Grupo Minas Artes Gerais

PROGRAMAÇÃO DOS AUDIOVISUAIS E COMUNICAÇÕES DE TRABALHOS.

DIA 9:10 - Sábado

Audiovisuais e filmes: Coordenação de Marcos Vieira Silva .

10:30 horas: Nossa Senhora - Modelo de Mulher( audio) 11:30 horas: Universidade: para que e para quem? (audio)

15:30 horas: O rosto do abandono (filme)

16:30 horas: Por uma psicologia (audio)

12

Comunicações de trabalhos

Manhã

10:30 hora : O social e a autonomia : leitura a partir de J. J. P. Dupuy – Leila Marine, Sérgio Laia.

10:00 horas : Internato Rural - Joaquim e Celso P. Meio 11:30horas : Roque Santeiro - Sergio Laia

Tarde

15:30 horas: Formações Comunitárias em Belo Horizonte- Antonio C. Ferreira, Elizabeth Assis, Elizabeth Bomfim, Eny Barbosa, Jorge L.Costa, Margareth Toledo, Marcia Azevedo, Valéria Marques.

16:00 hora : Saúde mental: considerações - Maria Stela B. Goulart.

18:30 hora. : Análise Institucional: resumo histórico - Vera Zavarise.

13

MESA REDONDA: PSICOSSOCIOLOGIA-RECORTES

CABEÇAS IMPORTADAS OU PORQUE NÃO UMA PSICOSSOCIOLOGIA BRASILEIRA?

Elizabeth de melo Bomfim (*)

A Psicologia no Brasil é importada. Dada a necessidade de um atual julgamento Qualitativo da ciência, tal fato, em si, não é benéfico nem maléfico. Mas sem dúvida reflete a inibição mesmo a castração dos profissionais da cabeça que, mimética ou criticamente, reproduzem os textos estrangeiros. Os raros momentos de esforço de um pensamento original passam por um conhecimento psicossociológico produzido, não necessariamente, no interior da Psicologia Social. São contribuições científicas e/ou artísticas dos que, rompendo a mediocridade criativa, vislumbraram e teceram sua contribuição própria.

Nos fins do século passado e início deste, assistimos delinear um pensamento em torno da questão psicossocial através dos higienistas, jurisprudência e da sócio-antropologia. Com os primeiros laboratórios de psicologia importamos as idéias da inferioridade da nossa raça mestiça e as fórmulas definidoras de caráter dos criminosos com suas policiescas atitudes depressivas. Nina Rodrigues através de suas pesquisa sobre a inferioridade racial dos negros e mulatos justificava o fenômeno Canudos e influenciava Euclides da Cunha na redação de Os Sertões. Essa maligna importação contrastava com o sentimento de brasilidade de Gonçalves Dias. O país que buscava manter sua independência política e a economia agrária tinha na brasilidade a ampliação do nativismo de Gregório de Mattos e dos ideais comunitário-regionalistas dos conspiradores mineiros.

Na década de 20, os ismos e os ãos. Industrialização, urbanização, imigração, anarquismos, comunismo e tenentismo. E na arte a força de dois movimentos brasileiros: o modernismo e o regionalismo. O entusiasmo dos educadores com seus ideais escolanovistas abria espaço, não só para uma psicologia pensada nas escolas mas, e principalmente, para o rascunho de um pensamento educacional brasileiro. Carneiro Leão é o precursor.

A década de 30 está marcada pela sulista literatura modernista e pelo regionalismo brasileiríssimo de Gilberto Freyre (com o suporte da escola de Recife). Marcada por uma literatura (com uma língua própria) e uma Sócio-antropologia dessa terra e dessa gente. E, nos orgulhando do nosso corpo e nossa alma pardos, caminhamos resolutos e estadonovistas para a guerra. Pela primeira vez exportamos, na política da boa vizinhança americana, o ufanismo

( * ) Professora de Psicologia Social da UFMG mestre em educação e doutorada em educação brasileira pela UFRJ.

16

musical de Ari Barroso e o exotismo do figurino-coreográfico musical de Carmem Miranda.

Mas a diáspora dos pós guerra atacou a todos: artistas, educadores, antropólogos, sociólogos,etc. A importada psicossociologia tenta rearticular os pequenos grupos, promover as mudanças de atitude e desenvolver as relações humanas nas indústrias e empresas. Na longa discussão em torno das diretrizes e bases na educação nacional crescem as campanhas de alfabetização. Os cantores do rádio tornaram-se ídolos e riamos das chanchadas cinematográficas.

Surgia o planalto central com ideologia nacional desenvolvimentista e uma bossa nova. A cultura popular entrava em cena nos palcos da isebiana produção sociológica e no conseqüente Centro Popular da Cultura. Fortalecido com o movimento de alfabetização, Paulo Freire explodia com o primeiro pensamento original da educação brasileira. Beneficiado por meio século de agitação educacional, Paulo Freire criou a libertação pela conscientização num método de alfabetização. Do dueto Anísio Teixeira - Darcy Ribeiro surgiu o primeiro modelo de universidade brasileira. O filme Pagador de Promessas recebia um prêmio internacional e Gabriela com sua cor de canela e cheiro de cravo eternizava, nas letras de Jorge Amado, a mulher Brasil A língua portuguesa de Machado de Assis que, tendo alcançado a nacionalidade em Mário/Oswald de Andrade, entrou no sertão mineiro de Guimarães Rosa. E Dante Moreira leite tentava esboçar um caráter(sic?) nacional do brasileiro.

E uma nova diáspora, desta vez nacional era introduzida pela, revolução de 64. O curto fôlego do tropicalismo foi seguido pela, longa narrativa brazilianista e passamos a nos enxergar por alheios olhares. Avançava comunicação de massa e com a televisão surgia a preocupação com a formação da opinião pública. A planadora psicossociologia de Rodrigues e Schneider nunca aterrizou. E ao som do rock introduzíamos o fim dos sonhos (será que sonhamos?) e utopias, com seus movimentos contra-culturais e anti-institucionais. No crescer do movimento alternativo, Ecléa Bosi procura retratar, pela leitura das operárias paulistas, a influência da massificada comunicação na popular cultura.

No signo da anistia, exportamos telenovelas, música popular, cinema, literatura, sociologia e antropologia, artesanatos e assistimos os desencontros psicológicos em torno da questão da identidade.

E na esperança de um muda Brasil e de um crescer da psicossociologia brasileira dedicamos essas palavras, por terem sido escritas no dia de sua morte, á memória de Ayres da Matta Machado.

17

PSICOLOGIA SOCIAL - Recortes Teóricos

José Renato Amaral *

Inicialmente, eu me dispunha a trazer para esta reunião da Sociedade de Psicologia de Ribeirão Preto algumas reflexões que Venho fazendo sobre o tema das instituições. Dei·me conta nos últimos dias que a situação singular que vem enfrentando nos meses recentes o Departamento de Psicologia da Universidade Federa! de Minas Gerais, justificava plenamente um redirecionamento da discussão inicialmente proposta, na tentativa de trazer para este Fórum o debate que travamos internamente.

Um grupo numeroso de professores do Departamento de Psicologia da UFMG(Praticamente 50% do seu corpo docente), com o apoio dos estudantes, vem de propor a divisão do mesmo, através da criação de um Departamento de Psicanálise e Psicossociologia. Acompanhar esta aproximação institucional e teórica entre a Psicanálise e a Psicologia Social será nossa tentativa nesta intervenção. Para compreende-la devemos rapidamente contar a historia dos caminhos trilhados pelo Setor de Psicologia Social nos últimos anos. O Setor de psicologia Social se estrutura inicialmente através de trabalho de pesquisa e ensino sobre o tema dos grupos e instituições. A Psicologia Social das Organizações e a Dinâmica de Grupo são os dois grandes temas trabalhados. Paralelamente, ao trabalho de pesquisa, sobre estes temas toda um esforço de reflexão teórica sobre os mesmos é feito vinda a desembocar numa crítica epistemológica e política. Os estudos sobre organizações tendo como pano de funda a preocupação com a racionalidade administrativa ,com o aumento da produtividade, era por nós criticado por desaguarem numa pretensa teoria das relações humanas que funcionava muito mais como uma tentativa de ocultamento dos conflitos presentes no mundo do trabalho, do que da análise destes mesmos conflitos. A teoria dos pequenos grupos, a dinâmica de grupos foi também criticada neste trabalho de reflexão teórica, numa longa discussão que a exigüidade do tempo não permite abordar. A crítica estruturalista e marxista dos modelos predominantes em Psicologia Social leva-nos a novos impasses teóricos. O sujeito na sua prática social começa a ser visto como mero reflexo de estruturas sociais e econômicas às quais ele reproduz, seja em seu comportamento, seja na sua forma de perceber o mundo.

* Professor Adjunto do Departamento de psicologia- UFMG

18

Uma primeira aproximação com a Psicanálise se dá a partir da análise do fenômeno grupal empreendida por Freud. Seu texto sobre psicologia de massas e análise do eu e o ponto inicial da toda uma nova problemática. Trata-se agora não mais de construir uma tipologia sobre os tipos de liderança ou sobre os processos de grupo, mais de pensar os investimentos pulsionais, a questão da identificação. Esta aproximação com Psicanálise será por nós aqui abordada através da análise de alguns texto e trabalhos que tem Informado a nossa prática pedagógica. Tomaremos como ponto de partida para tanto a tentativa de análise de alguns fenômenos da recente história brasileira, especialmente a mudança no universo valorativo e a conseqüente criação de novos hábitos psíquicos em certas camadas da população urbana do país Para facilitar a discussão que deve dar prolongamento a nossa apresentação vamos nos basear particularmente no trabalho de Jurandyr Freire Costa Sobre a Geração A1-5. Violência e Narcisismos parte de seu recente livro violência e psicanálise. Ali ele vai procurar uma explicação para o fato de que uma nova concepção do mundo, uma nova forma de viver as relações sociais se instaure numa parcela significativa da população das grandes cidades, dando origem ao que luciano Martins vai chamar de Geração A 1-5. Algumas referenciais ao trabalho de Luciano Martins se fazem necessárias. 0 trabalho publicado por este autor em 1979 vai provocar uma discussão nacional, que atravessou os campos da Filosofia, da Sociologia, da Psicologia. Em determinado momento tornava-se difícil encontrar uma instituição acadêmica no Brasil que se visse concernida pelas questões colocadas por Luciano. Em síntese, o autor vai localizar a partir do final da década de 60 no Brasil a difusão de uma cultura autoritária. Correta do autoritarismo político ela vai retirar do indivíduo a sua condição de sujeito da própria história, levando ao desenvolvimento de uma ideologia subjetivista, predominante nos setores médios e altos da sociedade urbana. Na tentativa de localizar as origens do fenômeno, Luciano Martins vai chegar aos seus sintomas: a desarticulação do discurso, o culto ás drogas, o modismo psicanalítico. Mas, ao autoritarismo, como dizemos anteriormente, que se atribui a origem última da criação deste novo subjetivismo. Sem questionar os méritos do trabalho sociológico de Luciano Martins, Freire Costa vai procurar discutir a hipótese levantada pelo autor da relação direta entre autoritarismo e criação destas novas formas de viver as relações sociais. Para tanto, vai procurar nos trabalhos de Cristopher Lasch sobre a sociedade americana e de Jean, Baudrillard sobre a francesa, as bases para tanto. Aqueles autores vão encontrar naquelas sociedades, onde é inexistente o tipo de autoritarismo político denunciado por Luciano Martins, a, a disseminação da mesma ideologia subjetivista analisada pelo.

19

autor. A explicação de Lasch e Baudrillard para o problema se assenta sobre a questão do narcisismo. Um paralelismo entre a patologia narcísisca e a estrutura psíquica do indivíduo, preso á ideologia subjetivista é apresentada por Lasch. Se a sintomatologia da patologia narcísica, descrita pelos psicanalistas, se caracterizaria por insatisfação vaga e difusa inconsistência das relações amorosas, hipersensibilidade á frustração, sentimentos de futilidade e ausência de finalidade da. existência, sensação permanente de tédio e vazio interior, depressão e oscilações bruscas na auto-estima, nervosismo, dependência fugaz e automática frente a experiências afetivas calorosas, etc... Lasch vai encontrar na cultura americana a predominância de padrões de comportamento caracterizados por: medo da velhice, declínio do espírito lúdico, sensação de vazio interior, frieza nas relações afetivas, fome insaciável de novas experiências afetivas, etc. que apresentaria uma. Afinidade com a patologia narcísica. Daí a tendência.a pensar estas sociedades como patogênicas. Jurandyr F . Costa vai retomar a discussão apontando para uma questão crucial. Nenhuma cultura poderia ser considerada em si como patogênica.. A Impressão no sujeito, através do processo de socialização, de certos traços comuns de conduta. e aspiração é inerente a toda cultura. E a seu ver a estratégia empregada pelo. sujeito para apropriar-se de um traço comum que pode levar à patologia.

Trabalhar a questão dos novos hábitos psíquicos de parte da população urbana é assim analisar os investimentos pulsionais desta e os mecanismos utilizados na definição da identidade dos sujeitos sociais. Retomada da análise freudiana. O acesso á Psicologia de massas, à Psicologia Social, é dado pelo trabalho de análise destes mecanismos, na busca da detectação dos traços da nova ação psíquica. A Psicologia Social se aproxima da Psicanálise. Caberia a pergunta central: questão de método ou mudança de objeto? Sugerimos para uma discussão com os presentes que as duas questões caminham paralelamente. O abandonada uma problemática: a tipologia dos grupos, a não constatação meramente estatística da freqüência ou não de comportamentos padronizados, em troca de uma nova questão: a pergunta sobre a produção histórica.e social dos sujeitos, leva a um novo método. Retomada da Psicanálise pela Psicologia Social na perseguição do objetivo da metapsicologia freudiana: A construção de uma teoria que dê conta da vida psicológica de sujeitos históricos.

20

UM REFERENCIAL ESPECIAL PARA A DISCIPLINA "PSICOLOGIA COMUNITÁRIA E ECOLOGIA HUMANA":

O ECODESENVOLVIMENTO.

Júlio Mourão ( *)

Depois da reforma do curso de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, em 1974, alguns capítulos da disciplina ”Psicologia Social” tornaram disciplinas autônomas. Tal foi o caso de psicologia comunitária, e Ecologia Humana. Mais do que uma disciplina, a Comunitária conforme a chamamos de forma abreviada, é uma área de trabalhos tanto teóricos como práticos, rica e complexa. Em Belo Horizonte tem havido demandas para que psicólogos atuem nas áreas de Saúde Pública, Saúde Mental e Desenvolvimento de Comunidades, principalmente periféricas, e a, Psicologia Comunitária tem estado presente nestes trabalhos.

Como se trata de uma disciplina nova, temos buscado diferentes referencias teóricos aos quais relaciona-la. Um deles é o do Ecodesenvolvimento, tema com o Qual estou particularmente envolvido. É sobre isto que farei minha comunicação.

A palavra ecodesenvolvimento foi forjada por Maurice Strong, durante a 1a Conferência sobre o Meio Ambiente organizada pela ONU em Estocolmo 1972. Depois disto vários pesquisadores se dedicaram ao tema, sendo o mais destacado deles o professor Ignacy Sachs, de Paris. O prof. Sachs já esteve algumas vezes em Belo Horizonte trabalhando conosco, e nos estimulou no sentido de testar as proposições do ecodesenvolvimento no nosso contexto. Certamente o ecodesenvolvimento se revelará importante fonte de inspiração para nossas hipóteses de trabalho na comunidade.

Antes de abordar as proposições básicas do Ecodesenvolvimento, quero dizer que não o considero um novo paradigma; antes, o ecodesenvolvimento, tem uma função mais de natureza heurística, permitindo-nos levantar Indagações pertinentes, suscitando questões importantes, hipóteses de trabalho relevantes.

*Professor adjunto do Depto de psicologia - UFMG.

21

Proposições Fundamentais do Ecodesenvolvimento:

A hipótese de base do Ecodesenvolvimento pode ser formulada assim: não há um desenvolvimento, mas vários estilos de desenvolvimento. Enquanto conceito pluridimensional, o desenvolvimento deverá, em conseqüência, ser definido em relação à situação específicas.

O planejamento é concebido aqui como um jogo de harmonização, que consiste em tornar compatíveis os Objetivos do desenvolvimento econômico com os objetivos da sociedade em geral. Isto pode implicar uma definição do papel dos diferentes atores sociais (sociedade, Estado, mercado), e o setor público atuará a fim de garantir a cada um espaço para se exprimir validamente, De fato, o setor sociedade é frequentemente muito vulnerável às invertidas do setor mercado, sobretudo nos países do Terceiro Mundo. Este desequilíbrio poderá- e deverá - ser compensado pela interferência do setor público.

A esta hipótese de base se agrega um postulado, também fundamental, mas de natureza ética: o Ecodesenvolvimento visa, em primeiro lugar, a promoção do homem, a satisfação de suas necessidades básicas, - alimentação, habitação, saúde e educação -, bem como os meios para se chegar ai: emprego, segurança, qualidade das relações humanas, etc. O problema que se coloca aqui é o da definição de prioridades que o modelo de desenvolvimento deve adotar. Para muitos paises, é ainda uma estratégia de sobrevivência o que está na cabeça da lista de prioridades. Ultrapassar a fronteira da pobreza, tal é o objetivo primordial que todo modelo de desenvolvimento alternativo ou apropriado deve se colocar, em qualquer lugar em que a ameaçada tome ainda subsista.

Nesta ótica, o problema da implantação de sistemas de produção apropriados deverá ser precedido de uma análise de necessidades. E assim que, em situações em que o problema do desemprego se revele importante, sistemas que absorvam mais mão-de-obra terão prioridade. Numa etapa posterior, uma vez garantida a Satisfação das necessidades básicas, não será mais este esquema de sobrevivência que determinará as opções. Se o Ecodesenvolvimento denuncia a sociedade do desperdício, ele defende a sociedade da abundância.

Pode haver modelos de desenvolvimento que se integram de maneira harmoniosa á natureza - esta é a terceira proposição fundamental do ecodesenvolvimento. De Um lado, trata-se de evitar a degradação dos ecossistemas e o desperdício de recursos. De outro lado, trata-se de compatibilizar a formulação do modelo de desenvolvimento às características do meio físico concernido. Aqui também, o jogo de harmonização consistirá em aproximar o estudo destas características ambientais com os objetivos sócio-econômicos que se quer atingir.

22

Finalmente, uma quarta proposição estipula que o desenvolvimento deve ser um processo endógeno por excelência, um processo aberto á participação das pessoas concernidas, e que mobilize prioritariamente os recursos técnicos já existentes e incorporados á cultura da sociedade - é o desenvolver contando com suas próprias forças, ou ainda estimulando a self-reliance. Eis o que Sachs escreve a propósito deste conceito:

A 'self-reliance’ implica antes de tudo uma autonomia de decisão, uma capacidade de Identificar seus próprios problemas e de encontrar soluções em que haja, por isso, ruptura com o mundo externo. Fala-se às vezes de ‘desenvolvimento autocentrado (1).

A ‘self-reliance’ distingue-se da autarcia na medida em que prevê uma abertura constante sobre as instituições exteriores, com as quais sistemas de trocas são organizados. A comunidade contínua sendo assim um organismo permeável, mas protegendo-se contra investidas excessivamente invasoras. É nesta troca que ela encontra parte dos estímulos que a fazem progredir.

Esta orientação exige, pois, uma revalorização do patrimônio cultural de cada sociedade: este é frequentemente desprezado em favor de costumes e produtos vindos de fora. Fala-se de uma tendência á imitação que seria uma característica generalizada nas comunidades do Terceiro Mundo, e que teria como conseqüência importante disfunções em vários setores da vida social. As soluções válidas para países industrializados se mostram frequentemente inadaptadas ás condições do Terceiro Mundo. Mas, transformadas em mercadorias, estas soluções encontram saída garantida nos mercados do Terceiro Mundo; as mídias têm um papel fundamental neste processo.

A Escolha de Técnica:

Diferentes estilos de desenvolvimento implicam estilos tecnológicos específicos. O Ecodesenvolvimento reconhece a importância desta relação e faz disto um dos problemas centrais de suas análises. Entretanto, quer também se prevenir contra um reducionismo inaceitável, que consistiria e transformar o problema do desenvolvimento em um problema de escolha de técnicas. E assim que ele reserva muito espaço à discussão dos aspectos institucionais, evitando os riscos de posições de natureza tecnocrática. Aos critérios econômicos que intervêem na produção e na escolha de técnicas, o Ecodesenvolvimento propõe a incorporação de outras duas ordens de critérios: o social e o ecológico. A importância evidente destes dois fatores não impede que eles sejam frequentemente esquecidos pelos planejadores.

Examinaremos os principais aspectos do problema da escolha de técnicas proposta pelo Ecodesenvolvimento. Alguns dos autores

23

citados não com o Ecodesenvolvimento; apesar disto, sua contribuições à formulação e ao estado das ecotécnicas são fundamentais.

Primeiramente, algumas considerações sobre a definição de conceitos. Encontraremos na literatura especializada dois conceitos que, aliás, seriam talvez sinônimos: tecnologias apropriadas e tecnologias intermediárias Falta ainda uma definição precisa destes conceito, já que eles foram formulados recentemente.

Schumacher foi certamente o primeiro a propor o conceito de 'tecnologia intermediária’. O adjetivo empregado pressupõe a existência de um continuo cujas extremidades seriam constituídas pelas 'técnicas modernas' e as 'técnicas primitivas ', estando os outros estilos distribuídos ao longo deste contínuo; é ali que se situaria a 'tecnologia intermediária' (2}. Schumacher indica algumas características deste tipo de tecnologia:

... Eu chamei 'tecnologia intermediaria’ (ou de nível médio) para indicar que ela é muito superior à tecnologia primitiva dos séculos passados, e sendo, ao mesmo tempo, muito mais simples mais econômica e mais independente do que a super-tecnologia dos ricos. Podemos também chamá-la de tecnologia do ajudai-vos mesmos, ou tecnologia democrática, ou ainda tecnologia do povo: uma tecnologia á qual todo mundo pode ter acesso e que não é reservada aos que são já ricos e poderosos. (3). Haveria também uma tecnologia da máquina, característica da produção de massa, e uma tecnologia da ferramenta, implicando numa produção pelas massas.

Depois de mencionar a definição de Schumacher, Stewart reporta também a de Marsdens, a 'tecnologia progressiva' a proposição de Marthur, 'uma tecnologia do Terceiro Mundo que consiste em adaptar os métodos modernos ás condições especiais dos países em desenvolvimento'; aquela frequentemente empregada pelos economistas, 'tecnologia intensiva em mão-de-obra'; e a de Dickson, 'tecnologia alternativa'. Stewart não formula uma definição única, e propõe trabalhar sobre a ‘tecnologia apropriada' e às vezes, sobre a ‘tecnologia alternativa’.

Assim como Stewart, lllich prefere caracterizar seu conceito em lugar de defini-lo. A ferramenta é convivial , diz ele, na medida em que cada um pode utiliza-la sem dificuldade, tão frequentemente ou tão raramente como o desejar, para os fins que ele mesmo determinar (4). E também: A ferramenta convivial será incomparavelmente mais eficaz que a ferramenta primitiva e, diferente da ferramentaria Industrial , estará ao alcance de cada um. E ainda; A ferramenta justa responde a três exigências: é geradora de eficiência sem degradar a autonomia pessoal, não suscita nem escravos nem mestres, alarga o raio de ação pessoal.

A íntima relação que existe entre a escolha de técnicas e a

24

Organização social é bem ilustrada na proposição de John Todd, onde ele prega o desenvolvimento de uma ciência que possa ser apropriada pelo povo:... Na base deste projeto encontra-se a criação de uma biotecnologia que, por sua própria natureza, poderá:

- funcionar de maneira eficaz nos níveis sociais mais baixos;

- ser compreensível e utilizável pelas populações as mais pobres;

- ser baseada em realidades tanto ecológicas como culturais,

levando a um desenvolvimento das economias locais;

- permitir a evolução de pequenas comunidades descentralizadas que, por seu lado, pudessem desempenhar um papel de farol para um futuro mais adequado para a maioria da população mundial, e - ser criada localmente e demandar poucos recursos financeiros. Isto daria a possibilidade às regiões ou nações pobres de se lançar na criação de biotecnologias indígenas (51).

lllich trabalha também sobre o conceito de pesquisa radical, que não deveria ser nem uma nova disciplina científica, nem um empreendimento interdisciplinar: é a análise dimensional da relação do homem com sua ferramenta. Esta pesquisa radical persegue dois objetivos; por uma lado fornecer os critérios que permitam determinar quando uma ferramenta atinge seu limite de nocividade; de outro lado, inventar ferramentas que otimizem o equilíbrio da vida, e portanto maximizem a liberdade de cada um. A pesquisa radical é resposta a uma ameaça importante que ele chama monopólio radical, situação que se caracteriza quando uma ferramenta toma o controle exclusivo satisfação de uma necessidade (6).

Bibliografia citada:

1- Sach., Ignacy - ''Stratégies de l'écodéveloppemente" – Les Éditions Ouvriéres, 1980, Paris.

2- Stewart, Francis – ”'Technology and underdevelopment”- The Macmilian Press Ltd., 1977, Londres.

3- Schumacher, E. F. - "Small is beautiful - une société à mesure de I’homme - Le Seuil, 1978, Paris.

4-lllich, lvan - "La convivialité" – le Seuil, 1973, Paris.

5- Todd, John – “A modest proposal: science for the people” in “Radical agriculture” - Merril, R. et al. - Harper and Row publ,, 1976, Nova yorque

6-lllich, Ivan, citado por Simmonet, D. - "L'écologisme" - Que sais-je?

PUF, 1979, Paris.

25

PARA-PAIXÕES/ESPELHOS PARALELOS

Lúcia Afonso/85

Qualquer maneira de amor vale o canto qualquer maneira me vale cantar.

Este artigo, embora pequeno, é dedicado a duas grandes pessoas. A Maria Auxiliadora Bahia: todos os grandes e pequenos engodos. A Marilia Mata Machado, quem primeiro vi usando o termo não-desejo em um polêmico artigo, intitulado "Sexualidade e Instituições."

Eu sei muito pouco sobre o Desejo. Eis aí uma frase que a própria autora estará fadada a cunhar pele resto do artigo senão da vida. Ai onde o pouco pode ser muito, o muito Pouco. Também sei pouco muito sobre o não-desejo. Já aprendi que os dois andam sempre juntos assim como o saber e o não-saber, o amor e o não amor e outros casais de oposição. Tudo indica que uma influência subreptícia da ficção científica atravessa a teoria social: é como se para tudo existira um paredro no universo paralelo. Deveríamos então sugerir as expressões para: para-desejo), para-saber e assim por diante? Será que todo desejo engendra (nos meandros do nosso pensamento) um não desejo, um meta-desejo, um para-desejo? 2 É como diria Caetano Veloso, o avesso do avesso do avesso do avesso. Mas não estou nessa página para brincar com essas palavras. Além do mais, resumamos O assunto para não cansar o freguês.

A história desse artigo começa muito antes que ele tenha sido engendrado, mas o causo começou quando a minha amiga Doía ironizou dizendo que a amor é um grande engodo e que a paixão é o que realmente conta. Dei um pulo do universo paralelo e pus os pés no chão ou, em outras palavras, na terra, ou melhor dizendo no planeta Terra, o qual, por estar solto no espaço, me tirou imediatamente o chão. Me deu um tchan e cheguei a algumas chãs conclusões.

Brincando, brincando, eu me lembrei do fascinante achado teórico de Foucault 3, o qual afirma que nossa época é de grande controle/manipulação da sexualidade é que ainda assim nunca se falou tanto sobre o sexo. É por ai que passeiam meus temores quando ouço alguém (mas não a minha amiga Doía) discursar sobre O Desejo, a Paixão. Eu me pergunto que estrada é essa e onde me leva. Qual é o fascínio de se falar sobre o deseja, a amor,

1.Professora de Psicologia Social, Psicologia, UFMG.

Membro do CEPEP (Centro de Estudos e Pesquisa em Educação e Psicologia)

A expressão para desejo é usada aqui como um termo de retórica, alusão à estória do para·universo, onde o nosso universo, encontra a sua negação. Chamo atenção para o fato de que a realidade existe em várias dimensões do real.

26

a paixão? Caberia uma analogia a Foucault e sugerir que, nessa época onde se fala tanto sobre o Amor, a Paixão, o Desejo, estes três personagens vivem debaixo de grande asfixia?

Não faltariam argumentos para se discutir este aspecto da vida das Sociedades industrializadas, urbanizadas, e mesmo aquelas em que essa industrialização é menor mas que estão integradas ao sistema mundial. Desagregação de instituições como a família, de traços culturais, massas de menores abandonados, instabilidade no emprego violência sexual em alto índice, e outras coisas mais. Alguém mais cínico do que eu afirmaria que as concepções sobre o amor são mais instruídas pelos processos de divórcio e partilha de bens do que por qualquer registro teórico. A paixão teria ao menos essa vantagem: não deixa pecúlio.

Quando um amigo meu me diz, falando de seu penoso processo de separação, que o bom mesmo e ter relacionamentos sem levar a escova de dentes, eu me pergunto sobre o sentido de sua opinião. Seria uma crítica ao modelo conjugal burguês? Uma teoria sobre o amor ou sobre a impossibilidade amorosa? Sobre a para-paixão? Não sei. Quem sabe? Os discursos sobre o desejo, amor ou paixão não .me falam muito sobre meu amigo. Eles rezam sobre categorias abstratas, esses grandes personagens de um drama que á absolutamente humano mas onde os atores ficam por se conhecer. Discursar será também tentar aprender, perseguir, mas por vezes esconder. Como criança presa ao fascínio da peça eu me sinto tentada a subir ao palco e ir conhecer os atores. Os personagens eu conheço, mas quem são Protagonistas do drama?

Pensemos, então, nas Pessoas-que-amam, nas pessoas-apaixonadas. Pensemos em meu amigo e em sua escova de dentes, em minha amiga que se deita com amantes ocasionais mas escreve poemas angustiados sobre o amor que ela não tem, em minha amiga que batalha por seu casamento. Pesemos em nós, em nossos pensamentos.4 Teorias sobre os nossos sentimentos devem provar do variado cardápio de nossa culturas de nossa história.

Alguns afirmam que toda produção de um saber gera um não-saber.5 Acrescentemos também um para-saber. Conhecemos então nossos avessos. Uma construção teórica sobre A paixão e outros termos estabeleceria as relações entre eles, talvez hierarquias. Ao proclamar a superioridade da paixão entre os elementos do drama faz-se uma escolha fundadora do ser humano. Ao escolher O Desejo como objeto privilegiado, as construções teóricas lançam uma pedra fundamental. Entretanto, as moradias teóricas são feitas

3. Ver Michel Foucault. A História da Sexualidade, vol.1 Ed.Graal, 3a. ed., Rio de Janeiro, 1980,

4. Alusão ao trabalho teórico de G.Bachelard. Ver por exemplo,

L’Engagement Rationaliste. Presses Universitaires de France, Paris, 1972.

5. Ver por exemplo H-G. Gadamer. Reason in the Age of Science. The MIT Press, Cambridge, Mass., 1982, pp 104·7

27

de éter, vivem por um triz6. A analogia da construção não se inspira na construção civil mas em uma geometria espacial onda em cima e embaixo se confundem. É uma construção do universo que cria seus para-universos, - tudo continua a existir em muitas e simultâneas dimensões.

Brincando, brincando, a gente pensa que chamar a qualquer coisa de engodo é lhe designar uma existência e lugar nesse e no parauniverso. Fica fundada a pessoa-paixão. As outras lhe rendem vassalagem. Eu cismo sobre as historinhas que já ouvi. Giordano Bruno enfrentando a fogueira por amor as suas idéias onde está a pessoa-trabalho, -arte, -amor, -ciência, - religião? Dizer, como minha amiga, que o amor é um grande engodo tem como conseqüência reconhecer que todas essas categorias são em si grandes engodos. E, entretanto, é através delas, com elas que vivemos. Como dizer qual prevalece? Qual é o maior/menor engodo?

Se determinadas visões, hoje, privilegiam a paixão como mais verdadeira que o amor, .ou que a razão, isto se deverá a um tanto de razões que não pretendo perseguir aqui. Da ênfase de uma biologia evolutiva na atividade sexual às vicissitudes da sociedade industrial-moderna, estende-se um vasto campo para se tentar entender porque o Desejo se tornou tão relevante em nossos discursos. Mas eu pretendo tomar outra via para sair desse artigo.

Repetindo concordo com minha amiga que o amor é um grande engodo. Mas penso o mesmo da paixão, do desejo, da própria filosofia e da ciência. “Como diria Bachelard, o conhecimento científico é sempre a reforma de uma ilusão. Isto não quer, evidentemente, dizer que sejam puras mentiras, sem consequências para o nosso mundo e vida. Vivemos de tais engodos em nada me leva a concluir que, falando de uma maneira absoluta, no plano geral de nossas vidas, um seja maior que o outro. Tentamos contato com nosso universo paralelo. Ali se encontram as nossas negações: para-desejo, para-amor, para-paixões. Ali eles estão descritos pelo avesso, em seu brilho ilusório. Ali está inscrita, nos buracos negros do universo a de nossa consciência, amoral dessa fábula: Tudo é ilusão, o resto é ilusão.

6 . Alusão à música Boatriz de Chico Buarque de Holanda e Milton Nascimento.

Aliás, quero crer que o leitor não se deixou enganar até agora pelos aspectos mundanos deste artigo. Minha intenção não é, desde o inicio dar lugar a uma discussão vazia entra o amor e paixão.

O que desejo frisar é que não podemos tomar estas categorias como reais em si mesmas. Ao contrário, a sua realidade só se encontra nas práticas . dos sujeitos sociais.

28

DES-RAZÕES DE GRUPOS OPERANDO EM UMA INSTITUIÇÃO PSIQUIÁTRICA

Maria Regina Durães de Godoy Almeida *

Este recorte pretende ser um momento de reflexão sobre o trabalho do qual participei durante um ano, em um Hospital Psiquiátrico de Belo Horizonte. o H.G.V. ( Hospital Galba Veloso).

Em primeiro lugar devo caracterizar esta organização como uma instituição previdenciária, por onde todos aqueles que ingressam na procura de um tratamento psiquiátrico, via INAMPS, devem passar. O Hospital possui um Posto de Urgência Psiquiátrico (PUP). algumas unidades de triagem onde ficam os pacientes até serem deslocados para outro Hospital da rede privada conveniada com o INAMPS, ou mesmo para as enfermarias existentes dentro do H.G.V. Para isto, esta Instituição que é um dos Hospitais da FHEMIG (fundação Hospitalar de Minas Gerais órgão ligado á Secretaria de Saúde do Estado), conta com um quadro de pessoa constituído por psiquiatras, enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, psicólogos e atendentes hospitalares.

O nosso trabalho foi solicitado pelo Diretor da Unidade que havia recentemente assumido o cargo imbuído do espírito de democratização, tal como ele próprio relata em um certo momento, referindo-se ao projeto que ali fora discutido e implantado. O Projeto G.O (Grupo Operativo) deve ser uma estratégia para democratizar o hospital psiquiátrico, a instituição “psi” como um todo e com a sociedade. O mesmo Projeto sugere formar os técnicos de nível universitário em G.O., tendo como um dos objetivos iniciar um processo de integração de todo o hospital através de aulas teóricas e serviço. para tanto foram contratados seis profissionais com práticas de trabalhos em grupos, que se encontraram no H.G.V. diante da encomenda de G.O., formulada pelo Diretor.

Duas de nós possamos começar pela escuta da demanda do sistema cliente que seria formado inicialmente por P.N.U. (profissionais de nível universitário). De seu lado, o Diretor

* Professora assistente do Departamento de Psicologia- UFMG área de Psicologia Social

29

iniciou o processo convidando-nos, a falar sobre Grupo Operativo, em seminário promovido pelo mesmo.

Seminário se transformou no local onde a encomenda do Diretor foi colocada para todos os funcionários do Hospital, e onde podemos ouvir o que demandavam .

O projeto que no seu original seria destinado apenas aos técnicos de nível universitária, foi ali revertido para atender a todos que, desejavam falar sobre, os problemas do Hospital, da Saúde Mental, da loucura, de suas experiências na instituição e ainda se formarem em G.O. Aí a heterogeneidade seria sinal de riqueza, segundo a teoria que nos ensinara Pichon Riviére. Os grupos se formariam não apenas de técnicos universitários, mas contariam também com os auxiliares de serviços e atendentes. Para a diretoria o objetivo, que anteriormente era o de formação de pessoal técnico em G.O., passou a ser o de Grupos de Formação através de G.O.

Foram formados seis sub-grupos com cerca de quinze participantes cada, coordenados por dois supervisares.

Trabalhamos assim durante todo o tempo, reunindo nos em grupos, por três horas semanais, mesclando teoria, prática e supervisão de, experiências emergentes que se operavam no H.G.V. Nós da equipe de coordenadores, por nossa vez, éramos supervisionados pelo psicanalista Célio Garcia.

De um lado, havia uma. encomenda do Diretor no intuito de, em última instância, efetivar uma proposta política que passasse pela Formação em G.O Por outro lado, um desejo, uma demanda dos diversos setores do H.A.V. de participar de uma experiência grupal, repensar o atendimento assistencial e o lugar e papel que cada um deles ocupava no instituição. Estávamos diante de um projeto político que ao mesmo tempo demandava uma formação e uma supervisão que, sabíamos, havia de ser construída e analisada ali.

O enfoque utilizado foi o grupalista: convivemos com problemas como o de Grupo de Formação e as transversalidades institucionais que passavam.o grupo. Por exemplo a formação de técnicos ou terapeutas foi debatida, o que sempre ocorre quando se trata de Grupos de Formação em Instituições Públicas.

Em muitos casos o coordenador ou, supervisor, aparece, como a pessoa mais bem formada e experiente, que vem oferecer um modelo de trabalho. Entretanto, estamos diante de uma instituição pública, cujo único modelo é o de atendimento médico psiquiátrico, que não se presta ao atendimento à comunidade.

30

Não há instituições de formação que forneçam modelos ou técnicas capazes de equipar e formar pessoal para atendimento psicoterapêutico de uma comunidade. Os subsídios são trazidos da prática consultorial, que nem sempre se adequa e serve para analisar e responder as demandas que se originam na assistência publica, onde tais demandas são desde as de ordem Social até psíquicas.

Tratando-se de uma Instituição Psiquiátrica, o atendimento que ali se faz não pode ser pensado apenas nos moldes privados consultorias. Tem–se que privilegiar a dimensão institucional, começando da análise do próprio nome: Instituição Psiquiátrica.

E a partir deste corpo teórico conceitual que refletia a prática:

- o Grupo como um lugar atravessado pelas angústias, desejos e pelo projeto político – as relações de poder

- o Grupo como um lugar de tratamento - transformação – da própria instituição, ao mesmo tempo que atende aos pacientes.

- o Grupo onde aparecem os analisadores – a análise a fazem os analisadores (Saidón) - o analisador que implica o analista. - o Grupo por onde ocorre a transferência individual mas também e fundamentalmente uma transferência institucional.

Daí a necessidade da análise da implicação do ‘como' o analista, ou o coordenador, está inserido no trabalho de formação, à ser realizada através da contra-transferência institucional. Isto significa escutar e analisar, a própria instituição de análise – o grupo aquilo que esta institui. Observei isto fazendo a análise da implicação política e ao mesmo tempo, histórica da realidade presente da Instituição psiquiátrica e das transversalidades que surgem nos Grupo, muitas vezes via analisadores.

Nesta direção, tentarei transcrever três exemplos de experiências com grupos que emergiram no hospital, onde verificamos a dimensão institucional, política e assistencial.

Por diversas vezes os participantes, do G.O. tentaram diferenciar e explicitar as três maneiras de atendimento grupal que acontecia no hospital. O que marcava a diferença entre as formas de funcionamento dos grupos (Grupo, Fórum, Assembléia) tomava como referência o fato do grupo ter ou não algum efeito terapêutico.

Assim, a primeira frase do projeto de atendimento às famílias dos pacientes, montado pelas assistentes sociais é a seguinte: este não pretende ser um grupo terapêutico. Estariam elas negando o valor terapêutica dos grupos? Ou elas não se achavam autorizadas para este tipo de atendimento? Ou, ainda,

31

estariam se dirigindo ao Grupo Operativo do qual participavam e perguntando aos coordenadores que tipo de grupo era aquele?

No momento, levantei a hipótese de que isto ocorre quando estas práticas se instauram como ameaçadoras no marco institucional.

No H.G.V., encontramos três denominações para as formas de atendimento grupal: fórum, assembléia e grupo.

Fórum: Este foi criado inicialmente com o objetivo de escutar as expectativas dos pacientes em relação ao atendimento previdenciário - INAMPS. Avaliado este primeiro momento, mudou-se o objetivo e se transformou o fórum em um grupo de recepção e ao mesmo tempo de diagnóstico, Era realizado pela equipe do PUP (médicos, assistentes Sociais, enfermeiros e atendentes) e diversificava na forma de atendimento aos pacientes. Algumas equipes trabalhavam com grupos maiores com todos os presentes na sala de espera (pacientes e familiares).Outras com grupos menores (entre 8 e 10 participantes) onde a decisão da internação ou não, era tomada no próprio grupo. Este tipo foi

denominado grupo de diagnóstico.

Assembléia: com objetivo definido de manter as regras as normas das organização hospitalar, a assembléia apareceu com a função de organizar as enfermarias, seja de triagem ou de média permanência onde estas eram realizadas (Elas eram constituídas pela equipe e por todos os pacientes quê estavam na ala no dia de sua realização), A equipe coordenadora tinha um controle total das decisões. Ali não era permitida a escuta do delírio. Os pacientes orientados eram utilizados como agentes de controle para a normatização. Estas constatações podem Ser identificadas em algumas falas, tais como, A assembléia tem ajudado a discutir as agitações nas alas e como os pacientes e devem proceder diante destas. Eles discutem e depois opinam sobre as atitudes a tomar diante destes pacientes. Eles se protegem e tentam proteger os outros (pacientes e atendentes) dos mais agitados. A argumentação era que só daquela maneira haveria uma participação dos pacientes na organização na assembléia, a equipe pode escutar-lhes as Reivindicações e decidir o que era considerado o melhor para eles.

De outro lado, a assembléia era para alguns membros de equipe um lugar de atendimento. Por exemplo, o que nos relata uma terapeuta ocupacional: - Nas assembléias, na medida que o paciente está ali falando, mesmo queixando das más condições das alas, ele está sendo atendido. Disse-nos ainda.:

- Quando fazemos uma assembléia a gente coloca os pacientes

32

ali, sem objetivo comum. Acontece que a medida que eles vão participando destas assembléias eles começam a falar de nós, começam a se organizar, o que no início era desorganizado. Sinto que estamos atendendo, que nós somos mediadores, facilitadores, para que os pacientes possam falar do que quiserem. Esta organização é uma necessidade deles, nós não temos uma direção, fica muito mais para eles resolverem.

Grupo: o trabalho com grupo, para que participavam do G.O., era algo que tinha a ver com o número de participantes, com o querer ser atendido em grupo, com a continuidade no atendimento - mais sistemático. O grupo era também o lugar onde acontecia uma relação transferência pode ser trabalhada.

A transferência passou a ser o ponto central para o trabalho com os grupos. Nos grupos de Formação, seus participantes explicitavam que a transferência era diferente em cada tipo de reunião, assembléia ou grupo. A transferência era o que daria o 'enquadre', ou seja, o que definiria o que se realizava era grupo ou não. Por exemplo: - Na triagem não haveria enquadre para grupo – não existe uma situação de grupo – não há condições de haver uma concentração de violência para o coordenador. A violência é mais dispersa. O mesmo ocorre a transferência.

Vejam, a definição tenta ser construída pela diferenciação dos outros grupos que são realizados no hospital. Desta maneira, dizem que o grupo é mais terapêutico. Que na assembléia o coordenador não precisa ser um técnico e a coordenação é menos rigorosa.

Há uma grande preocupação em como coordenar um grupo. Quais são as técnicas? O que fazer? E como se existisse algo de mágico, um saber sobre o grupo que é imaginado e não ocorre na prática.

FÓRUM - ASSEMBLÉIA - GRUPO. O fórum acontecia no PUP, no momento da internação. A assembléia nas enfermarias de média permanência. E o grupo? Em algum outro lugar, as vezes no PUP, com caráter de decisão sobre a internação, as vezes no auditório ou em alguma outra sala ou enfermaria.

Os atendimentos em grupos de pacientes, egressos e internos, continuavam ocorrendo no H.G.V., mas era. difícil relatar como se realizava o grupo, o que o tomava um instrumento terapêutico. Não havia apenas uma razão que pudesse definir o grupo, mas quem sabe razões ou des-razões...

33

Perguntava-me o que terá instituído estes grupos? Em um de nossos encontros uma assistente social nos disse: - Às vezes é preciso ouvir os pacientes com seu próprio enquadre, tal como ele faz, e não coloca-lo em nosso enquadre.O hospital psiquiátrico é feito para a internação. O paciente não sabe o que e terapia, este é um enquadre nosso de técnico.

Continuava no ar a indagação de ‘como funciona um grupo’.Ora, bem sabemos ou não sabemos (sic?) o que é estar em grupo.Os que participavam do G.O. também sabiam... Desde sempre tivemos experiências com grupos. Seja nas nossas reuniões de trabalho, nas familiares, nos grupos de amigos e tantas outras que já experenciamos.

Entretanto a função que nos demandava era a de técnica, a do saber sobre o grupo. Lembro-me de uma vez um comentário que o Célio Garcia fez, sobre esta demanda que ocorria no nosso trabalho. Ele relatou:-Não vamos recusar esta demanda... vamos considerar esta demanda como sendo simplesmente um dos aspecto dos discurso que chega até nós. Além da demanda que faz de nós (psicólogos ou médicos) especialistas ou técnicos, vamos detectar outra fala. Esta tem a ver com o Desejo. Ainda neste mesmo comentário, o Célio nos lembra: -A demanda que eles trazem representa o discurso de onde temos que partir, cabendo a nós o lugar de’ detentores de um suposto saber ‘Verdade que não acreditamos que existia este suposto saber sobre os grupos, nem sabemos como operar com os grupos... no sentido que não há operacionalização em se tratando de grupos. E foi por esta trilha que tentei caminhar, vendo o grupo como um dispositivo analítico, por onde perpassaram os desejos, a dimensão política, a institucional. Essencialmente ocupei o lugar da escuta. Ali onde o próprio trabalho com grupo foi um analisador, enquanto revelou as fraturas profissionais, ou as lutas entre as diferentes camadas de profissionais de saúde (médicos x atendentes, médicos x psicólogos, médicos e para-médicos.) Fraturas que, muitas vezes, apareceram como uma diferenciação de racionalidades científicas (psicanalistas, organistas, fenomenológicas e outras). O grupo foi também o lugar onde me sentia levada a pensar nos meus referenciais teóricos e práticos: Análise institucional.

34

a Psicanálise, o Grupo operativo, e a minha prática enquanto professora da UFMG.

E o que fica? Aqui, re-cortes daquela experiência.

OBS: Foram utilizados para consultas documentos internos do H.G.V., correspondência do Dr. Célio Garcia ao Dr. Armando Bauleo (Itália): 'texto sobre Supervisão e Formação em Instituições Públicas de Osvaldo Saidon e anotações pessoais.

35

TRANSVERSOS DO SOCIAL E ALQUIMIAS DA PRÁTICA

EM PSICOSSOCIOLOGIA 1 .

Marília Novais da Mata Machado*

Esta á a segunda vez que venho a Ribeirão Preto como membro da equipe de Psicologia Social da UFMG. Aproximadamente há quinze anos atrás, juntamente com outros colegas, que relatamos o que vínhamos fazendo em Belo Horizonte. Naquela ocasião veio também Célio Garcia., o chefe do grupo de Psicologia Social, em torno de quem alunos, jovens auxiliares de ensino e professores horistas se reuniram a partir de 1965, formando uma equipe interdisciplinar bastante dinâmica. O grupo participava ativamente não apenas de atividades de magistério, como também atendia a encomendas de trabalho junto à comunidade externa à universidade.

Inicialmente nos cursos de Ciências Sociais e Psicologia, a equipe trabalhava em sala de aula ensinando, traduzindo e escrevendo texto montando repetições de experimentos de Psicologia Social já consagrados nos Estados Unidos e na Argentina, construindo escalas para medida de atitudes, fazendo análises da conteúdo, realizando treinamentos mentais, sessões de psicodrama e dinâmica de grupo.

Programas de curso, de aproximadamente um ano e meio, costumavam iniciar-se com uma parte de prática (laboratório, construção de escalas de atitude, análise do conteúdo de material qualitativo) passavam por uma parte teórica (história da Psicologia Social; Psicologia Social e personalidade -incluindo a tese freudiana,' metodologia - incluindo análise multivariacional e perspectiva estruturalista) e desembocavam na apresentação de trabalhos extra-classe realizados durante o ano de estudos. À medida que os cursos prosseguiam, alunos especialmente interessados na matéria integravam-se à equipe do setor de Psicologia Social. Pouco a pouco, diferentes cursos da UFMG solicitaram também nossos trabalhos: Pedagogia, Odontologia e outros.

Aos sábados a equipe toda se reunia; trocávamos nossas leituras, estudos, relatos de pesquisa e, sobretudo, repartíamo-nos em equipes pequenas de trabalho para atendimento de demandas do mercado, Realizávamos, na época, intervenções psicossociológicas, seminários de formação e sensibilização, dinâmica de grupo, pesquisas de opinião e atitudes, levantamentos. O andamento de cada sub-equipe era checado nas reuniões semanais, Nossos clientes eram empresas, hospitais, congregações religiosas, escolas,

36

bancos, penitenciárias e organizações governamentais de saúde, Tal como no forno dos alquimistas, trabalho e estudo, teoria e prática eram reunidos.

Tínhamos uma pequena renda advinda dos trabalhos: parte do que cada um recebia ficava em conta conjunta. Além disso, tínhamos convênio com a Embaixada. Francesa através do qual obtínhamos livro, financiamento da vinda de um professor francês por ano e ida para França de um bolsista por ano. Desta forma, aprendemos muito com Max Pagês, André Levy , Roger e Georges Lapassade. A venda de cursos, estágios de treinamento e apostilas destes conhecidos professores alimentava nossa conta bancária que, por sua vez, pagava serviços de secretaria, monitoria e outros.

O grupo era, do ponto de vista financeiro, quase autônomo. Do ponto de vista de organização, embora centralizado em torno de Célio Garcia, balançava entre tentativas de organização burocratizada e manutenção de uma estrutura permissiva. Sempre ficou ligado ao Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia.

Em 1987, o chamado Setor de Psicologia Social, "com experiência de prestação de serviços, fundou o CEPSA (Centro de Psicologia Social Aplicada), dedicado a pesquisa e aplicação; as atividades de magistério, que teriam ficado ligadas apenas ao setor, continuaram entretanto a atravessar as atividades práticas; organização era informal, não- estruturada.

Em 1968 houve uma tentativa de formalização/estruturação com a fundação do Centro de Pesquisas em Ciências Sociais. Tal centro aparece também, nos documentos, com os nomes de Centro de Pesquisa em Psicologia e Sociologia e Centro de pesquisas Psicossociológicas. Ele representou quase que a partição teoria/prática. Ganhou estatuto e pereceu. Resultaram dele uma autorização do Diretor da FAFI, Pedro Bessa, para aceitar propostas de serviços, o que já vinha sendo feito informalmente, lembranças das acaloradas reuniões em uma fazenda na Serra do Cipó e o projeto de um Mestrado em Psicologia Social e Sociologia.

Tudo Isso foi uma experiência que deu certo, enquanto durou. Da mesma forma que, como hoje, analiso minha relação com a instituição que foi aquele grupo, outras cem pessoas poderiam fazer o mesmo, de forma diferentes. Estão agora nas universidades brasileiras e estrangeiras lecionando diversos cursos, estão servindo nas secretarias do governo estadual, nos órgãos federais, nas burocracias em geral e na prática psicanalítica; estão treinadas, profissionalizadas. Foi este o objetivo.

O CEPSA também morreu. O Setor de Psicologia Social,

37

entretanto, como o alquimista que aquece, cozinha , esfria e reaquece a sua matéria meses e anos a fio, continuou seu trabalho de transformação e criação, ora se decompondo, ora se reconstituindo .

As divisões sociais atravessaram aquele grupo, como de resto, atravessam qualquer outro. Por exemplo, apareceram hierarquias formais e informais e as tarefas eram distribuídas segundo sexo, antiguidade e posição no grupo.

As decisões tomadas dentro da equipe eram às vezes livres, em grande parte autoritárias.

Os homens eram os chefes das mini-equipes; eram possessivos ciumentos com relação às mulheres. Elas, por sua vez, tinham suas estratégias femininas, entre as quais, esconder deles detalhes de trabalhos. Não tínhamos condições de analisar nossas diferenças, na época.

As hierarquias externas ao grupo também atravessavam nossos trabalhos. Por exemplo, foi montada uma equipe só-homens para atender a demanda da Escola da Preparação Cadetes do Ar, de Barbacena. A equipe, atuando dentro do modelo de grupo de sensibilização, tentou estabelecer na Escola a conhecida regra lewiniana: não há hierarquias no grupo. Imediatamente o superior da Escola de Cadetes telefonou para o Diretor da Faculdade perguntando o que aquela meninada estava fazendo lá e se era possível mandar um psicólogo. O diretor contornou a situação e a equipe prosseguiu sem maiores atropelos.

Naquela ocasião, nutríamo-nos dos trabalhos mudança Planejada norte-americanos, conduzidos pelos discípulos de Kurt Lewin e fomos também fortemente influenciados pela equipe francesa da ARIP. Usávamos ao mesmo tempo o referencial psicanalítico, tomado emprestado da ARIP, e dos trabalhos ingleses de Bion e Elliott Jaques. Célio Garcia, por sua vez, continuou sempre com sua prática de terapeuta psicanalista, o que refletiu bastante sobre o grupo.

Nossas relações com a Faculdade de Filosofia e, depois, com a FAFICH eram boas; éramos bem vistos. De uma pequena sala no segundo andar, mudamo-nos para um conjunto de salas com telefone no subsolo. Aí recebemos em 1968 a visita de Leon Festinges e outros norte-americanos. Mas foi ai também que fomos impedidos de trabalhar á noite devido à determinação do DOPS-MG, que considerava o subsolo um antro de subversivos e preferia ver trancada a área ao entardecer; ai também fomos informados que o diretor da FAFI havia sido cassado pelo governo militar e que a faculdade seria dirigida por um interventor.

O milagre brasileiro levou parte da equipe a se reunir, em 1972

38

em Paris. Acompanhamos curso e seminários de Michel Foucault, tivemos entrevistas com Robert Pagés, Michel Pêcheux. René Lourau e André Levy, jantamos na casa de Roger Lambert e visitamos os laboratórios da Sorbonne. Cruzamos com Pierre Weil, igualmente em visita a Paris. Pierre também lecionava psicologia social na UFMG. Ensinara-nos o psicodrama analítico; com ele enveredamo-nos no campo do desenvolvimento organizacional.

George lapassade veio em modelos de 1972, quando a repressão política, ou melhor, á Lola, como falávamos e escrevíamos, chegava perto.

Lapassade foi desagradável, inconveniente, chato, interessante, espaçoso e rico. Com ele, o grupo se treinou em socioanálise, apreendeu a análise institucional, trabalhou demais e efetivou a sua partição: brancos e pretos. Branca, a elite que ia estudar em Paris, detinha a conta bancaria, as chefias e decidia as diferentes questões. Preta a ralé instituinte que passava a se autogestionar, visitava os terreiros de macumba e levava a autogestão á Universidade Católica, FUMEC, DA-FAFICH, DCE, escolas, centros, hospitais e cursos. Pretos também os

homossexuais que se liberavam.

O grupo de Psicologia Social se separou em dois grupos. Para o alquimista, a essência de sua arte está justamente na separação e na solução, na composição e na solidificação. Em um estado Inicial, as forças opostas estão em luta entre si, mas o alquimista pesquisa o processo para chegar á unidade dos elementos. O ouro alquímico do estado final só será obtido após prévia deterioração.

Assim, transformamo-nos em opostos: brancos e pretos, sol e lua, corpo e alma, consciente e inconsciente, luz e sombra.

Ao ver nosso laboratório experimental dividido um espelho de visão unilateral, George lapassade berrou: coisa de polícia. Os artefatos do laboratório estão hoje no Museu da Psicologia Social.

Lapassade acusou-nos de auto-repressão. como bom analista institucional, provocou-nos. Fazendo de conta que não sabia por que estávamos reunidos em uma casa discreta, longe da universidade, perguntou-nos por que não íamos juntos levar a análise até a favela. Silêncio. Dentro do Departamento de Psicologia e na FAFICH Já éramos discriminados. O Departamento de Sociologia pedira-nos as salas do subsolo. Acomodamo-nos no quinto andar Lapassade gostou muito, pois o banheiro tinha o mesmo número do banheiro de Montreal, onde ele realizara uma análise alvoroçante.

39

Como os primeiros alquimistas, estávamos marcados e, como eles, formos maltratados, Alguns mestres da ciência alquímica foram assediados pelos monarcas, presos, torturados e executados. Algumas de nossas casas passaram a ser vigiadas pela polícia, outras revistadas, alguns de nós éramos chamados para depor nos órgãos policiais, éramos investigados. Sobre mim pesou uma desagradável e morosa investigação policial que quase envolveu parte da equipe de psicologia Social. Queriam saber quem me enviara documentação sobre grupos clandestinos no Brasil. Eu mesma o fizera, de Paris. Finalmente, descobrimos que aos sábados sentava-se conosco, em nossas reuniões, o informante policial que já fora um amigo nosso. Idalísio morreu no Araguaia, Edna entrou na clandestinidade e Hélvia fez de sua vida uma fuga constante da polícia,

Lapassade nos ajudou a ver que a Reforma Universitária proposta pelo governo em 1968, .embora sob forma de Decreto-lei, era deselitizante e criava uma universidade mais democrática do que fora até então. Analisamos juntos o projeto governamental. Alguns dos membros do grupo de Psicologia Social já vinham trabalhando nas equipes do ICB (instituto de Ciências Biológicas) e da Escola de Medicina que implantavam na UFMG a Reforma Universitária. Nos anos que se seguiram o pessoal da Psicologia Social colaborou intensamente com as equipes de implantação da Reforma nas Escolas de Biblioteconomia e Veterinária, na Faculdade de Direito e no ICEX (Instituto de Ciências Exatas). Faziam diagnósticos da situação de ensino, participavam da formulação de projetos, auxiliavam nas mudanças planejadas.

O setor de Psicologia Social passou assim a ter contatos diretos com a administração central da universidade, o que lhe permitiu contornar os embates vindos da Departamento de Psicologia. Para trabalharem nos NAPs (Núcleos de Assessoramento Pedagógico), que implantavam a reforma universitária, os professores de Psicologia Social conquistaram o Regime de Tempo Integral e Dedicação Exclusiva, pedido anualmente e negado sistematicamente pela Câmara Departamental.

O Departamento cada vez mais tentava controlar as atividades do setor de Social, já então considerado sumariamente subversivo. Tirou-nos do quinto andar e nos colocou no segundo, junto à administração, numa enorme sala de porta de vidro. Desfilávamos diariamente pelo corredor do Departamento e nos encontrávamos naquela vitrine abarrotada de arquivos, armários e mesas, brancos e pretos a se trombarem, sem a menor condição de trabalho. Muitas brigas ocorreram dentro do grupo. Era difícil conciliar os opostos, ainda sem re-união.

40

Leon Festinger deixara-nos contatos com a Ford Foundation e ainda tínhamos o convênio com a Embaixada Francesa. Ao Departamento de Psicologia não interessou a vinda de Michel Foucault. O convênio foi emprestado ao Departamento de Filosofia, que trouxe Foucault ao Brasil. Usando os dois canais - Ford e Embaixada Francesa - seis brancos saíram

concomitantemente para cursos no exterior: Bélgica, França e Estados Unidos. Ao mesmo tempo, voltava o primeiro bolsista do convênio com a Embaixada Francesa, Júlio.

Os que ficaram tiveram que enfrentar batalhas homéricas, não apenas com a censura política, mas também com o Departamento de Psicologia e diretorias da FAFICH. Foram chamados de melancia - Verde por fora e vermelha por dentro. O jeito foi beber ainda mais, fumar quando possível e pirar.

Mesmo assim, os trabalhos nos NAPs prosseguiram bem, o Curso de Psicologia fez uma bela reforma curricular, com grande participação das melancias. Os setores do Departamento, incluindo o Setor de Psicologia Social, foram reconhecidos para fins administrativos. Assim, o grupo se segurou, conquistou novas acomodações fora do prédio principal da FAFICH e sobreviveu. Ainda recebia demandas de pesquisa, mais não mais de intervenções psicológicas e dinâmica de grupo. O Departamento pouco a pouco cortou as monitorias e cortou colaboradores, sem permitir substituições. Célio Garcia discretamente, após um ano nos Estados Unidos, moveu-se, para o Departamento de Filosofia, que o recebeu de braços abertos. Legou-nos uma biblioteca . Paulinho e Antônio Augusto foram para o Departamento de Sociologia. Rosa e Maria Emilia decidiram ficar na França. José Renato e eu recebemos carta ordenando-nos que voltássemos.

A abertura política encontrou um Setor de Psicologia Social resistente, ecológico, analítico, parcialmente macrobiótico, entendido em psicologia comunitária, mas muito reduzido. O espaço no magistério foi aumentado, graças ao novo currículo e ao bom afinamento com o corpo estudantil. A maioria dos professores era de colaboradores. As demandas do mercado de trabalho quase desapareceram: não aceitamos mais encomendas de dinâmica de grupo nos moldes de ajustamento e adaptação e a poucos interessava a socioanálise. As salas do setor, na época, abrigaram então um curso de gafieira.

Em 1980, graças ás conquistas da greve da professores universitários, os colaboradores entraram para o quadro permanente da Universidade. Apenas menos um problema. O

41

Departamento de Psicologia continuou sua murrinha de perseguição. A Câmara fez que não entendeu por que Bete participou de confecção de livros didáticos para comunidades rurais. Pararam-lhe um processo porque não se continham de rir quando liam os títulos dos livros (O Milho. O Feijão, o Arroz. A Mandioca), condizentes com o cotidiano das comunidades.

Porém; algumas teses foram defendidas e mais gente saiu para doutoramento fora. Os que ficavam davam aulas e mais aulas. Desapareceu a inspiração (e o tempo) para pesquisar. Romu decidiu sair e dedicar-se inteiramente à macrobiótica. Quatro anos depois ainda não conseguimos substituí-lo. Desapareceram giz e apagadores das salas de aula - concretamente. Começaram a faltar carteiras para todos os estudantes.

Internamente o Setor de Psicologia Social passou a se autogestionar. As chefias eram mensais, decididas por sorteio e tinham a finalidade apenas de lidar formalmente com o Departamento. Mesmo assim concedemo-nos um secretário, conseguindo junto à diretoria da FAFICH. O Departamento protestou (eles não tem direito... São apenas um setor... Se todo setor quisesse... Os argumentos são sempre legalistas).

Mudou o diretor, o outro tirou-nos o secretário, mandou-nos avisar que a água do nosso prédio estava contaminada, tirou.nos uma sala, tirou-nos o acesso ao telefone e ao banheiro, tirou-nos a limpeza é se empenhou em regularizar a situação de Maria Emilia, que teve Que exonerar às vésperas de defender - brilhantemente, nas palavras do Prof. André Levy – a sua tese de doutoramento na França. Não tem importância, sabemos varrer, queimar lixo, para que servem telefone, banheiro, papel, borracha, lápis, giz. apagador e cursos no exterior? Finalmente, o diretor “permitiu·nos" mudar. Estamos mudando para dentro do prédio, irmã e civilizadamente, próximos aos colegas da Psicologia, decentemente instalados. Mas, nesse intervalo, o Departamento se partiu. Surgiu uma coisa que se quis chamar Departamento de Estudos Dialéticos.

Descobrimo-nos também dialéticos, matamos o setor, particularizamo-nos; dissolvidos, vivemos novamente os opostos; quem quis levantou sua bandeira branca para os estudos dialéticos, juntou-se a eles, com eles bolou outra coisa chamada Departamento de Psicanálise e psicossociologia.

Estamos batalhando novamente, voltamos a escrever, pesquisar, gentes voltaram de estudos fora, mais gente saiu para estudar, apareceram muitas demandas por intervenção, socioanálise e grupo operativo, embora ainda sem grandes

42

remunerações; fundamos uma revista, iniciamos um internato rural e uma de nós, conquistou a chefia do Departamento de psicologia, acreditem. E isso, sem água, telefone, nem banheiro.

Ecologicamente discutimos a vinda a Ribeirão Preto no sítio que Júlio tem nos Macacos. Levamos as crianças e os meninos infernizaram o Passeio das meninas. Para matar saudades, bebi muito ficamos sem decidir se, em Minas Gerais, é o milho ou feijão o mais importante, se, na, terra o vegetal ou o mineral. Mas abandonamos as comparações e cá estamos.

[pic]

[pic]

43

HISTÓRIA SOCIAL E LEITURA DE PROCESSOS DE GRUPO

Regina Helena de Freiras campos *

A questão da relação entre o estudo da História Social e a leitura dos processos de grupo pode ser colocada a partir da famosa terceira tese de Marx sobre Feuerbach, aquela que diz que os homens, que são constituídos em e por circunstâncias históricas concretas, são os mesmos que transformam estas mesmas circunstâncias, A contradição, expressa por esta tese, tem estado presente e tem sido pensada de maneiras diversas nos estudos que lidam coma interpretação de ideologia e da cultura.

Duas tendências podem ser acompanhadas neste tipo de estudo: a que privilegia a ação dos homens enquanto determinada pelas estruturas sociais e econômicas, e a que enfatiza o papel dos sujeitos como produtores ativos de sua própria história. Penso que a tarefa de deslindar o sentido das praticas culturais que constituem parte significativa da experiência dos grupos sociais dificilmente pode ser satisfatoriamente encaminhada sem o recurso á história social destes grupos.

Em minha experiência como historiadora da psicologia, e em minha experiência de intervenção psicossociológica na escola, pude observar, em diferentes momentos, a maneira como o estudo da história dos grupos com os quais se trabalha ilumina a compreensão do sentido de suas práticas. É através deste estudo que se pode compreender a trajetória do grupo em relação à dinâmica da contradição instituído-instituinte apontada por Marx.

Estudando as condições sócio-econômicas e culturais que determinaram a entrada em cena da Psicologia Educacional como disciplina científica e foco de preocupação de educadores, em Minas Gerais, nos anos 20 e 30, impressionou-me a poderosa articulação então montada entre interesses de classe, aparelho de estado e constituição de espaço para o desenvolvimento daquela área de conhecimento.

Com efeito, as demandas pelo trabalho de psicólogos no Estado, naquele período se deveram basicamente à conjugação de fatores ligados à expansão do sistema público de ensino primário - ideal das massas populares recém-urbanizadas e das elites políticas interessadas na implantação de seu projeto industrial - e aos problemas que esta expansão gerava .

* Professora Adjunto do Departamento de Psicologia - UFMG

44

Problemas de aprendizagem nas camadas populares então admitidas no interior do sistema escolar, problemas de descontinuidade entre sua experiência da socialização primário na família e a experiência de socialização secundária na escola, problemas políticos ligados legitimação da seletividade do sistema escolar.

A Psicologia Educacional, ao elaborar os conceitos de inteligência e aptidão como atributos naturais, hereditários, e ao trabalhar com os problemas de aprendizagem dentro da dicotomia normal excepcional, constituiu-se rapidamente em forte instrumento de legitimação para a ideologia sobre a qual se estruturava a escola pública: oportunidades iguais para todos/ a cada um conforme suas próprias habilidades e dons. A transparência desta ideologia para os grupos sociais envolvidos no processo histórico então em curso tornava-se possível na medida em que as estruturas institucionais então montadas passaram efetivamente a produzir as chamadas diferenças individuais, que os psicólogos eram chamados a registrar.

Entretanto, logo a hipótese da hereditariedade seria questionada, e a hipótese da determinação predominante do ambiente sobre as possibilidades do sujeito começaria a se afirmar nas discussões dos psicólogos. A própria Helena Antipoff, responsável pela Introdução da Psicologia Educacional nas escolas públicas mineiras, e pela formação de toda uma geração de educadores preocupados com a aplicação da Psicologia à escola observou que a inteligência está longe de representar uma entidade sui-generis, independente do meio em que a criança se forma, independente da instrução e da educação (muito pelo contrário). (Antipoff; 1937). Entretanto, apesar do fato de a controvérsia hereditariedade/meio ter continuado a se desenvolver nos meios acadêmicos e científicos, o dispositivo seletivo e excludente da escola... pública mineira. continuava a' Ser construído, e além

Do mais referendado pela vulgarização da Psicologia. Há certas características estruturais do sistema público de ensino que decorrem quase que diretamente da ideologia dos dons e aptidões tidos como naturais, como por exemplo: a homogeneização das classes por nível intelectual, a ênfase no trabalho individual, a organização de Sub-grupos dentro da sala de aula por critérios derivados do êxito acadêmico.

Voltei a me encontrar com esta problemática ao orientar o trabalhada alunos em uma escola pública. da periferia de Belo Horizonte. A escola se situava na divisa entre um bairro de classe média baixa e uma favela, recebendo, assim, crianças provenientes dos dois mundos. Fomos chamados a trabalhar na escola porque as crianças de 1o ano apresentavam um índice de repetência da ordem de 70 % . Para o pessoal da escola

45

(supervisora e professoras), estávamos diante de uma população constituída em 70% por crianças excepcionais, necessitadas de cuidados de psicólogos. Verificamos rapidamente que a maior parte das crianças que apresentavam problemas de aprendizagem provinham das famílias de nível sócio econômico mais precário e que não precisavam propriamente de bons psicólogos, mas de bons professores, sensíveis à problemática da descontinuidade entre socialização primária e secundária. Diante desta situação no entanto, chamava a atenção o fato de que, por' mais esforços que fizéssemos para mudar o registro da discussão, da argumentação psicologizante - falta de prontidão para a alfabetização, problemas psicomotores, falta de concentração para uma perspectiva sócio psicológica, a argumentação do grupo-cliente era sempre calcada naquilo que um de nossos alunos chamou de registro de separação. A instituição escolar que conhecemos só opera por uma lógica: separar os bons dos maus, os inteligentes dos nem tanto; os bem comportados dos irriquietos, pois este é o seu papel na sociedade.

Cabe aqui, todavia, outra ressalva. A mesma surpresa que tive ao ver que Helena Antipoff, chamada a justificar e a referendar urna reforma de ensino que tinha tudo a ver com um projeto Político de instauração de uma certa divisão social do trabalho, projeto claramente explicitado na fala de seu criador Francisco Campos, questionava o pressupostos da hereditariedade , a mesma surpresa eu tive ao escutar de um grupo de especialistas da secretaria de educação observações como as seguintes: professoras alfabetizadoras? Mas como? Quando fui professora (final dos anos 60) dei aulas para crianças de favelas e todos meus alunos se alfabetizavam durante o primeiro ano! Esta fala se referia à recente preocupação dos especialistas educacionais do Estado, com a busca das professoras que se revelam capazes da proeza de alfabetizar as crianças, em um sistema que opera com taxas de repetência no 1o ano da ordem de 50 a 70%. E elas me levavam cartas de alunos seus, guardadas com o maior carinho, para comprovar a afirmação. Outras me diziam: Eu queria mesmo era estar na sala de aula, na regência de Classe, expressando suas frustração em participar de um sistema que progressivamente implantou uma rígida divisão do trabalho interna entre as funções de planejamento e de execução do trabalho docente, por meio inclusive de nítida distinção salarial entre o grupo de especialistas e o de professoras primárias. Assim, mesmo querendo, estas professoras não podem voltar á sala de aula. Por que? Ah, perderíamos a complementação de especialistas.

Assim fui procurando entender o jogo de contradições que veio constituindo a escola pública mineira ao longo de sua

46

história, e que constitui na mesma medida o discurso, a ideologia e as práticas daqueles que a constroem e reproduzem no cotidiano. Um jogo que supõe as categorias da hegemonia e da contra-hegemonia da dominação e da resistência. Sem que possamos distinguir com segurança.o momento da reprodução e o momento da transformação sem recorrer à história: história das ideologias e das práticas que nela se fazem e se expressam, história dos grupos sociais que a construíram tal como a. conhecemos, história dos projetos e das utopias que estes grupos produziram e vêm produzindo, em sua relação com suas condições de existência concretas.

Desta maneira fui me aproximando do estudo da história social para compreender os grupos com os quais venho trabalhando. E fui também me aproximando da 11a tese sobre Feuerbach, aquela que diz\que os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transforma-lo (Marx 1979).

BIBLIOGRAFIA

Antipoff, Helena. O Desenvolvimento Mental das Crianças de Belo Horizonte. Revista de Ensino 134-136, Belo Horizonte, jan./mar 1937.

Campos, Regina H.F. Psicologia Ideologia: um estudo da formação da Psicologia Educacional em Minas Gerais. FAE/UFMG. Belo Horizonte, 1980 mimeo.

Marx, K. & Engels, F. A Ideologia Alemã. Liv. Ed. Ciências Humanas, São Paulo, 1979.

Novais, Maria Eliane. Professora primária: mestra ou tia. Cortes: autores Associados, São Paulo, 1984.

47

OS AUDIOVISUAIS

Marcos Vieira Silva

A programação de nosso Encontro contou com um item especial: a apresentação de audiovisuais e de um filme, que mostraram temáticas pertinentes à Psicologia Social.

A seguir apresentamos um pequeno relato desses trabalhos.

Audiovisual - "MODELO DE MULHER: O MITO DE NOSSA SENHORA"

Realizado no Centro de Audiovisual da UFMG, por Maria Nazaré Dias Paes Leme Pinheiro Moreira, o audiovisual "Modelo de Mulher: o Mito de Nossa Senhora" é parte de uma pesquisa em andamento, realizada na Arquidiocese de Belo Horizonte. Aborda a questão de Nossa Senhora enquanto fantasia coletiva sobre o feminino, representação simbólica construída historicamente e propõe uma reflexão sobre a relação entre esse mito e a organização social, política e econômica, bem como a internalização do papel feminino através da ideologia religiosa.

Audiovisual - UNIVERSIDADE: PARA QUÊ? PARA QUEM?

Uma produção coletiva dos professores Marcos Vieira Silva e Antonio Aurélio O. Costa e alunas Dehonara de A. Silveira, Luciana S. Gontijo. Mônica M. Nachado F. Dias e Rosângela N. Maciel realizando a partir da experiência de trabalho desenvolvida no curso de Serviço Social da PUC/MG, onde os alunos do 3° período desenvolvem um projeto de pesquisa internação durante o semestre letivo, o projeto é desenvolvido em comunidades ou instituições, de forma interdisciplinar, acompanhado pelos professores de todas as disciplinas e tem como eixo central o tema: Estratégias de sobrevivências das classes populares .

O audiovisual foi produzido Com objetivo de fundamentar o projeto do trabalho, e através das imagens, músicas e pensamentos de vários autores, pretende colocar em discussão a relação Universidade - Sociedade.

48

.

A quem serve a Universidade? Quem tem se beneficiado com os conhecimentos que ela produz? Qual tem sido a preocupação dos professores e pesquisadores universitários com as chamadas classes populares? Os profissionais que estão sendo formados na Universidade estão preocupados com as finalidades do conhecimento que produzem?

Filme - O ROSTO DO ABANDONO

Documentário Super 8, rodado na Colônia de hansenianos São Francisco e Assis, em Bambuí/MG. Foi realizado pelos professores, Antônio Aurélio O Costa, Marcos Vieira Silva, Maria Clara Gallupo Viana e Maria Cristina S. Magalhães e por um grupo de 18 alunos do curso de Serviço Social da PUC/MG. E um dos projetos de trabalho Interdisciplinar desenvolvidos, no 3° período do curso. Discute a questão da Hanseníase como doença social, retrata a condição de vida dos internos é propõe um estágio interdisciplinar na área.

O filme retrata com bastante clareza os efeitos da internação na instituição total e os próprios internos apresentam depoimentos importante sobre suas história de vida e apresentam reivindicações de um melhor tratamento por parte do Estado e de um melhor atendimento por parte de profissionais mais bem treinados e comprometidos com seu trabalho.

Após a exibição do filme e dos audiovisuais foram realizados debates em torno das questões surgidas. As possibilidades de atuação da Psicologia foram bastante discutidas, principalmente no que diz respeito á perspectiva de que os estágios e trabalhos dos alunos dos cursos de psicologia sejam desenvolvidos através de projetos que possibilitem a prestação de serviços á comunidade e a pesquisa deixando simplesmente trabalhos para cumprir créditos e currículos importante salientar que vários projetos desenvolvidos pela Psicologia Social já vêm, há bastante tempo, se caracterizando desta forma, e os resultados têm sido muito interessantes.

Acreditamos que a experiência de exibição de filmes e audiovisuais num Encontro como o nosso foi bastante positiva e, certamente, voltará a acontecer.

49

DEBATE: PSICOLOGIA SOCIAL E EDUCAÇÃO

Coordenadora: Regina Helena de Freitas Campos FAFICH/UFMG Expositores: Carlos Henrique de Souza Gerken – Prefeitura Municipal de Ibirité.

Elza Maria Cataldo – FAE/UFMG

O objetivo desta comunicação foi discutir as perspectivas de trabalho do psicólogo na escola, tendo em vista o contexto histórico no qual se desenvolveu, no Brasil, a demanda pelo trabalho deste profissional e as possibilidades que se apresentam hoje para sua atuação.

Para tanto, foram apresentados dois re/atos de trabalhos desenvolvidos na área:

- um relato da história da Educação Especial no Brasil, e sua articulação com o trabalho do profissional psicólogo:

- um relato de experiência de intervenção psicossociológica no sistema de ensino da Prefeitura do município de Ibirité - MG.

A seguir, serão descritas sumariamente as principais questões abordadas e discutidas nos dois relatos apresentados.

1. PERSPECTIVA HISTÓRICA:

Expositora: Elza Maria Cataldo

Uma vez que nosso objetivo aqui é discutir a inserção da Psicologia na área educacional, torna-se necessário partir de uma perspectiva histórica.

A educação especial tem se constituído, ao longo da história da educação brasileira, ao mesmo tempo em espaço reservado aqueles que não conseguem viver ou sobreviver dentro de uma escola regular e em espaço reservado aos profissionais encarregados de explicar e resolver a questão do fracasso escolar: os psicólogos.

Ao seguir a trajetória da educação especial, Procuramos analisar principalmente a questão da integração das crianças com dificuldades de aprendizagem dentro das estruturas educacionais regulares.

50

Procuramos detectar o surgimento do conceito de Integração dentro dos primeiros movimentos em favor da criação de serviços de atendimento ao excepcional, e as transformações deste conceito em cada momento histórico específico.

As diversas representações da integração foram concretizadas em medidas administrativas e em propostas de ação que foram construindo estruturas institucionais específicas para lidar com o problema.

Constatamos que a história da educação especial no Brasil coincide com a história da marginalização e da exclusão das crianças com as dificuldades de aprendizagem da escola pública regular, e com a sucessão de tentativas - muitas vezes contraditórias - de reintegrá-las ás salas de aula normais.

Constatamos também que o psicólogo - profissional responsável pelo diagnostico e encaminhamento das crianças "problema" atuou predominantemente como elemento de preservação e de legitimação dos mecanismos de marginalização acionados pelas diferentes políticas de educação especial.

Este trabalho sugere que o psicólogo redimensione a sua atuação, contribuindo não só para identificar e encaminhar as crianças com dificuldades, mas também. participando efetivamente do planejamento, discussão e implementação do processo de ensino - aprendizagem no âmbito da escola regular.

2. PERSPECTIVAS DE TRABALHO NO ATUAL SISTEMA DE ENSINO PÚBLICO BRASIlEIRO - RELATO DE EXPERIÊNCIA :

Expositor:Carlos Henrique de Souza Gerken

Esta exposição foi dedicada ao relato de trabalho desenvolvido nas escolas da rede municipal de ensino do município de Ibirité.

Desde 1983, a Prefeitura Municipal de Ibirité, através do Departamento de Educação, tem desenvolvido ações no sentido de construir uma prática pedagógica, nas escolas da rede municipal, que corresponda aos interesses e às demandas de escolarização formuladas pelos diferentes setores da classe trabalhadora.

Tendo este objetivo em mente, procuramos, em um primeiro momento, apreender a realidade do trabalho do professor e as suas referências para o desenvolvimento das, atividades em sala de aula quanto a objetivos, conteúdos e recursos utilizados para dinamizar o processo de ensino.

51

Constatamos logo a urgência de se problematizar a prática do professor, a fim de reverter os efeitos impostos pela fragmentação e empobrecimento do saber transmitidos.

Decidimos então elaborar propostas de trabalho que partissem do saber do professor, para transformar a realidade na escola.

Estávamos conscientes de que, apesar da fragmentação e empobrecimento dos conteúdos transmitidos, é o professor que integra em sua ação cotidiana uma compreensão da vida da criança, da comunidade e do processo de ensino aprendizagem, fatores que são determinantes do processo de escolarização.

Depois de dois anos de investimentos sistemáticos na problematização da prática do professor e na instrumentalização dele para uma redefinição de sua prática, o Departamento deu início, no ano de 1985, a um esforço para organizar e sistematizar uma proposta de trabalho alternativa, começando pela alfabetização. O processo de apropriação da linguagem escrita constitui um dos elementos da terminantes das altas. taxas de repetência e evasão na escola fundamental.

Ao longo desta experiência, o psicólogo procurou atuar simultaneamente ao lado do supervisor da ensino no sentido de dinamizar o trabalho de reflexão. Esta atuação se deu basicamente em três níveis:

- problematização da prática: neste nível, procura-se discutir a prática educativa em curso, com objetivo de explicitar os conceitos e as regularidades concretas inerentes ao trabalho da escola, atuando ao nível da representação que os agentes pedagógicos produzem sobre o seu próprio trabalho e que determina a prática do planejamento dos conteúdos, as diferentes formas de enfrentamento dos conflitos que emergem na relação professor-aluno, na relação com a comunidade, etc.;

- informação: neste campo, procura-se instrumentalizar o professor em termos de conteúdo e metodologia, buscando dar suporte ao espaço grupal de descobrir alternativas pedagógicas capazes de produzir mudança qualitativas em sua prática;

- nível do grupo: nesta instância, procura-se intervir nos conflitos institucionais que obstam a realização do trabalho. Procura-se intervir no sentido de explicitar e compreender conflitos que emergem na relação de trabalho dos professores coordenadores, professores - técnicos, Departamento de Educação, relação escola-comunidade, etc.

Em relação ao processo de alfabetização, especificamente, foi proposto um trabalho junto ás professoras responsáveis pela regência de todas as turmas de 1° ano na rede municipal. O acompanhamento das professoras busca promover a reflexão

52

sobre três problemas que se articulam e se complementam, a saber:

- o saber que a criança traz para a escola, construído a partir de sua inserção concreta na vida de seu grupo e classe social:

- o objeto de conhecimento a linguagem escrita, a relação entre a fala, a leitura e a escrita, a questão dialetal, etc.

- o processo de transmissão/assimilação ou construção do conhecimento: aqui se busca refletir sobre as proposições concretas que o professor está implementando em sala de aula, a forma como ele representa a criança e intervem junto a ela, procurando a articulação destes itens com as teorias que os sustentam e justificam.

As estratégias de trabalho utilizadas nos grupos de trabalho são: - discussão da prática;

- leitura e discussão de textos;

- oficinas de trabalho para:

· elaboração de atividades para modificar e dinamizar o processo de ensino-aprendizagem;

· exercícios de problematização e compreensão da produção da criança.

Os resultados deste trabalho são visíveis uma vez que os professores se sentem mais seguros para propor alternativas de trabalho na escola, no sentido de criar espaços vivos de transmissão e construção de conhecimento significativos para os alunos.

Em levantamento feito no mas de outubro de 1985, verificou·se que as crianças estão apresentando um aproveitamento mais efetivo, além de o indica de problemas de aprendizagem ter decrescido de 50 a 60% para 20% na maior parte das turmas.

Deste 20% que apresentam problemas de aprendizagem, 80% são crianças que estão vivendo a sua primeira experiência escolar. Isto significa que os repetentes estão superando as suas dificuldades.

Esta experiência de trabalho demonstra com ênfase que o profissional psicólogo pode colaborar significativamente para a democratização da escola, se compreendermos como uma das dimensões da democratização a garantia de acesso ao saber proporcionada pela experiência escolar. O psicólogo pode atuar como profissional responsável pela elaboração de instrumentos de análise e de intervenção que possibilitem apreender, de forma dinâmica, os determinantes do fracasso escolar, a partir de um esforço de integrar em um só dispositivo de análise/intervenção a dimensão da escola enquanto instituição socialmente determinada, e o aluno enquanto sujeito concreto e ativo de seu processo de construção de conhecimento.

53

Nesta perspectiva. O psicólogo deixa da ocupar o lugar do diagnóstico e do tratamento da criança-problema para tornar sujeito fundamental na discussão e na busca de alternativas concretas para mobilização do processo ensino-aprendizagem .

54

COMUNICAÇÕES

ROQUE SANTEIRO: O NOVELO, A NOVELA E A VERDADE EM QUESTÃO

Sérgio Augusto Chagas de Laia (1)

“ Je dis toujours la verité: pas toute, parce que toute la dire, on n'y arrive pas, La dire toute, c'est impossible, meterielllmente: les mots y manquent. C'est même par cet impossible que la verité tiente au réel” (J. LACAN) (2)

Gostaria de iniciar este texto a partir de urna citado de LACAN (1957) a propósito da cadeia de significantes e da linguagem: o que esta estrutura da escola significante descobre é a possibilidade que eu tenho, justamente na medida em que sua língua me é comum com a de outros sujeitos, isto é, em que esta língua existe e dela me sirvo para significar inteiramente outra coisa que aquilo que ela diz. Função mais digna de ser sublinhada na fala que aquela de mascarar o pensamento (0 mais frequentemente indefinível) do sujeito: a saber, aquela de indicar o lugar deste sujeito na busca do verdadeiro.

Se escolho esta citação é devido tanto a sua beleza e ao impacto de verdade que ela traz consigo, como pelo que pretendo tratar aqui, neste texto, sobre a linguagem e a verdade, usando como campo de trabalho a história de Roque Santeiro, que vem sendo levada ao ar, sob a forma de novela, pela Rede Globo de Televisão.

A história de Roque Santeiro se passa em Asa Branca, uma cidade povoada de tipos característicos do interior do Brasil ( o cego da igreja, as beatas fofoqueiras, o homem que vira lobisomem, etc.), com seus sotaques e costumes mineiros, paulistas, nordestinos, etc. Esta cidade vive do mito de Roque Santeiro: há dezessete anos atrás, ela foi Invadida por bandidos e bravamente defendida por Roque, até então um simples habitante da cidade. Durante a invasão, Navalhada e seus homens, aproveitando o esvaziamento da cidade, resolvem saquear também a igreja,. Após a invasão, os habitantes de Asa Branca encontram, perto do rio, o corpo de um

* Aluno da disciplina Psicologia Comunitária e Ecologia Humana Departamento de Psicologia - UFMG

56

homem, sem cabeça e vestido com o gibão de Roque: defendendo a cidade, Roque acabara por ser cruelmente assassinado pelos bandidos. Algum tempo depois, Roque aparece a uma menina doente, na beira do rio, e diz para ela passar a lama do rio em seu corpo, a menina sara e a fama de Roque - agora Roque Santeiro - se espalha pelo Brasil. Asa Branca prospera à sombra da imagem de Roque Santeiro, é alvo de romarias e milagres diversos e até mesmo da produção de um filme sobre a vida de seu herói e agora santo; o pai de Roque se torna um beato - Beato Salu-, se isola numa casinha pobre às margens do rio e recebe caravanas de fiéis que vêm pedir sua benção e/ou agradecer as graças recebidas de seu filho. Dezessete anos depois da tragédia ocorrida com Roque, um homem chamado Luiz Roque Duarte aparece na cidade, com ele surge também o antigo ostensório de ouro que fora roubado pelo bandido Navalhada. A cidade entra em frenesi com o advento desse novo milagre, liderada pela beata Pombinha, mas para alguns de seus habitantes - o Padre Hipólito, o Coronel Sinhozinho Malta, a Viúva Porcina, o Prefeito Flor e o prospero comerciante José das Medalhas - este é o início de um enorme problema que pode detonar Asa Branca, pois Luis Roque Duarte é Roque Santeiro que, ao contrário da história que vinha sendo contada até então, aproveitou, há dezessete anos atrás a presença dos bandidos, roubou o ostensório e fugiu para Europa onde enriqueceu e, agora, retorna à cidade natal no intuito de pagar a dívida que contraiu com seu povo.

Há, assim, várias versões da história de Roque a partir de algo que terá ocorrido: a história contada pelos habitantes de Asa Branca {história oficial}, a história relatada pelo filme (que é o representante da representação oficial) e a história que Luiz Roque Duarte traz consigo; estas três versões se enovelam na história contada por Dias Gomes e Aguinaldo Silva. O que amarra essas histórias? O que as articula? O que as faz. estarem presentes ao mesmo tempo, num mesmo lugar, uma (des)conhecendo a outra? A meu ver, é algo da ordem de uma verdade que as possibilita, isto é, elas se presentificam - ainda que para um certo processo secundário, consciente, isso se dê contraditoriamente: - porque têm, cada uma a seu modo, a busca do verdadeiro como caminho e, se são contadas diferentemente, é porque os sujeitos que as contam ocupam posições diferentes, neste contar e a língua existe para significar inteiramente outra coisa que aquilo que ela diz .

Diante disso, o que se pode extrair dessas histórias é algo da ordem do deslize do significante e da busca do verdadeiro, pois na passagem de Roque para Roque Santeiro para Luis Roque Duarte, significantes aparecem/desaparecem, modificando o sujeito em questão e visando dizer o que terá acontecido.

57

A passagem de Roque para Roque Santeiro se encontra presente na história que os habitantes de Asa Branca contam. São eles que significam a representação oficial da história de Roque, a partir de um espaço vazio, isto é, a partir da descoberta de um corpo de um homem decepado, vestida com um gibão de Roque e o aparecimento de Roque - e a cura feita por ele - para a menina Lulu. Há, pois, a partir de espaços em branco, produção de um sentido que vai ser apresentado como uma verdade histórica, contada pelo povo de Asa Branca e do Brasil. Esse é um dos níveis que podemos ver operar o que LÉVI·STRAUSS (1958) chamou de eficácia simbólica. Esta pode ser vista também nos próprios efeitos do mito de Roque Santeiro. LÉVI·STRAUSS (1958) nos diz que são necessário três elementos para que a magia tenha uma eficácia: a crença no feiticeiro na sua técnica, as exigências de uma comunidade e a crença do doente (ou da vitima) no poder do feiticeiro; na história de Roque Santeiro, encontramos esses três elementos: Asa Branca é uma cidade que vive á sombra da imagem e dos milagres feitos por Roque Santeiro e tanto fiéis da cidade como os romeiros cultuam, creem e demandam os poderes desse homem santo. São esquecidos, então, certos acontecimentos que sobram, que não convêm muito à imagem de um santo: o casamento de Roque com Porcina concomitantemente ao seu namoro com Mocinha que D. Pombinha vai logo explicando que não devemos julgar Roque como os outros porque Roque era um homem diferente, além do nosso entendimento. Há, pois, todo um processo de cultualização, de invenção de certos pedaços mal contados da vida de Roque para que a imagem do santo permaneça. Quanto ao elemento referente á crença do feiticeiro na sua técnica, este não aparece encarnadamente na figura de Roque Santeiro, uma vez que Roque está morto e toda essa história se dá apesar dele, há, contudo personagens que - com maior ou menor intensidade - se posicionam como intermediários de Roque Santeiro: o Beato Salu, Pombinha, Mocinha, Padre Hipólito entre outros.

Assim, o que importa nessa história não é uma causa objetiva dos milagre, a realidade dos fatos acontecidos, mas a articulação sistêmica que ela imprime aos estados confusos e inorganizados das pessoas de Asa Branca frente ao horror da invasão e do encontro do corpo decepado, e dos romeiros que chegam à cidade, desesperados, demandando cura, prosperidade, agradecendo o que receberam, etc. É essa articulação quer possibilita a eficácia simbólica, o aparecimento dos milagre, o progresso da cidade, etc. Diante desses afeitos, da maneira pela qual cada habitante da cidade conta o que terá acontecido com Roque, o nome de Roque apenas já não basta, dai, a partir da profissão que o antigo e quase esquecido Roque desempenhava, acrescenta-se seu nome Santeiro e a cidade apaga de vez os outros nomes que designavam o seu herói (Luis, Roque, Duarte): é de um outro

58

sujeito que se trata agora. Está construído o mito de Roque Santeiro.

A fama de Roque Santeiro faz com que um cineasta se interesse em fazer um filme sobre a vida desse santo brasileiro. A equipe de filmagem, artistas, diretor, etc. invadem Asa Branca com seus equipamentos e o roteiro do filme já delineado. Ao iniciarem as filmagens surge um problema com Porcina,, a viúva do falecido via uma certidão falsa forjada pelo amante Sinhozinho Malta, que exige ler o roteiro antes, para ver se aprova a filmagem da vida do seu marido. Após ler, a viúva exige o corte das cenas em que Mocinha aparece (temos aqui um outro ótimo exemplo de como a verdade histórica desempenha uma eficácia simbólica); o diretor acha absurdo tal ciúme, mas consente para que possa filmar em paz e, aproveitando certas brechas, certos descuidos da Viúva, grava as Cenas de Mocinha.

À medida em que o filme vai sendo rodado e a equipe vai entrando mais em contato com Asa Branca, um confronto aparece entre aquilo que o filme representa -a história que o filme conta - e os milagres de Asa Branca que se apresentam de uma forma multo mais complexa do que a retratada pelo filme. O diretor vive o drama da complexidade da realidade de Asa Branca e representação que seu filme pretende dar a ela, mas sem copiá-la. O filme surge, então, penso, como um representante da representação, uma tentativa de representar a representação que os habitantes de Asa Branca têm do que terá ocorrido. Nesta tentativa, elementos se deslocam e se condensam, fazendo surgir, a partir dos personagens da cidade, personagens outros: o Sinhozinho Malta do filme é por demais calmo em relação ao de Asa Branca, a atriz Linda Bastos faz, no filme, uma Porcina bem diferente da fogoza viúva do falecido, o Roque Santeiro do filme usa brinco e o bandido Navalhada é representado pelo delegado de polícia de Asa Branca. Assim, nesta história, outros personagens são construídos, outros sentidos aparecem e isso é possível em virtude de que o sujeito que conta essa história ocupa um lugar diferente em relação aos que contam a história oficial : O diretor do filme, e sua companhia, não são de Asa Branca, vêm de um outro mundo (metropolitano), com um outro discurso, uma outra maneira de dizer as coisas que terão se passado a se passam em Asa Branca. Meio a esses acontecimentos, surge, inesperadamente, Luis Roque Duarte e, com ele, uma outra história. O aparecimento desse novo personagem faz revelar o paradoxo contido na palavra sagrado que, como já havia notado FREUD (1939), se deriva de sacer que tem tanto o sentido corriqueiro que damos a sagrado - consagrado, bento, dos santos - como um sentido antitético a este - infame, detestável. Luis Roque Duarte revela esse paradoxo e põe em risco toda a história oficial e seus efeitos (os milagres, o progresso, etc.). Ao retornar a Asa Branca, ele vive todo um processo de

59

deformação, pois não é o que terá sido até hoje : ele está vivo (o corpo morto é de um preso que agonizava na cadeia quando se deu invasão), roubou o ostensório e se enriqueceu com esta roubo; já não mais um rapaz simples, da roça, mas um homem elegante, fino, viajado. A partir desse processo de deformação, digo - utilizando uma terminologia freudiana – que Luis Roque Duarte (e agora é imprescindível nomeá-lo de uma outra maneira, é um outro sujeito que sé encontra em questão) pode ser visto como um delírio; assim, quando ele visita o Beato SaIu - que desde a morte do filho passa a investir numa vida religiosa - e lhe diz que é Roque e que está vivo, o Beato se desespera, não acredita e ao sair proclamando que foi visitado pelo demônio no corpo de seu santo filho, o Beato é tido como um louco e Internado: acho muito significativo que, para um beato, o aparecimento de um fragmento da verdade material, considerando o sistema discursivo dele, se dê sob a forma do demônio. Contudo, enquanto Luis Roque Duarte traz, com e no seu discurso, um passado, o material que ele traz pode ser chamado de verdade. Quando digo isso, quero apontar o caráter de verdade material presente no discurso e no aparecimento do corpo (vivo) de Luis Roque Duarte e que esta, quando aparece, imprime uma mudança na cadeia: já não se pode contar a história da mesma forma. Esta verdade, contudo, lá estava lá, no relato da história oficial, ainda que sofrendo um processo de ocultamento pela religião; aqui, vale a pena lembrar que a canção do cego Jeremias, o ABC de Roque Santeiro, diz que Roque Santeiro é UM HOMEM de baixo de um santo.

A questão que fica agora é: qual é a verdade nessa história toda revelada por Dias Gomes / Aguinaldo Silva? Creio que não são eles que, como eu poderão responder isso uma vez que o poder criativo de um autor não obedece à sua vontade: o trabalho avança como pode e com freqüência se apresenta a ele como algo independente ou até mesmo estranho (FREUD, 1939) Assim,os autores da novela têm, estruturalmente, o mesmo lugar dos personagens criados por eles: todos contam uma história e esta se desenrola apesar deles, em diversas versões a, enquanto tais, estas versões não são totalmente falsas ou totalmente verdadeiras, LÉVI-STRAUSS (1958) diria que todas as versões pertencem ao mito e, com isso, a partir do lugar que cada um ocupa; cada um significa o acontecimento de uma forma, como na historinha que LACAN (1957) nos conta da casa de irmãos dentro do trem. Diante disse, o que a meu ver a novela Roque Santeiro nos mostra - e talvez seja possivelmente por isso que ela foi proibida nos repressivos anos 70, que ela, atualmente, nos cause tanto impacto, nos faça tanto rir é que, como já disse FREUD (1939), aquilo que é provável não é necessariamente a verdade; e que a verdade nem sempre é provável.

60

NOTAS:

1. Estudante do curso de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais; texto adotado na cadeira de Psicolingüística, ministrada pela prof. Leila Mariné da Cunha Guimarães.

2. Eu digo sempre a verdade: não toda, porque dize-la toda, é impossível, materialmente: as palavras falam. É por esse impossível que a verdade se sustente no real (J.LACAM).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1) FREUD, S. Moisés e o monoteísmo (1939). In: obras completas,

Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro, Imago, \/ol. XXIII, 1975, pp.13-161 .

2) LACAN, J. L’instance de la iettre dans I’inconscient ou la raison depuis Freud (1957), In: Écrits, Paris, Seuil, 1968, pp. 493-528.

3) LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia Estrutural (1958). Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, vol. I, 1975, pp. 193-266.

61

FORMAÇÕES COMUNITÁRIAS EM BElO HORIZONTE

Elizabeth de Melo Bomfim

Este é o segundo trabalho desenvolvido na disciplina Psicologia Comunitária e Ecologia Humana iniciada, juntamente com Marilia, no inicio deste ano. De certa forma, ele dá prosseguimento, ao estudo realizado no primeiro semestre que denominamos Comunidades Alternativas: uma reflexão em torno do tema e que foi apresentado na 37° Reunião Anual da SBPC, em julho de 1985.

Tal como o primeiro, este estudo foi elaborado ao longo do curso, num processo de auto-gestão pedagógica, onde o tema e suas diferentes abordagens foram discutidos por todo o grupo, num processo de escuta e de desafio às diversidades. E, foi este mesmo processo que utilizamos no confronto comunitário: a escuta numa relação de troca e contato sedutor.

Partindo do nosso não saber e, algumas vezes, dos nossos preconceitos, montamos um dispositivo metodológico baseado, essencialmente, em observações, entrevistas e análise de algumas fontes documentais.

Tentamos, em alguns momentos, refazer a história das comunidades, em outros , uma análise do atual momento social. Partimos, para a escolha das comunidades, da existência de uma relação vivencial e/ou profissional que algum de nós já mantinha com elas.

Ao longo do estudo elaboramos e desistimos de várias hipóteses de trabalho. A cada nova hipótese refazíamos a nossa ida às comunidades em busca de novas informações. E, à cada ida nos transformávamos, procurando entender o que não nos espelha.

Algumas informações consumiram, para serem digeridas, algumas sessões pessoais de terapias, outras fizeram-nos abandonar fantásticas hipóteses de resistência e luta política de um grupo social. Outras vieram chocar com o monoteísmo de um dos nossos ao constatar, ainda surpreso, a miscibilidade religiosa de um povo que é, ao mesmo tempo, católico, umbandista, espírita, etc. Em certo momento tivemos que desacreditar no discurso de um líder comunitário e ir buscar no discurso da danada casa ou da criança, a angústia e a tristeza de ter de morar, com oito pessoas, numa casa de madeirit de 3mx3m.

O que ora apresentamos não está terminado. São anotações às quais deveremos dar uma melhor estruturação teórica. Portanto, quaisquer comentários serão muito bem-vindos.

(*) Professor adjunto do Departamento de Psicologia - UFMG

62

HORTO: DE FERRO E FÉ

Antonio Car/os Ferreira

Margareth A. Toledo (*)

No começo desse século, esse lugar onde hoje é região do Horta era um imenso matagal, entremeado pelos capinzais que alimentavam as vacas que com o tempo foram dando lugar às casas que compõem atualmente os bairros Sagrada Família, Santa Tereza, Horta, Boa Vista , Santa Inês e outros.

Dessas pessoas que hoje habitam essa região, uns poucos viveram esse tempo em que tudo era um extensa colônia, a colônia América Werneck, que ocupava uma área que ia desde onde é hoje a rua Salinas em Santa Tereza e, que subindo à direita divisava com a fazenda do João da Cunha.

Os que viveram essa época não se esquecem do tempo das chácaras cujos moradores levavam. milho e outros alimentos para trocar por fubá na casa do Capitão Castro. Como também não se esquecem das estradas margeadas por mato e capim, por onde passavam as tropas e os carros de boi que transitavam de Belo Horizonte para General Carneiro, Gorduras e outras partes além daquela região e, nem se esquecem, também, dá tromba d'água que em 1907 entupiu o bueiro que havia ali onde hoje está a linha de trem e que deixou intransitável por três meses esse caminho.

Onde é hoje o Museu de História Natural, era naquele tempo, a fazenda do Guimarães, que era toda a área que ia desde as terras do Carvalho de Brito que deram lugar aos bairros Santa Inês, Nova Vista e Bela Vista. Essa fazenda foi comprada pelo Estado que a dividiu entre a FEBEM, SENAI, CETEC, POLlVALENTE, SOBENCA, TV Educativa, Fundação João Pinheiro e Museu de História Natural da UFMG. Foram construídas também, algumas casas para os funcionários do estado daquele tempo e seus filhos que até hoje moram por lá.

Em 1919, começaram a se fazer o levantamento para a construção das oficinas da Central do Brasil, que adquirira as terras que pertenciam á fazenda do Agenor. Como o terreno era muito acidentado e cheio de barrancos e não havia naquele tempo as facilidades de mecanização a terraplanagem foi feita por meio de Desmonto hidráulico (um sistema de terraplanagem no qual utiliza-se duas bombas d'água de alta pressão: uma que arrebenta as barreiras e outra que empurra os destroços). Em 1925/26, ficou pronta a esplanada, mas que

Alunos da. disciplina Psicologia Comunitária e Ecologia Humana. Departamento de Psicologia UFMG

63

antes de ser utilizada para as construções, serviu de pista de pouso para os primeiros aviões que vieram para Belo Horizonte procedente do Rio de Janeiro pelos ares. Pois antes disso os aviões vinham por via férrea, transportados sem asas e chegando aqui, eram levados para o Prado e montados. Seus primeiros vôos eram feitos utilizando as pistas de corrida de cavalos, como pista de pouso e decolagem.

E era para trabalhar nessas construções das estradas de ferro e das oficinas que vinha gente de cidades desse Interior de Minas tais como Sete lagoas, Curvelo, Corinto, Alvinópolis, conselheiro Lafaiete e tantas outras. Vinham, como aventureiros em busca de trabalho. E com um misto de esperança e necessidade de compartilhar dessa façanha. É talvez por isso que nunca vinham sozinhos. Cada um trazia junto consigo vários outros amigos e familiares cuJos corpos eram, também, sua força de trabalho e fé. era isso que tinham para oferecer.

Então quando no fim da década de vinte e início de trinta ficam prontas as oficinas, o povo vinha em levas e mais levas e agora, também, já de outras cidades um pouco mais distantes nas quais haviam oficinas menores. Mas era aqui na capital que estavam as duas, grandes oficinas IFL II e IFL III (Inspetoria Ferroviária de Locomoção) que faziam o trabalho de reparo dos vagões de todas as outras estações de Minas e até mesmo de outros estados.

Esse pessoal vindo de tantos cantos, chegava e recebia autorização do engenheiro da Central para a construção de suas casas, praticamente sem nenhum planejamento de urbanização. E em meio àquele enorme brejo ia nascendo a vila Edgard Werneek, às margens da linha por onde passavam as Maria-fumaças movidas a carvão e lenha, mas que foram perdendo seu lugar para as modernas máquinas a Diesel Junto com os homens que foram perdendo seus lugares para os computadores. Assim, aquilo que era uma grande comunidade de trabalhadores da companhia de ferro vai se transformando em um bairro operário cujos moradores buscam trabalhos cada vez mais longe de suas casas.

Existe em toda essa 'história uma constante luta para a preservação dessas raízes, desses costumes luta essa sempre permeada pela união de todos. E não são poucos os que trazem vivas em suas memórias lutas como foi, por exemplo, a greve dos operários da Central, que foi a primeira grande greve de funcionários públicos em nosso pais, com duração de 12 dias. E como é importante, também, estarmos atentos para toda essa capacidade de organização, numa época em que toda comunicação era feita através de cartas, telegramas e telefones, mas é claro, com muito mais dificuldade do que em nossos dias de hoje. Essa greve termina quando o então governador Milton Campos, diante do grande empasse das máquinas parada

64

terem de se movimentar, criado nas negociações, faz uma intervenção que foi para aquele momento a mais oportuna para a resolução da questão; para que os funcionários retomassem ao trabalho ele diz: para que tudo voltasse à sua normalidade, não seria melhor que mandassem primeiro o carro pagamento?

Essa greve que aconteceu em 1951 é depois julgada no governo Dutra, com ganho de causa para esses operários que trabalhavam até 16 horas por dia sem receber horas extras, sem seguros de acidentes, etc. Porém, mesmo assim, muitos deles pagaram um preço muito alto. Por dela terem participado, alguns foram dispensados, outros removidos por um período de até 6 meses, para outras cidades. Era preciso muita união para conseguir resistir e sobreviver a todos essas intempéries da vida.

Mas nem só de suor e lutas viveram essas pessoas, presente em suas memórias está, também, a Banda de Música fundada em, 1934 por um morador da comunidade que sonhando com uma grande banda foi reunindo todos aqueles que moravam por ali que tocassem algum instrumento. Dois anos depois o seu sonho já era realidade.

Essa banda acompanhou Juscelino Kubitscheck em sua campanha para o governo do estado e para a presidência da República. Foi convidada de honra para tocar em sua posse como presidente na capital, então Rio de Janeiro. Depois foi convidada, também, para tocar na inauguração da Nova Capital Federal, Brasília.

Mas mesmo a banda teve seus problemas. Após a apresentação em Brasília, devido a uma série de dificuldades, esta ficou desativada por muito tempo, tendo depois retomado a continuidade de seus trabalhos há oito anos atrás, estando até hoje em franca atividade. Com toda uma estrutura hierárquica de funcionamento, a corporação musical 1o de maio é uma fiel representação da resistência e manutenção da arte à despeito de toda e qualquer interferência desastrosa. Os homens passam e a banda contínua tocando a vida como o soar de um canto desse povo que vai fazendo dia após dia sua história.

Trabalhadores, aventureiros, gente simples que fazia compras nas vendas, mas que precisavam de um lugar que fosse condizente com o tamanho de sua grande fé. Então, em 1945, nesse lugar onde hoje é a Igreja do Horto, já havia uma capelinha que pertencia à paróquia de Santa Tereza. Mas a comunidade crescia e com ela, também, sua fé. Fazia-se então necessário um espaço ainda maior para que todas aquelas pessoas pudessem se reunir para as práticas religiosas dos rituais e sacramentos do catolicismo.

Então em 1946, inaugura-se a Igreja Senhor Bom Jesus do

65

Horto, que fora construída com os esforços dos próprios paroquianos. Eram promoções, grandes festas, doações de materiais vindos de particulares e da prefeitura e a força de trabalho era, também, fornecida pelos próprios fiéis que trabalhavam enquanto havia um fio de luz no céu.

Em 1o de maio de 1943 os funcionários promovem a grande festa de Páscoa que viria a se tomar uma tradição e que não se perderá facilmente através do tempo, sempre arrastando gente de várias partes do país para o 1o de maio elas oficinas.

A igreja que estende seus braços sobre aqueles de pura fá, também os estende aos festivos. Assim, cria-se , também, suas festas tradicionais como, por exemplo, a festa do padroeiro do bairro. Senhor Bom Jesus do Horto além de todas as promoções peculiares às festas de igreja. culminou com a celebração de uma missa campal na porta dessa.

Mas até mesmo na igreja nem tudo se resume a fé e festas. Em 1967, três recém-chegados padres franceses aquela paróquia, empolgados pelo momento político que atravessava tanto o nosso país quanto o seu de origem, envolveram-se em mobilizações e organização dos jovens que se juntaram através do J.O.C. (Juventude Operária Católica). e assim, a comunidade jovem da região do Horto, estimulada pelos padres e sedentos pela concretização de seus ideais de justiça social, ia passo a passo adquirindo uma enorme capacidade de organização, cujo apogeu é atingido em 1972.

Os soldados do exército com armas em punho invadem a Igreja e a deixa fechada por seis meses, dispersando assim, todo o foco de união dessa juventude. os padres foram presos e até mesmo expulsos do nosso país. Uma atitude que entristeceu os jovens e deixou os mais velhos perplexos. Essa garra de luta e impotência diante dos duros métodos repressivos, de um passado que se tenta incessantemente apagar da lembrança, mas que é como uma ferida que de quando em quando sangra e dói.

Diante de tão grave incidente, o povo dessa religião ficou privado de qualquer assistência religiosa, tendo que buscá-la em outras paróquias. mas esse povo com usa fé de ferro não se esmoreceu. Ainda nesse mesmo ano, com a vinda do Padre Roque, a igreja agora voltada para as atividades de cunho mais puramente religioso, consegue arrebanhar seus fiéis, principalmente os mais velhos. Assim em pouco tempo, apesar de todas as dificuldades com que se deparou inicialmente o Padre Roque, a igreja apoiada na força de seus paroquianos se ergue não só em si mesma, como também, na construção de um prédio, de posto de saúde, creches, centro social como um grande

66

braço de força e fé que hoje ecoa em longíquas terras através da onda rural de urna emissora de rádio.

O Presépio do Pipiripau

Toda essa devoção religiosa não é expressa apenas através da Igreja, mas também através da arte e dedicação do Sr. Raimundo.

O Sr. Raimundo, quando ainda menino de uns 11 ou 12 anos, ao ver um presépio, desses que pessoas religiosas fazem em suas casas na época de Natal, teve, então, a idéia de fazer em Sua casa na Sagrada Família um presépio: O Presépio do Pipiripau. Com todas as dificuldades de uma criança daquele tempo, com dinheiro juntado através da venda de garrafinhas de óleo de rícino, começava o menino a ver seu sonho tomar corpo de realidade,

O pequenino boneco-menino Jesus, colocado numa caixa de sapatos fofada de capim discretamente deixada debaixo da mesa, ganha altura expondo-se, então, sobre essa mesa.

As visitas achavam interessante, assim, era necessário amplia-lo para que pudesse atrair ainda mais a atenção das pessoas. Assim, durante todo o correr de cada ano, o presépio ganhava uma novidade, Mas isso não era suficiente para aquele incansável sonhador. Tudo quanto é vivo, bicho, gentil e paisagem estão parados na linearidade de sua história. Era preciso dar vida e movimento à todos os personagens e à natureza.

E foi a partir da observação do mecanismo de funcionamento do moinho do Capitão Castro que o Sr. Raimundo resolveu reproduzir em miniatura aquele moinho movido exclusivamente à água que poderia ser o início movimento de pelo menos parte daquela história fantástica e tão viva na cabeça daquele homem.

Dessa vez. a novidade foi muito ousada, não foi mais possível parar por aí. Os conhecidos cobravam mais e mais a cada ano e ele tinha que ser cada vez mais brilhante. É, então, uma máquina de gramofone que faz girar uma cena, é um motor elétrico que a partir de 1947 movimenta todos aqueles bonecos-gente. Assim, a história do nascimento de Cristo acontece em. meio a um riquíssimo cenário que retrata simultaneamente a vida modesta e simples, bela e difícil do homem do campo em sua rotina de labor e fé.

O presépio é a própria história e não se desvincula dela. Nem mesmo o seu nome é por acaso. Desde os primórdios de sua existência, quando ainda na casa do Sr. Raimundo, as pessoas

67

pipiripau. Então, na primeira reportagem feita à respeito do presépio em 1925, o seminário Tribuna, refere-se a ele com o nome do presépio do Pipiripau. Várias outros matérias foram feitas sobre esse mesmo assunto em revistas, jornais e TV, e pelo interesse que despertam, sempre se repetem.

Esse monumento histórico que nasceu um dia na casa do Sr. Raimundo, além de receber visitas onde quer que fosse por parte de conhecidos, amigos de conhecidos, turistas vindos de tantos lugares, e autoridades como J.K., que Inclusive o homenageou dando esse mesmo nome a um rio em Brasília, também já esteve no parque da Gameleira, viajou representando o folclore mineiro em São Paulo exposto no parque Ibirapuera. Em 1976 foi comprado por um preço simbólico pela U.F.M.G. e instalado no Museu de História Natural dessa Universidade. Em 1983, foi tombado pelo patrimônio histórico, ficando assim protegido e assegurado de conservação, não podendo ser modificado em sua composição por ninguém, exceto pelo seu próprio idealizador e executor.

O Horto Florestal

O nome da região do Horto deriva-se dessa verdadeira reserva florestal que o bairro abriga e preserva contendo inclusive os paus-brasil mais antigos de nosso país, com exceção dos de Porto Seguro.

O progresso que se expande por todos os bairros de nossa Capital, desde os fins da década de trinta com a extensão das linhas dos saudosos bondes aos bairros distantes do centro para a época, o computador que chega e toma o lugar do operário, os apartamentos que aos poucos substituem aquela paisagem interiorana das casas dos povos simples, tudo isto não e o bastante para mudar um modo de vida provinciana de toda uma comunidade cuja origem é fortemente marcada pelo mineirismo, que mesmo acompanhando todas as evoluções, mantém em si mesma os vínculos com seus antepassados.

Talvez venha de sua própria história, essa capacidade de crescimento e preservação, ao mesmo tempo, de tantas riquezas e conquistas. Não é por acaso que encontra-se ali os postos de saúde, as igrejas, a resistência do verde como não mais visto por tão perto em nossa cidade e tantas outras forças desse povo que é claramente demonstrada através da crença, das lutas, do trabalho de cada dia, da banda de música, do estádio de futebol que ganha nova dimensão, do presépio como cartão de visita de Belo Horizonte e tantas outras coisas.

Só mesmo um povo de ferro consegue manter tão viva e forte, sua capacidade de expressão da fé, da arte e de lutas

68

construindo e preservando dessa forma às margens da linha por onde passavam as Maria-fumaças e ainda há de passar muitos trens. Ficam as homens e os seus e, com esses a história viva do lugar.

Agradecemos e dedicamos essa história aos seus legítimos autores: Padre Roque (Bispo Sebastião Roque de Leopoldina); Sr. Raimundo do presépio e seus auxiliares, Emanoel; Sr. José Carlos da banda de música e Sr. Nogueira, sem os quais o registro da história dessa comunidade não nos seria possível.

DA VILA SÃO GABRIEL AO BAIRRO NAZARÉ; DA CAPELA À PARÓQUIA

Jorge Luis da Costa (*)

Localizada à margem da BR 262, um pouco à frente do trevo de Sabará, lado oposto ao bairro Gorduras, encontra-se a Vila São Gabriel. Seus antigos moradores são pessoas vindas do interior de Minas, da região de Santa Maria do Itabira, Ferros, Passabém, em busca de emprego. Ali instalados foram aos poucos trazendo os seus parentes do interior e assim a Vila foi crescendo. No começo não havia um projeto para a construção das casas. Após adquirir uma parte do terreno, cada um construía seu barraco. Como a Vila estava crescendo e havia interesse em se vender mais lotes, foi feito projetos de ruas e remarcação dos lotes. As pessoas continuavam a vir do interior, sempre em maior número, e ali eram acolhidos pelos parentes que muitas vezes deixavam os que chegavam irem construindo nos fundos dos seus lotes. E assim a Vila cresceu ...

Os meus primeiros contatos com a Vila foram em 1978 quando então eu era seminarista. Um dos Padres da nossa congregação foi certa vez, a pedido de alguém, celebrar numa capeta lá na Vila, e ficou impressionado com a pobreza e união das pessoas...; então resolveu lá desenvolver o seu trabalho.

• Aluno da disciplina Psicologia Comunitária e Ecologia Humana.

69

RELIGIOSIDADE DO POVO

O pessoal da Vila parece grande preocupação com a religião. O próprio povo se uniu e construiu a sua cape/a, mesma não tendo padres. Isto se falando daqueles que professam a religião católica.

Nesse tempo, muita outras igrejas foram lá construídas: Igreja Pentecostal de Oração, Igreja Presbiteriana, Igreja Batista, Igreja Batista da Renovação, Assembléia de Deus, Igreja Evangélica Quadrangular, Igreja da Profecia, dentre outras. Surgiram também alguns, terreiros de Umbanda. Aqui acontecia um fenômeno religioso interessante; as pessoas que freqüentavam os terreiros de umbanda eram também participantes das igrejas, mais comumente da Igreja Católica. Paralelamente as festas religiosas; forrós, fogueiras. barraquinhas, com os batuques dos terreiros e as rezas.

BREVE HISTÓRICO

Para se chegar ai Vila era uma dificuldade. A rua que ligava a Vila à BR 262 era só buracos. Mas isso era o de menos. A Vila quase não possuía ruas. apenas projetos de ruas. Eram caminhos que se ligavam à rua principal, cheios de mato e buracos. Outro sério problema era o ribeirão que corta a Vila de ponta a ponta. Não havia pontes; a própria comunidade construía pinguelas para saltar a ribeirão. Quando chovia, o ribeirão enchia, transbordava, entrava nas casas próximas à sua margem e, ainda por cima, levava as pinguelas na sua forte correnteza. Então, o pessoal era obrigado a dar volta longe, lá na BR 262 para poder chegar em casa.

Água e esgoto inexistiam. A água era conseguida em profundas cisternas à base de cordas e baldes, apenas alguns possuíam bomba elétrica. Quanto ao esgoto, aqueles que moravam próximo ao ribeirão canalizavam para lá os seus detritos; os moradores mais distantes usavam o sistema de fossas.

A Vila não possuía telefone, nem posto médico, nem posto policial. O comércio era reduzido a uns poucos e pequenos armazéns, botecos e uma farmacinha.

Aos poucos, às vezes liderados pelo padre, a Vila em mutirão, a comunidade construiu uma ponte, o salão comunitário e outras pequenas obras. Com as reivindicações da comunidade conseguiu-se água canalizada.

70

Em 1978, época das enchentes, os moradores da Vila sofreram com ai chuva. Os danos foram incalculáveis à favela que fazia parte da vila. Tendo sido construídas nos terrenos da RFFSA, os barracos sobre o aterro da estrada de ferro começaram a descer e caiam uns sobra os outros. Os flagelados foram transferidos para a escola e igreja. Terminado o tempo das chuvas, surge um novo problema: a RFFSA não deixa os flagelados reconstruírem seus barracões. A comunidade procura autoridades da prefeitura, de Diocese e da RFFSA e, depois de muitas reuniões, conseguem licença para a reconstrução dos barracões.

Nesse meio tempo, a comunidade começou a trabalhar no projeto de um. curso supletivo. Devido a dificuldade da ordem estatal, fomos obrigados a ministrar as aulas no salão da Igreja e em uma outra sala de um barracão oferecido por um dos membros da comunidade para este fim.

Aos poucos, uma nova reorganização se estabelecia: o curso supletivo e a feira comunitária com seus preços mais acessíveis.

O GROTESCO DO POLÍTICO

Com o movimento constante de membros do Centro Social da Vila na prefeitura, alguns políticos começaram a ouvir, falar da Vila São Gabriel. E houve quem fosse ver para crer.

Começaram ar as ajudas e facilitações nos empreendimento, em troca de uma placa com o nome do político próximo às obras, ou comentários do nome do dito cujo nas reuniões comunitárias. Deste modo alguns políticos estavam conquistando prestígio. As assistentes sociais e o padre procuravam sempre conscientizar as pessoas para esse tipo de coisa, mas ingenuamente eles sempre caíam, Há casos até grotescos, como o de certo político que, sabendo que seria feita a procissão de um santo, ajudou na compra de foguetes e bandeirolas e prometeu até mesmo participar da procissão; e deu a seguinte sugestão: a procissão sairia da casa de um certo '''fulano'' rumo à igreja e no meio do caminho pararia por um tempinho para ele fazer um pequeno discurso para o povo. O padre ao ver tal programação não concordou; o que causou grande raiva a muita gente. Outro político, em uma reunião do Centro Social, virou-se para o Presidente do centro social, que era um homem simples e batalhador, e elogiou o seu trabalho nos seguintes termos: - O seu lugar não e só aqui: o seu lugar é junto com a gente na Prefeitura. Bastou isso. A partir daí o pobre coitado só sonhava com o seu lugarzinho na prefeitura; e tornou-se um pequeno corrupto dentro do centro social.

71

DISCÓRDIAS NA COMUNIDADE

Alguns episódios começaram a causar discordâncias entre o presidente do Centro Social e o padre. Houve o problema de um lote doado para a Igreja e que o presidente do Centro Social registrou, sem consultar ninguém, em nome do Centro Social. Houve também o problema de uma eleição para a presidência do Centro Social. Toda a comunidade deveria votar. A votação foi feita sem comunicado à comunidade e o presidente foi reeleito. O padre foi contra a votação e aí começou a briga entre a igreja e o Centro Social. A briga durou alguns meses e revoltou toda a comunidade que preferiu apoiar o padre. Como o ambiente estava tenso, a congregação resolveu transferir o PADRE e colocar outro padre em seu Lugar. A comunidade protestou contra a saída do padre mas nada adiantou. Com a sua saída, a comunidade se voltou contra o Centro Social, não dando o seu apoio e criticando; muitos membros abandonaram a igreja. Sem o apoio da igreja e da comunidade, o Centro Social perdeu sua voz ativa. A feira aos poucos foi se desorganizando até acabar, assim como o curso supletivo.

Mas o tempo passou e a comunidade persistiu. Hoje a Vila São Gabriel tem a maioria das suas ruas calçadas ou asfaltadas, O antigo córrego foi canalizado e sobre ele está sendo construída uma avenida. Agora, a comunidade tem água, telefone, luz, escolas maiores com ensino até a 8 a série, posto médico {naquele salão que a comunidade construiu} e outras benfeitorias pelas quais a comunidade lutou com todas as forças.

Há um projeto, que já foi aprovado na prefeitura, em que a Vila São Gabriel e adjacências passará a se chamar Bairro Nazaré. Aquela capelinha, hoje, é sede da Paróquia Santa Maria de Nazaré. O Centro Social voltou a trabalhar em conjunto com a igreja, e está ligado a outras associações de bairros. Está funcionando sob a sua liderança a Sopa Comunitária, que atende a mais de 200 pessoas carentes; isto com a ajuda da Secretaria do Trabalho. Há projetos de organização de cursos profissionalizantes como Corte e costura, eletricista, bombeiro hidráulico. Há, também, o plano de construção de uma área de fazer com quadras e parque infantil. Nestes projetos estão empenhados a igreja, o centro social e a escola. E na clássica junção igreja/estado a antiga Vila São Gabriel passa a Bairro Nazaré com uma dose de autoritarismo num discurso pretensamente co-gestionado:

Nós, padres da Paróquia Santa Maria de Nazaré, temos a grata satisfação de convida-los para um encontro que promoveremos com todas as Associações e Movimentos Comunitários dos bairros existentes na área de nossa paróquia.

Queremos, participar com vocês das duras partidas que as várias associações têm e irão enfrentar, diante dos vários problemas que afligem nossa religião. Acreditamos na força que vocês têm e na força da união. Queremos estar ao lado, de quem realmente quer trabalhar pelo bem-comum de todo um povo que sofre no seu dia a dia. Queremos nos comprometer com vocês.. (Convite do Vigário a todos os membros da comunidade)

VILA, MISÉRIA, MARIA

Eny Barbosa( * )

Valéria Marques ( * )

Em 1979 foi criado o projeto de construção de 824 casas para abrigar os flagelados da enchente que se abateu sobre Belo Horizonte.

A maior parte dos desabrigados não aceitou a idéia de ocupar tais casas, retornando ao seu local de origem.

As casas eram pequenas, de madeirit, sem divisões internas, nem banheiro. O orçamento unitário ficou em Cr$ 27.000 (vinte e sete mil cruzeiros) e a obra foi realizada no bairro Gorduras, localizado na periferia de Belo Horizonte. Ali fora aproveitada uma área com serviço de terraplanagem e captação de águas. Foram construídos 6 chafarizes. Depois da obra concluída e ante á recusa dos flagelados em ocupar as

( * ) Alunas da disciplina Psicologia Comunitária e Ecologia Humana.

Departamento de Psicologia da UFMG.

73

casinhas, a imprensa divulgou a existência desse aglomerado habitacional, O noticiário atraiu a atenção de pessoas carente de habitação e logo foram chegando os primeiros necessitados, que pretendiam ocupar as mini-casas. Entre eles o senhor José da Costa Santos que, com sua família, ocupou um barraco em Setembro daquele ano. Vindos dos diversos locais de Belo Horizonte e do interior, novos pretendentes apareceram, surgindo assim o conjunto.

A comunidade passou a receber recursos financeiros através da Chisbel e do DNER. Estes recursos iam para a Igreja de Santo Antonio localizada num bairro próximo. E isto acontecia por não existir ali uma Associação de moradores capaz de administrar os problemas daquele recém-nascido núcleo social.

A partir de então, um grupo de pessoas começou a fazer campanha para criar uma Associação Comunitária que cuidasse dos interesses da Comunidade. Em 1980 foi criada a Associação de Moradores do Conjunto Residencial dos Gorduras-Vila Maria. O nome surgiu como homenagem a uma das moradoras da vila, Da. Maria Alves, pessoa ativa e dinâmica nas buscas de melhores condições para aquela comunidade. Graças ao seu empenho pessoal e ao esforço de outras pessoas, a vila começou a experimentar melhorias.

Um primeiro passo foi a promoção de cursos profissionalizantes: bombeiro hidráulico, eletricista, pedreiro, mestre de obras, corte e costura e outros. Cursos que posteriormente caíram no descrédito, porque os moradores profissionalizados não conseguiram emprego.

Mas em seguida vieram o Posto de Saúde, uma Escola e mais 99 casas novas construídas com recursos e projeto do BNH. A comunidade passou a receber uma cesta de alimentos básicos e uma sopa.

Contudo, a miséria persiste, como se a sopa, a cesta, o posto de saúde fossem paliativos passageiros. E na verdade o são, pois por mais que parecem ser supridas as necessidades, elas são enormes. E isto se vê na vida diária daquelas pessoas que conseguem sobreviver ali.

Num espaço pequeno, famílias grandes vêem seus problemas multiplicados. Compartilham a falta. Comungam o desconforto, inertes e impotentes ante adversidades invencíveis decorrentes do desemprego, da extrema pobreza e da falta de oportunidades. A inexistência de saneamento básico espalhando doenças, disseminando o desânimo e estabelecendo uma condição de vida contemplativa das mais desesperadoras. A fome e o sofrimento ali são gêmeos nascidos de uma gestação de infortúnios que se repete a cada dia, meses e anos a fio.

74

Paradoxalmente, o topônimo Gorduras sugere abundância, fartura.

Mas o que há mesmo é um sofrimento calado, sufocado, de um povo que não pode - porque não sabe - comunicar a sua necessidade de viver e progredir. Que se acomoda num parco sobreviver. Que. não possui a linguagem para fazer chegar até aqueles que deveriam lhes dar condições menos sob-humanas de vida. E quando podem exprimir o que sentem, através da próprio situação no mundo, sua comunicação não sensibiliza a indiferença dos poderosos.

Num dos barracos, mora Da. Maria, viúva, 5 filhos. Divide o barraco, com ela, uma cunhada; com marido e filhos, são mais 8 pessoas. De um lado só um cômodo. Do outro, o quarto e uma saleta para a televisão. O espaço é mínimo, não há banheiro e são ao todo 14 pessoas que usam o banheiro da vizinha em frente á casa, um pequeno jardim.

Ali elas se ajudam mutuamente, olhando os meninos, cuidando da casa.

As crianças ficam mais na rua quando não estão na Escola. Ficar em casa só mesmo na hora de dormir. Hora em que todos se aglomeram naquele pequeno espaço, pois a noite lhes oferece a magia de abrigar a todos sob o manto do esquecimento temporário das angústias que o clarear de todo o dia teima em evidenciar.

A vida e o trabalho de casa: lavar, passar, cozinhar, além da preocupação com as crianças e os filhos mais velhos, crescidos e desempregados desesperançosos tristes, vítimas em potencial de vícios e da marginalidade.

De outro lado da vila, as casas de alvenaria, a área dos privilegiados; com um pouco mais de segurança, ali eles vivem dias de esperança, sonhando com um futuro menos penoso para seus filhos.

75

CASAS MALDITAS: RENDEZ VOUZ DE DESENCONTROS

Elizabete B. Assis ( * )

Marcia F. Azevedo ( * )

Introdução:

Chegamos afinal à parte prática do trabalho: sair em busca desses lugares e dessas pessoas que povoam em fantasias o universo mental de tantos (incluídas nós próprias, que, não por acaso, resolvemos fazer esse trabalho).

Tomadas de atração e repulsa e medo, nos lançamos à cata do misterioso mundo da prostituição. Muitas vezes, como fruto mesmo dessa nossa ambivalência, estivemos muito entusiasmadas com a idéia em alguns momentos; em outros, o que sentíamos era desânimo, vontade de abandonar, buscar algum tema, menos perigoso, mais leve sabíamos que estávamos mexendo com alguma coisa que nos tocava, e isso atestávamos no Suor frio das mãos e no disparar louco do coração, meio apertado, diante da porta das casas que visitávamos.

De uma visita:

O Antes:

Muitas fantasias. Expectativa e ansiedade. Medo? Indagações não faltaram... Como seríamos recebidos? De que assuntos tratar: o individual, o coletivo? Deixa rolar... e chegamos. Aos trancos e barrancos, escalamos a escadaria que conduz à entrada principal. Escuridão, um peso no ar, local carregado e bastante opressor. Seriamos vistas entrando num local como aquele? E se encontrássemos alguém ali? E num ímpeto de acabar logo com aquilo, um gesto mecânico de levar a mão à campainha. Um portão de ferro, uma pequena janelinha de grades - ( como num presídio? ) se interpunha entre nossa ansiedade e o alvo de nossa curiosidade. Uma porteira desconfiada e mal encarada nos pergunta da janelinha o que queremos. Vai chamar a Dona, não sem antes passar uma olhadela minuciosa em cada um de nós, da cabeça aos pés. Alguns segundos (que nos pareceram horas. ) e a figura simpática, meio sem graça da Dona nos convidando para entrar e finalmente o confronto .

( * ) Alunas da disciplina Psicologia Comunitária e Ecologia Humana. Depto. Psicologia .- UFMG.

76

De Durante:

Caímos numa sala, que, afora nossos conhecimentos anteriores nada de mais nos sugerir. Um som ambiente (baixinho) quebrava um pouco o silêncio do local. Algumas mulheres, sentadas na sala de espera, olhares curiosos analisavam-nos. Figuras estranhas atacam novamente, quem serão, o que mais querem de nós, que já vivemos doando. Apresentados pela Dona da casa, esclarecidos nossos objetivos, algumas se levantavam prontamente, num ato de coragem e por que não dizer fé. Outras murmuravam qualquer coisa e continuavam em seus lugares, recusando em deixarem levar por mais essa invasão de suas privacidades. Vamos passando por um comprido corredor que vai terminar numa espécie de área de serviço, onde nos acomodamos numa mesa para conversarmos.

O Discurso:

Aqui é um lugar que tem tudo de ruim, que você pode imaginar, intrigas, tudo de ruim, e é aqui, neste trecho do depoimento de uma prostituta, que já podemos começar a imaginar o universo de contradições no qual estão inseridas, posto que pouco antes a conversa era outra: vamos conhecer o que se chamam o lado alegre da vida, a mulher da vida fácil.

De fato, em nossas entrevistas fomos assaltadas várias vezes por um certo tipo de estranheza diante das falas que nos surpreendiam, ou que reviravam de repente alguma idéia que nos parecia muito certa até então. Era uma escuta em que éramos surpreendidas a todo instante, e a impressão que tínhamos era que estávamos tratando de uma coisa muito mais complexa do que podíamos imaginar.

Encarada por algumas prostitutas como uma vida muito triste, cheia de desgraças, que não deve ser especulada por ninguém, e por outros como uma profissão qualquer, o que podemos notar é que a profissão de prostituta não é uma carga muito leve e fácil de ser carregada.

O lado da vida fácil nos pareceu um lado difícil e sofrido, posto que ali tudo é conquistado com esforço e sacrifício.

A obsessão genital que é atribuída a essas mulheres por projeção já foi por elas praticada demais para ainda despertar algum prazer. Elas não participam do gozo de seus clientes, e talvez seja por isso que possam tirar um lucro com isso: Aqui

77

a vida da gente é só dinheiro, então o dinheiro nem todas as vezes preenche aquilo que você precisa; dinheiro não traz satisfação total.

E é em busca de dinheiro, que repetem mecanicamente o mesmo ritual várias vezes por dia com seus clientes: uma entrega do corpo completamente desprovida de qualquer tipo de gozo, uma mera repetição de um gesto já automático. Mas nem por isso esse gesto pode ser por elas desvalorizado: a sua estratégia de sobrevivência consiste na exaltação sistemática do sexo, seja no seu modo escandaloso de vestir, seja no modo como descrevem e oferecem o programa para os seus clientes (Vem fazer gostoso ), seja no modo como fingem o prazer que não alcançam.

Definido como uma prática comercial ou profissional, o sexo passa a ser um artigo que necessita de uma certa estratégia de venda, de uma certa publicidade para vender bem. Com nas leis de mercado, é um objeto que deve ser anunciado como um portador imediato e continuo de satisfação.

Na batalha por essa estratégia alguma das moças define a prostituição como um grande teatro: Tudo aqui é teatro, representação. Nós somos atrizes.

Para eles - (sociedade em geral) somos uma espécie de monstros, mulheres completamente estragadas que tem uma mentalidade monstruosa, mas é na cabeça deles que tudo isso acontece.

Conscientes do preconceito e da discriminação que sofrem por parte da sociedade, não se julgam meras destruidoras de lares, maníacas sexuais, desonestas, perigosas, monstruosas.

Pelo contrário, se defendem ( e não sabemos até que ponto elas realmente acreditam na sua defesa) dizendo ser (ou serem?) a salvação de tudo: Os homens casados vim aqui, reclamam do mau comportamento dos filhos, dizem que não suportam mais as esposas... Chegam aqui e desabafam tudo pra gente/ aqui é igual a uma sacristia: a gente ouve as confidências, dá conselhos, dá carinho... E muitas vezes é isso que salva o casamento deles. Eles ficam mais calmos e podem ir para casa ficar com sua família

Tem muitos homens carentes, que não tem ninguém, ar eles vem aqui buscar carinho, atenção. Nossa missão aqui é só dar, e não receber. Aqui não podemos estar tristes: temos que estar sempre alegre, os nossos problemas tem que ser esquecidos, temos de fazer de conta que eles não existem. São os ossos do ofício.

78

Se sentindo muito carentes afetivamente, mostram-se extremamente desconfiadas frente à possibilidade de uma relação afetiva: acham em geral, que os caras se aproximam delas aproveitando-se do fato delas serem carentes; mas na verdade eles só querem explorá-las, conseguir dinheiro ou conseguir programas sem ter que pagar. Isso dificulta e reforça ainda mais o vazio afetivo em que vivem.

Na busca de cobrir um pouco essa carência efetiva às vezes amigas de uma ou outra das moças com quem convivem na mesma casa; nesse ponto podemos perceber implicitamente nas nossas visitas, uma relação bastante hostil das moças entre si: um certo clima de desconfiança e hostilidade.

Em geral acreditam e confiam segredos para as cafetinas, a quem, de certa forma, é atribuído o papel de uma grande mãe. Essas, por sua vez, só vê nas prostitutas a perspectiva de lucro certo. Dessa forma o afeto parece ser conquistado numa troca lucro x afeto.

Nas relações com a família ou a identidade profissional é encoberta e substituída por ,uma outra, falsa, ou é revelada e compactuada pela família ( a cumplicidade - em troca de bens de consumo mais sofisticados e que tem acesso através das prostitutas.) .

Aqui parece que a relação de troca lucro x afeto se repete várias vezes: da mesma forma que as prostitutas vêm nos seus clientes só o comércio, uma ponte entre elas e o dinheiro, elas também funcionam como ,essa ponte muitas vezes, em se tratando das relações com as cafetinas, com algumas famílias e com os gigolôs.

Mesmo segregada por alguns segmentos da sociedade, a prostituição carrega consigo o que é da própria estrutura social: um conjunto de valores, de regras, de posições hierárquicas, a divisão em classes, etc...

Sendo assim, o funcionamento de uma casa de prostituição, por exemplo, se baseia no cumprimento de rituais firmemente estabelecidos. O cumprimento de horários; o domingo, como dia de folga; a forma estereotipada com que se dá o contato com os clientes; o respeito pela dona da casa; a obediência a certas proibições...

Numa casa de prostituição existe também uma adequação a um certo padrão de moralidade, que deve ser cumprido ( não beber, não fazer arruaça, não romper o trato feito com os clientes... )

E várias vezes, quando querem se defender de preconceitos de que sabem ser vítimas, argumentam em cima da sua competência moral, atacando a incompetência moral da sociedade:

79

tem mocinha burguesa aí que faz coisas num bar que eu não teria coragem de fazer. Nós somos putas daqui pra dentro. Lá fora nós somos tão respeitáveis quanto qualquer pessoa, porque a gente sabe se comportar. Essas mocinhas de hoje só querem saber de andar na garupa de moto, tirar sarro com o namorado e fumar maconha.

Final

Mesmo sendo alguma coisa inscrita na ordem do proscrito e do maldito, a prostituição é um lugar também demandado pela sociedade que dá certas concessões e um espaço para existir.

Falamos então de um duplo lugar: da alguma coisa associada ao lixo, a sujeira, mas também de alguma coisa que tem uma certa função e uma existência - podemos até arriscar a dizer intensamente desejados.

Na geografia das cidades o bordel sempre foi tão indispensável quanto a igreja, o cemitério, a cadeia e a escola, integrando-o à paisagem ainda que, muitas vezes, significativamente localizado nas fronteiras da cidade. A sociedade elabora procedimentos de segregação visível a integração invisível, fazendo da prostituta peça fundamental da lógica social.

Fragmentos:

O homem de grandes negócios fecha a pasta de zíper e toma o avião da tarde. O homem de negócios miúdos enche o bolso de miudezas e toma o ônibus da madrugada. A freira faz orações diariamente em horas certas. A prostituta faz o Trottoir todos os dias em certas horas. O operário joga bilhar e faz amor nos feriados.

Homens, mulheres e crianças - todos com seus dias previstos e organizados, As obedientes engrenagens da máquina funcionando com suas rodinhas ensinadas, umas de ouro, outras de aço, estas mais simples, mais complexas e aquelas lá adiante ajeitadas para o movimento que é uma fatalidade: taque-taque, taque-taque. Apáticos e não apáticos, convulsos e apaziguados, atentos e delirantes em pleno funcionamento num ritmo implacável. (Extraído de A Disciplina do Amor de Lygia Fagundes Telles).

80

SAÚDE MENTAL E SAÚDE PUBLICA:

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Maria Stella Brandão Goulart*

O enfoque sobre o tema Saúde Mental decorre de preocupações que se articulam com questões conjunturais de grande importância na administração pública em saúde, como, por exemplo, a participação da população no planejamento, execução e avaliação de serviços: a preocupação de alguns grupos com a integração, ou compensação de esforços, a nível institucional (como a criação do Sistema Unificado de Saúde e também o Programa de Ações Integradas de Saúde}; e os esforços no sentido de entender e tratar a prestação da assistência em Saúde enquanto uma responsabilidade do governo e não como uma mercadoria submetida ás leis de mercado do modo de produção capitalista. Estas são questões sobre as quais se exige uma tomada de posição, tanto do ponto de vista acadêmico, como profissional, reconhecendo, sempre que possível, suas repercussões a nível nacional e a nível do trabalho quotidiano dos diversos agentes envolvidos.

Diante da possibilidade de um governo democrático, de uma constituinte, devemos avaliar os limites, as possibilidades os discursos buscando fazer do nosso trabalho um instrumento de conhecimento e de democratização do saber.

Neste contexto analisemos algumas questões. A Saúde Mental, como pensá-la no bojo das transformações das políticas de Saúde? Quem se preocupa com a saúde mental da população? E por que motivo? Com relação ás prioridades na administração pública dos serviços de saúde que lugar a saúde mental ocupa? Deva ser tratada como um sub-projeto no campo da Assistência médica? Será ela uma decorrência imediata da malharia das condições de vida?

É notório que as ações em saúde mental tem ganhado expressão significativa na administração dos. serviços de saúde. O Estado tem assumido, particularmente nos últimos cinco anos, responsabilidades crescentes neste setor. Antes disto os serviços públicos saúde mental se resumiam ás internações em hospitais psiquiátricos, à assistência na área psicopedagógica, (bastante precária) e a alguns convênios de assistência

* Psicóloga com formação em Saúde Publica Professora do Curso da Pedagogia do Instituto Cultural Newton de Paiva e do Departamento da Psicologia da PUC - MG. Membro do CEPEP (Centro de Estudos e pesquisas em Educação e Psicologia)

81

psicoterapêutica. Notava·se, de maneira significativa, a precariedade e a limitação de oferta de serviços bem como a inexistência de planos e projetos que integrassem ou mesmo organizassem os serviços em torno de uma política assistencial coerente.

Atualmente a situação tem uma configuração diferente. Assistimos por exemplo, em Minas Gerais, à implementação de um plano de reorientação da assistência em saúde mental.

Este plano propõe sistematizar as ações em saúde mental que já existiam a mais tempo (internação psiquiátrica) e as ações que nos últimos cinco anos, aproximadamente, foram sendo construídas de forma quase ocasional por profissionais (psicólogos enfermeiros) da área de saúde nos centros de saúde. Propõe também estender estes serviços a todo o Estado de Minas Gerais constituindo equipes de saúde mental articuladas a centros de saúde (unidade de prestação de serviços da Secretaria de Saúde do Estado de Minas Gerais).

Vai-se insinuando nos serviços públicos o perfil de uma prática que, ao contrário do que possa parecer, está mal acabada cor precedentes históricos e que revela contradições sociológicas que vem se desenvolvendo na sociedade brasileira.

Atualmente, por ações em saúde mental entende-se na área de saúde pública práticas muito diversas, como por exemplo, atendimentos psicoterapêuticos individuais e grupais, distribuições de psicofármacos, assessoria a instituições educativas psicometria, que incidem sobre outros agentes de saúde (treinamentos em saúde mental), etc.

Convém enfatizar que estas práticas orientam-se de forma muito diversificada do ponto de vista teórico e se dão em dois níveis asilar e extra-muros ou ambulatorial, os quais são respectivamente nomeados em saúde púbica, por analogia á organização da assistência médica. nível terciário e secundário/primário.

A analogia à organização da assistência médica não é circunstancial ou gratuita. A medicina ocupa um lugar de relevo técnico-político nas ações em Saúde mental apesar destas também envolverem outros corpus de conhecimento, ou corpus discursivos, como a psicologia, a enfermagem, o serviço social a terapia ocupacional.

Ao situar os precedentes históricos do planejamento público notoriamente político - em saúde mental é importante apontar para alguns aspectos da relação entre Estado e ação médica no Brasil do inicio do século, período que marca um estirão de industrialização e de urbanização.

Nesse período encontramos a preocupação governamental com a saúde sempre articulada á necessidade de controle social. A

82

medicina foi ocupando em grande medida, um lugar onde anteriormente se encontrava a justiça e a polícia. Jurandir Freire Costa, em seu livro Ordem Médica e Norma Familiar coloca a questão nos seguintes termos: O Estado aceitou medicalizar suas ações políticas reconhecendo o valor político das ações médicas.

A palavra de ordem, por exemplo, neste momento, foi a SALUBRIDADE, que viria fazer frente às epidemias, febres, fogos de infecção e contágio do ar e da água. A higiene revelava a dimensão médica de quase todos estes fenômenos físicos, humanos e sociais, e construía para cada um deles uma tática específica de abordagem, domínio e transformação.1

A assistência em saúde mental sempre esteve ao que parece também a reboque da prática higienista articulada ao estado, Uma instituição que ilustra esta posição é a L.B.H.M.- Liga Brasileira de Higiene Mental. Fundada em 1923, tinha o objetivo inicial de melhorar a assistência aos doentes mentais através da renovação dos quadros profissionais e dos estabelecimentos psiquiátricos.2 Seu fundador, o psiquiatra Gustavo Riedel, já desenvolvia, na ocasião, atividades que hoje em dia são consideradas absolutamente inovadoras como: ambulatório de profilaxias das doenças mentais, serviço aberto para psicopatas, laboratório de psicologia e uma escolha de enfermagem onde eram formadas as monitoras de higiene mental. 3

Já em 1926, a L.B.H.M. desdobrava sua área de intervenção caminhando no sentido da prevenção, eugenia 4 e educação dos indivíduos, associando saúde mental a problemas de ordem cultural e social.5 Ora, este discurso ressoa coma atual. Vejamos o caso da psicologia que tem investido substancialmente no setor público, ocupando lugar de destaque com uma prática extra-muros. Ou seja, o atendimento ambulatorial e comunitário tem ficado a cargo do profissional de psicologia que vai ganhando um perfil muito interessante, que poderíamos chamar de Psicólogo generalista: um técnico polivalente e barato.

Supostamente este profissional da área da Psicologia deveria trazer para O seio da prática médica algo novo, uma leitura específica de seu objeto de intervenção. Ocorre, entretanto, um desdobramento, um alargamento da Instituição Psiquiátrica (médica) como se os fenômenos psicopatológicos ganhassem, recorrentemente, mais e mais expressão e reeditassem uma prática intervencionista sem limites (como a L.B.H.M.). Onde anteriormente se apontava o louco, agora está a gestante a mãe a criança, o adolescente, o leproso, o tuberculoso e seus respectivos grupos, como também a família, o casal, a igreja, a comunidade, até a mais completa difusão do objeto de trabalho da Psicologia: os fenômenos psíquicos, isto é nítido no relato dos profissionais de psicologia: A título de ilustração, vejamos o

83

Que está expresso no relatório dos psicólogos dos Centros de Saúda de Centro Metropolitano de Saúde – CMS –: no questionamento constante das atividades desenvolvidas e através de se observar o tipo de clientela atendida, as condições físicas e o número reduzido de profissionais em proporção à enorme do demanda, concluiu-se que o trabalho do psicólogo, neste contexto é bastante abrangente e dirigido a uma clientela, onde as necessidades, antes de psicológicas são econômicas, sociais e culturais. 6

Qual é a lógica que regula esta hierarquização?

Por que se comparar, ou se reduzir a termos de semelhança, fenômenos tão diversos?

O discurso oficial chega a ser mais expressivo ainda . No documento do Conselho Consultivo da Administração de Saúde Previdenciária (CONASP), na defesa da criação do Programa de Reorientação da Assistência Psiquiátrica Previdenciária, encontra-se o seguinte texto: a severa desigualdade na distribuição de renda, a acelerada expansão demográfica, a progressiva urbanização da populações, o afrouxamento dos vínculos familiares, a precariedade das habitações, a carência alimentar, as dificuldades de transporte e o desemprego, são fatores de tensão e condicionadores da demanda crescente por assistência psiquiátrica. Á pobreza, em si e por si mesma, 7 coloca essa população mais vulnerável aos distúrbios psíquicos e empresta a estes um caráter de maioridade.

Quais as consequências da associação; carência, tensão e assistência psiquiátrica? Por que se Justifica a assistência em Saúde Mental tomando a vida psíquica do ponto de vista sócio-econômico? Podemos supor que por detrás deste discurso, sustentando-o, existe um levantamento epidemiológico que trabalha este tipo de variáveis, ou seja., as relações entre saúde mental e condições de vida?

Este discurso impele a responder à severa desigualdade na distribuição de renda através da prestação de assistência na área da saúde mental. Não seria um convite à psicopatologização de questões políticas, econômicas e sociais? Em que argumentos se apóiam as afirmações do discurso oficial?

Absorvido por esta frente de trabalho, o que resta ao profissional da área de saúde pública senão se agarrar a esta fatia de mercado de trabalho compondo projetos muitas vezes inocentes de organização da comunidade, educação para saúde mental e de prevenção de doenças mentais?

84

O profissional de saúde pública corre o risco de perder a dimensão de seu objeto ou trabalho a se vê encurralado entre a militância - na qual se sente na obrigação de conscientizar seus clientes - e a mistificação técnica de sua profissão - na qual deverá patologizar a pobreza. Desde sua inserção no mercado, seu objeto de trabalho toma um cunho eminentemente imaginário e dá lugar às variadas práticas profissionais em saúde mental .E quem tem fica do lado de fora de todas estas estratégias se não o próprio louco, o psicótico e derivados?

Por outro lado, será que os setores populares desfavorecidos realmente enlouquecem mais facilmente que os setores dominantes? O que se chama de loucura. de distúrbios psíquicos, no caso?

Seria interessante fazer uma breve projeção deste tipo de hipótese: diante da afirmação de que saúde mental e condições sócio-econômicas estão associadas, articuladas por uma relação de causa e efeito, não seria surpreendente o fato de pelo menos 90 % da população ainda estar fora dos hospitais psiquiátricos? Isto considerando a não atualidade do fenômeno pobreza. Recordando aqui a fabulosa obra de Machado de Assis, O ALIENISTA, que comenta sobre as aventuras de um estudioso diante da conceitualização e definição de uma política coerente de intervenção na área da saúde mental, não deveríamos, pois, nos questionar quanto à natureza e coerência destas postulações?

Devemos repensar em que se apóia o discurso oficial sobre saúde mental para não correr o risco de nos alinhar politicamente - mesmo à revelia de nosso desejo - ao lado daqueles que pensam que os setores populares desfavorecidos, depauperados, não tem competência para o gerenciamento de seu destino. Como poderiam ter, se estão na melhor das hipóteses a um passo de loucura!

Imaginemos, pois, que estamos diante de mais uma proposta de intervenção normatizadora. A extensão dos serviços de saúde mental não viria, na atual conjuntura, implementar um neo-higienismo que serviria de estratégia de controle e normatização social?

É importante acentuar aqui que não faço, exclusivamente, uma crítica à extensão dos serviços, pois estaria me contrapondo a conquistas significativas da classe trabalhadora que apontaram para a relevância da prestação de assistência em saúde.

Observo, entretanto, que a prática em saúde mental desdobra-se em áreas muito diversas, promovendo uma indefinição do objeto de intervenção. Se tudo á patológico, o que é especificamente patológico? A intervenção perde seus contornos para abrigar

85

uma produção generalizada de significados que se ramifica pelos diferentes níveis do quotidiano.

Ou pelo menos que se pense sobre quem deverá incidir a política de saúde mental !

- Sobre os sadios? Quem são?

- Sobre os doentes? Onde estão? ...

Penso, que ao final deste texto, deveria apontar duas questões sobra as quais devemos deitar olhares cautelosos.

A primeira reinscreve uma das preocupações iniciais deste artigo: A Participação Popular. Ora, quais são as reais necessidades da População no que diz respeito especificamente à assistência em Saúde Mental? 0 que a população tem a dizer e quais seriam seus possíveis canais de expressão? Aqui, estaríamos reafirmando um comprometimento político com os setores populares, como desdobramento de uma postura que deveria ser determinante em todo é qualquer planejamento em saúde.

A segunda diz respeito à questão da normalização e regulação da clientela coberta, Levanto a possibilidade de que esteja havendo uma intervenção acionada pela extensão dos serviços de saúde mental que desloca e retraduz hábitos quotidianos segundo uma linguagem médica/psicológica. A ordem cultural sofreria os efeitos desta intervenção como um incitamento à mudança. Resta-nos saber em que sentidos e para qual usufruto tais mudanças ocorreriam bem como que contradições arrasta consigo.

A terceira questão é um convite de continuidade a este artigo, endereçado aos profissionais de saúde mental e, especificamente, endereçado aos psicólogos: não seria o momento de se repensar o nosso objeto de trabalho? Fugindo de todas as históricas repetições e descaminhos metodológicos, não seria o momento de nos exercitar para além da instituição médica e para além da racionalidade administrativa estatal?

NOTAS

(1) - COSTA, Jurandir Freira - Ordem Médica e Norma Familiar Editora Graal, Rio de Janeiro, 1983.

(2) - COSTA, Jurandir Freire - A História da Psiquiatria no Brasil, Editora Documentário, Rio de Janeiro, 1976.

(3) - Idem.

(4) - Grande Enciclopédia Delta Larousse: Ciências que estuda as condições mais favoráveis á reprodução e aprimoramento da raça humana, pelo cruzamento de indivíduos selecionados. O mesmo que ortogenia, seleção humana.

86

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda - Novo Dicionário da língua portuguesa: Ciências que estuda as condições mais propícias á reprodução e melhoramento da raça humana.

(5) - A L.B.H.M. apresenta um discurso fortemente influenciado pela psiquiatria alemã que subsidiou ideologicamente o movimento nazi-fascista europeu, que tomou a forma de um saneamento social. A intelectualidade brasileira enfrentava, na época, graves problemas ideológicos que a eugenia ajudou a selecionar. O regime republicano atravessava, as duas primeiras décadas da década; enfim, os efeitos econômicos da industrialização nascente agravava as tensões sociais e colocavam em procurava justificar pó todos os meios. (Costa, Jurandir Freire vide item(5).

(6) - O grifo é a titulo de acentuação – Relatório de atividades dos psicólogos dos Centros de Saúde do Centro Metropolitano de Saúde de Minas Gerais. Numa segunda versão este relatório reescreveu este período da seguinte forma: ... onde as necessidades, tanto quanto psicológicas, são econômicas, sociais e pedagógicas.

(7) - O grito é meu.

87

ANÁLISE INSTITUCIONAl - ROTEiRO HISTÓRICO

Vera Zavarise

INTRODUÇÃO

Este trabalho é apenas um roteiro histórico na medida em que indica os pensamentos, os acontecimentos que contribuíram para formação da Análise Institucional, sem no entanto, aprofunda-los, e sem a pretensão de ter esgotado todas as contribuições. Constitui, basicamente, uma sistematização do que se encontra disperso nos textos dos autores indicados na bibliografia básica da cadeira de Intervenção Psicossociológica, ministrada pela Profa. Maria Regina Godoy Almeida, no curso de Psicologia da UFMG, ano de 1985. Não sendo possível proceder uma extensa pesquisa sobre os trabalhos com grupos no Brasil, particularmente com Análise Institucional, limitei-me a indicar a pioneira experiência de Minas Gerais. Agradeço à profa. Marília Mata Machado pela orientação e gentileza de ceder parte do material consultado.

ANÁLISE INSTITUCIONAL - ROTEIRO HISTÓRICO

Das várias definições dadas sobre Análise Institucional podemos apreender o seguinte: é um método de análise social, que privilegia um conceito de instituição, diz respeito à grupos, organizações e instituições, intervém ao nível de elucidar e/ou mudar, relações, isto é, tem um caráter intervencionalista e político. Esse aspecto político é enfatizado por René Lourau (1977), socioanalista francês, quando diz: a questão política se acha no centro da Análise Institucional.

Pelos elementos destacados acima, vemos que para melhor situar essa prática devemos recuperar seu caminho histórico. A história da Análise Institucional está com a história do desenvolvimento do capitalismo, dos estudos dos grupos, dos movimentos contestadores, na forma que, resumidamente, tentaremos mostrar.

George Lapassade (1983) ao historiar o seu movimento, entre 1963 e 1964, distingue três períodos no desenvolvimento econômico-social do mundo ocidental capitalista, tal como os formulou Alain Touraine (Guilherm, 1976), determinantes para o nosso estudo.

O primeiro período, séc. XIX, tem a marca de uma fase ainda inicial do Capitalismo, com o início das transformações sociais decorrentes da grande indústria, uma abundante força de trabalho, um operariado que tem ainda um ofício, e um sindicalismo incipiente.

88

São importantes nesse período as ideologias anarquistas e a formação das primeiras doutrinas sociológicas e políticas da sociedade.

Fourier, filho da Revolução Francesa, socialista utópico, propõe uma sociedade formada por pequenos grupos, os Falanstérios, e é contestado por Proudhon, auto proclamado o primeiro anarquista, que sem negar a instância grupal da sociedade, propõe a Associação mútua como solução para o problema social. (Guillerm, 1976).

Lapassade (1983) considera Fourier como o verdadeiro precursor da psicossociologia dos pequenos grupos e mesmo das técnicas grupais.

Saint-Simon (Lapassade, 1983) introduz a idéia de Organização, de substituição do político pelo gerente, e assim é tomado como o precursor de uma corrente tecnocrata que no século seguinte viverá seu apogeu.

Augusto Comte cria a Sociologia e a define como a ciência das instituições. Afirma que caberá aos sociólogos educar o proletariado nos pequenos grupos que se organizam espontaneamente. E a proposta da Sociocracia, que Lapassade (1972) resgata para afirmar que desde o início a Sociologia tem a intervenção como intenção.

Karl Marx rejeita as propostas, até então formuladas da organização da sociedade, e da ênfase à auto formação do proletariado, à discussão, à consciência social e a crítica das ideologias (Lapassade, 1972). Prega a mudança radical com a eliminação do sistema capitalista. Para ele a sociedade de grupos; nasceria após a decadência do Estado e da Burocracia. Coloca as Instituições na superestrutura,. mas não aprofunda este conceito. Bakunin, promove à síntese anarquismo-marxismo-comunismo. Critica violentamente o Estado e vê em Marx manifestações burocráticas (Guilherm, 1916)

O segundo período, início do séc. XX, é marcado pela evolução do capitalismo para uma forma imperialista, de grandes empresas multinacionais. Forma onde a burocracia condenada por Marx e elogiada por Max Weber se impõe, tornando-se um problema fundamental da organização e do poder. É o período da racionalização, da necessidade de regulação em todos os estágios da produção, do operário profissional.

Rosa de Luxemburg tenta revalorizar a idéia de espontaneidade das classes operárias, que teria como resultado a gestão, da sociedade pelos produtores, uma auto-gestão, através de uma forma institucional nova, o conselho operário (Guillerm. 1976).

O conceito da Sociologia como ciência das Instituições é sistematizado por Durkheim, que se interessa por grupos como a expressão dinâmica social e outros conceitos importantes para

89

a compreensão dos processos coletivos, formando assim uma base para a psicossociologia dos pequenos grupos (Saidon, 1983).

Lapassade (1983) considera clássica e conservadora a concepção de Durkheim e Weber sobre instituições e contrapõe à ela a concepção dinâmica e revolucionária de Rousseau, (Guillerm, 1916), neste período adotada apenas pelos anarquistas e grupos libertários do movimento operário. À esses primeiros sociólogos é imputada uma visão objetivista das Instituições onde não são consideradas as determinações das relações de produção, a psicologia Individual, o momento atual e a luta de classes. Apesar das críticas, Lapassade assinala que a escola francesa de, sociologia sempre reservou um lugar aos processos de consciência coletiva.

De capital importância neste início de século é o surgimento da Psicanálise de Sigmund Freud. Ele cria um método que leva ao conhecimento da mente humana e diz que o auto conhecimento á transformador.

O desenvolvimento da Psicanálise será fundamental para a Análise institucional.

Lapassade (1983) considera J. Pratts o pioneiro das psicoterapias de grupo, com os trabalhos que realizou em grupos de tuberculoses em 1906.

A partir de 1924, no bojo das críticas à burocracia, surgem a Sociologia Industrial, buscando métodos de tratamento, e a Psicossociologia, buscando solucionar problemas de rendimento na produção. Essa psicossociologia industrial, segundo Touraine (Lapassade, 1983), desde o seu nascimento definiu a Empresa como uma organização, um sistema de redes, status e papéis.

Os trabalhos de Elton Mayo para a Western Elétric Company, examinando problemas relacionados com o rendimento na produção, marcam o movimento da Relações Humanas, o nascimento de uma psicossociologia industrial centrada na análise dos grupos de trabalho (Lapassade, 1983), com a qual foi possível analisar a vida social da equipe, seus conflitos internos, seus jogos, suas relações.

Desde 1920, J.L. Moreno desenvolve técnicas de investigação social chamadas sociométricas e toma como fatores terapêuticas principais a catarse e a dramatização dos conflitos psicológicos. Em 1931 ele cunha a expressão Psicoterapia de grupo.

A Sociometria de Moreno á interpsicológica, intui a dimensão institucional nos grupos e se apresenta como técnica de mudança social.

Em 1936 P.Wender e P. Schilder utilizam técnicas psicanalísticas com grupos terapêuticos. É a primeira referência de utilização das técnicas e teoria psicanalítica para um trabalho não individual

90

Kurt Lewin, inicialmente psicólogo experimental interessado na psicologia individual desenvolve, a partir de 1938, a teoria da dinâmica de grupo aparece em 1924. Lewin introduz o conceito de pesquisa ativa, Action research, comprometida com as mudanças que pode desencadear, tendo a investigação e a intervenção uma estreita relação. Detecta que constituem aspectos essenciais na vida dos grupos a mudança e a resistência à uma mudança. Estuda a questão da decisão e da liderança. O campo social é o objeto do seu interesse nos últimos anos de vida. Em 1946, a partir de uma investigação sobre conflitos raciais conduzida por Lewin, Lippit, Benne e Bradford, é criado o National Training laboratory in Group Development, N.T.L. (Ardoino, 1967).

A partir da década de 40 a Psicoterapia de grupo adquire o status de cientificidade. Vemos a consolidação das idéias de grupo como algo mais que a reunião de pessoas, e a intervenção como trabalho do psicólogo. Os trabalhos de Mayo, Moreno, Lewin Freud são determinantes nessa passagem da agrupação para o grupo.

A segunda Guerra mundial nos remete para o terceiro período. Mudanças tecnológicas transformam a produção e a gestão. Nasce a sociedade neo-capitalista, onde a burocracia perde a sua rigidez e é capaz de assimilar os desvios e praticar a dinâmica de grupos. Os sistemas de controle social se modernizam e os conflitos econômico-político-ideológico se transformam em problemas de psico-profilaxia e psicoterapia. O operário é agora, especializado.Na verdade é alienado.

Multiplicam-se as práticas grupais. A necessidade de extensão do atendimento em saúde mental á setores mais: amplos da população, e a necessidade de recuperação rápida da mão-de-obra deteriorada, determinam, entre outras, o surgimento de programas comunitários e o desenvolvimento das técnicas terápicas de grupo.

O NTL , em 1947, em Bethel, promove um seminário experimental onde é testado um novo, método de trabalho com grupos, o Training Group (T.Grupo), que visava uma modificação profunda das atitudes dos elementos de um grupo através de uma formação experimental. Seriam programas de formação centrados sobre a experiência, métodos adequados de análise e feed-back (Ardoino, 1967). Fela Moscovici (1965) que 15 anos mais tarde executará no Brasil uma série de treinamentos com o método de Laboratório de Sensibilidade, uma variante do T. Grupo. assim o define:o objetivo do T. Grupo. era mobilizar forças de grupo para apoiar o crescimento dos membros como indivíduos singulares, simultaneamente com o crescimento como colaboradores.

91

Osvaldo Saidon (1983), psicanalista argentino, historiando o Movimento Institucionalista, assinala nesse começo do terceiro período o encontro entre a indústria e a psicossociologia. A psicologia desempenhando a função de ocultamento do político, do social, do econômico; tomando os problemas humanos exclusivamente na linguagem da subjetividade e delegando ao especialista técnico o encargo, de resolvê-los.

O desenvolvimento da Psicanálise e da Microssociologia de Kurt Lewin permitem, no entanto, um pensamento original nas teorias de grupo. grande a influência de Lewin sobre os psicanalistas europeus. W.R. Bion, na Tavistock Clinic de Londres partindo de um trabalho de readaptação de prisioneiros pelos métodos de grupo, desenvolve um novo método que tem de peculiar a utilização de conceitos psicanalíticos, especialmente da psicanálise de Melaine Klein. Destaca a importância das atitudes do monitor e da relação que o grupo estabelece com ele, tal como na transferência psicanalítica (Weil, 1967).

Em 1948 alguns ideólogos marxistas desencadeiam uma grande crítica r Psicanálise e a Psicanálise e a psicossociologia das Relações Humanas. São estas acusadas de substituir a infelicidade coletiva, de ordem política, por uma infelicidade individual, afetiva, fazendo cessar a luta de classes na empresa. A negatividade é considerada como desvio, pelos sociólogos, e como esquerdismo, peJos marxistas ortodoxos(Lapassade 1983).

Elliott Jaques, psicanalista inglês, diretor do Tavistock Institute for Human Relation, onde pesquisa com Bion, desenvolve um método para o qual utiliza sua experiência de psicoterapeuta e conhecimentos de teoria das organizações. Denomina-o Sócio-análise e afirma: o papel do socioterapeuta deve ser um papel de esclarecedor, que através de atitudes interpretativas apropriadas, visa tornar manifesto o que está latente. (Dubost, 1968).

Surgem propostas de um trabalho ideologizante no campo da saúde mental.Pichon-Riviére, na Argentina, inicia uma convergência da Microssociologia de Lewin e da Psicanálise com os conceitos do materialismo histórico. Cria a teoria dos Grupos Operativos onde é realçado o aspecto da inter-dependência grupal. Na França, Jacques Lacan desenvolve uma escola de psicanálise que será influente em momento posterior.

Em Bethel, 1955, são formuladas as primeiras elaborações teóricas sobre o T. Grupo, por Brandford, Shepard e outros do NTL, num seminário internacional do qual participam os franceses R. Pagés, M. Pagés e C. Faucheaux. Divulgado na França a partir da 1956, o método de T. Grupo torna-se, neste país, base para o desenvolvimento de quatro correntes:

92

Groupe Français d’Estudes de Sociometrie, dirigido por A. Ancelin-Schutcemberger: Mouvement Sócio-Analytique de M. e J. Van Bockstale; Association pour la Recherche et L’Intervention Psychosociologiques (A.R.I.P.) de M. Pagés; e Association National pour lê Developpement des Sciences Humaines Appliqués (A.N.D.S.H.A.) dirigida por J. Ardoino (Ardoino, 1967).

A sócio-análise de Van Bockstale visa uma modificação do grupo e não do indivíduo de um grupo. Trabalha com os chamados grupos naturais, aqueles que existem antes da experiência e irão continuar juntos depois. As intervenções do socianalista se fazem exclusivamente ao nível do grupo, diferentemente do T. grupo que trata do nível individual e grupal (Weil, 1967).

No Brasil, início de 1960, professores da UFMG trabalhando para o Banco da Lavoura de Minas Gerais S.A., realizaram a mais ampla experiência brasileira de dinâmica de grupo aplicada a Relações Humanas. Dirigida por Pierre Weil e tendo como colaboradores imediatos Célio Garcia e Rui Flores, que haviam estudado em Paris no Centro de Sócio-Análise, essa experiência tinha por objetivo a formação e o aperfeiçoamento de chefes. Utilizavam uma técnica própria denominada Desenvolvimento em Relações Humanas (DHR), onde estavam integradas as técnicas de T. grupo e da sócio-análise de Van Bockstale (Weil, 1967).

A década de 60 é de suma importância e nela se situa o nascimento de novas e significativas correntes do pensamento dos grupos e das terapias. As conturbações desse período fazem com que alguns autores localizem nos anos 60 o terceiro momento da sociedade capitalista, ao contrário dos que o situam após a 2a. guerra mundial.

Armando Bauleo (1977) afirma que sempre existiu uma Psicologia Social Oficial, institucionalizada, e outra marginal. Enquanto a Psicologia Social Oficial de definia como ciência da interação, o pensamento marginal se definia a partir da relação psicanálise-materialismo histórico, revelando as relações de poder e a luta da classe. Vale observar as críticas de Jean Paul Sartre à Moreno e lewin, e suas idéias sobre a constituição de um grupo (Weil, 1967).

A revista Socialismo ou Barbárie, publicada na França desde 1948 e da qual fez parte Lapassade, veicula as idéias de Claude Lefort e Cornelius Castoriadis e questiona o poder. E o lugar da interrogação radical sobre as Revoluções, da contestação da tradição autoritária reacionária e da autoridade de movimento operário em suas formas de organização e em sua ideologia marxista tradicional (Matos, 1981). A palavra auto-gestão aparece na língua francesa, traduzida literalmente do

93

palavra servo-croata que designa a experiência político–econômico social da Iugoslávia dirigida por Tito.

O conceito atual de auto-gestão, no entanto, nada mais é que a fim de um longo processo, muitas vezes reprimido desviado e deformado, que poderíamos dizer que começa com Pitágoras ao enunciar que o homem é a medida de todas as coisas, e tem como axioma fundamental a igualdade das pessoas. Não se trata apenas de uma outra forma de fazer funcionar e administrar as empresas, exige uma transformação completa da sociedade em todos as planos (Guillerm,1976), a eliminação da relação de poder, uma nova relação com o saber, etc.

A Psicoterapia Institucional, na. França, nos paises anglo-saxões e na Itália, aprofunda a crítica dos antigos manicômios e concebe o efeito terapêutico como efeito institucional e não como ato localizado, restrito ao grupo. Tem como experiência a psicanálise, o marxismo e o lacanismo, e como expoentes, entre outros, Tosquelles, J. Oury, G. Michaud F. Guatarri. Trabalha como o conceito de analisador desenvolvido inicialmente por Paviov como um dispositivo experimental intermediário, mediador entre realidade e o conhecimento. Esse conceito após a influência da psicanálise passa a se referir à algo, natural ou construindo, capaz da revelar o oculto e desencadear mudanças (Lapassade, 1979 ).

Paralelamente desenvolve-se a Pedagogia Institucional, com propostas de pedagógica uma crítica ao ensino conservador, á ciência e ao saber a serviço do Poder. São dessa corrente Lapassade e René lourau.

Em 1961, Carl Roger, psicoterapeuta americano introduz o conceito de não-diretividade nas práticas terápicas e torna o centro das análises não apenas a compreensão da dinâmica grupal, mas o questionamento da relação terapêutica. Suas idéias vão influenciar profundamente os movimentos de contestação psiquiátrica.

Desenvolve-se as chamadas técnicas de Potencial Humano (Roger, Gestalt-terapia, bioenergética, grupos de encontros, etc). Uma outra corrente retoma Reich articulando os conhecimentos psicanalíticos sobre o inconsciente grupa com a concepção materialista-histórica.

São condenadas as correntes de Potencial Humano e a Psicossociologia. Uma pelo apolitismo e psicologismo, e outra por desconsiderar a dimensão institucional nos grupos.

Em 1962 surge na França a corrente de Análise Institucional, com Lourau, Lapassade, Guatarri, Deleuze, M.Pagés etc. A análise Institucional vai procurar abordar o grupo na relação instituinte-instituído, com uma leitura dialética, colocando a instituição como lugar de reprodução das contradições sociais. A

94

instituição é então definida como forma que assume a reprodução e a produção das relações sociais num modo de produção. (Lapassade, 1972).

Esse movimento institucionalista desenvolve-se como opção não oficial dentro do capitalismo do Estado. Tem como referencial ideológico a sociologia materialista-história , e busca o revolucionário ente saberes e que fazeres. A psicoterapia institucional e a pedagogia institucional estão na sua origem. Se num dado momento a sociologia e a psicologia social fazem do conceito de grupo o rival do conceito de instituição, a Análise Institucional vai, ultrapassando o sociologismo, rever essa colocação. A Análise Institucional se coloca como método de intervenção no terreno e não mais apenas como método terapêutico ou pedagógico. O grupo como intermediação entre as estruturas individuais e a estrutura social, segundo Bauleo (1977). A Análise propiciando o reencontro entre o significante (normas da empresa)e o significado (a vida do grupo ) segundo Célio Garcia (1970).

Lapassade (1972) define a Análise Institucional como método de Análise social com base em observação e documentos centrada no conceito de instituição. Tomada num sentido mais restrito, na situação de instituição na prática social dos grupos das organizações, é então denominada Socioanálise.

De 1962 a 1968 o terreno da intervenção da socioanálise na França é quase sempre o meio universitário. No Brasil, desde 1965, o grupo de psicologia social da UFMG, chefiado por Célio Garcia, desenvolvia estudos e experimento. Influenciados pelos trabalhos de mudança planejada dos discípulos de Lewin e pela equipe da A.R.I.P.; utilizava o referencial psicanalítico desta e dos trabalhos de Bion e Elliott Jaques. Um convênio com a vinda de professores francesa lhes facilitava a aquisição de livros, a vinda de professores franceses e a ida de bolsistas (Mata Machado, 1985).

Em 1964 diz Lapassade: o psicossociólogo é primeiramente aquele que, mediante a sua prática, institui na sociedade um certo campo da palavra. A regra do grupo de análise é “tudo dizer”, o princípio da intervenção é acolher a palavra do grupo e colocá-la em circulação, o propósito é a liberação de uma palavra plena, além das ideológicas, além do conhecimento, além da utilização da palavra nos grupos para efeito de dominação.

Esse discurso antecipa e repercute no movimento francês de maio de 1968. Vemos esse movimento como um símbolo daquele movimento social, pois vários outros movimentos de contestação eclodiram no mesmo ano.

95

O Maio francês contesta o fenômeno burocrático, criticas as formas tradicionais da política o autoritarismo: recusa-se vida burguesa, medíocre, reprimida e opressiva. Geismar, professor e líder marxista, afirma - a partir daquele momento, luta de classes (entendida, como luta entre á burguesia e o proletariado)deixou de ser a única chave para interpretara história. Os protagonistas de 68 foram os considerados secundários sob o ponto de vista da luta de classe: os estudantes, os intelectuais, os jovens (Matos, 1981).

Nos grafites desse movimento percebemos idéias comuns ao Movimento Institucionalista (Análise Institucional):

CHEGA DE ATOS QUEREMOS PALAVRAS. A PALAVRA É UM COQUETEL MOLOTOV.

AQUELE QUE FALA DE REVOLUÇÃO SEM MUDAR A VIDA

COTIDIANA TEM NA BOCA UM CADÁVER.

ABRIR AS PORTAS DOS ASILOS DAS PRISÕES E OUTROS LICEUS.

CONSTRUIR UMA REVOLUÇÃO E TAMBÉM ROMPER TODAS

AS CORRENTES ANTERIORES.

É PROIBIDO PROIBIR, LEI DE 10 DE MAIO DE 19684

A partir de 68 a Análise lnstitucional se institucionaliza sob forma de associações. A análise dos acontecimentos políticos de maio de 68 e suas consequências, modifica as concepções de alguns institucionalistas como Lapassade, que nos diz: a repressão da sociedade instituinte não pode ser suprimida nem por uma análise intelectual e puramente teórica, nem por uma tomada de consciência. A analise não pode preparar a crise das instituições, e esta ao contrário, que provoca a análise, a produz e a Socializa. (Baremblitt, 1972).

O objetivo da Socioanálise pasta a ser a própria instituição da análise em seus aspectos ocultados ou reprimidos. O conceito de analisador se impõe como uma necessidade para compreender acontecimentos sociais. A auto-gestão é o excelente analisador histórico e crítico dos sistemas capitalistas e burocrático, transversos no grupo.

Iniciam-se os movimentos anti-institucionais tais tomo a anti-psiquiatria, anti-escola etc, através de Coopér, Basaglia, lllich, Szasz, Berlingue, Deleuze, etc. (Baremblitt, 1982).

René Lourau (1977), a partir das análises de Castoriadis, considera o conceito de instituição, dialeticamente, expresso em três momentos; instituindo, instituinte e institucionalizado.

O primeiro momento - o da Universalidade – onde a instituição é a ordem estabelecida, os modos de representações e organização ditos normais, tais como o casamento, o salário, a educação. E o instituído.

96

O segundo momento - o da particularidade - onde as determinações materiais e sociais vão negar o momento anterior exprimindo a negação do momento precedente, o instituído. É o instituinte.

O terceiro momento – o da Singularidade - é onde encontramos a instituição nas formas sociais visíveis, dotadas de organização jurídica e/ou material. É o institucionalizado.

Lapassade afirma então:

Isolar o momento da Universidade para criticar o conceito de instituição é cair numa concepção positivista, erro dos sociólogos idealistas e marxistas ortodoxos, isolar o momento da Particularidade é cair na ideologia das "necessidades", erro dos economistas e da psicologia dos grupos, isolar o momento da Singularidade é autonomizar a racionalidade e a positividade das formas sociais, em detrimento da história das contradições e da luta de classes, erro da sociologia das organizações.

(Lapassade, 1972).

A forma de atuação da Socioanálise fica bem clara na exposição feita por lapassade (1972), ao comparar as três formas de intervenção sociológica - a intervenção organizacional, a intervenção psicossociológica e a intervenção socioanalítica:

A intervenção organizacional é definida como uma entrevista de longa duração efetuada em terreno social determinado e por solicitação do cliente. Os sociólogos da organização privilegiam as reformas do organograma, limitam sua atuação à estrutura formal.

A intervenção psicossociológica é definida como uma série de atos efetuados por uma equipe mediante solicitação de um "cliente" que pode ser uma organização social ou mesmo um governo. O trabalho de Kurt lewin é o exemplo dela. Nesta intervenção M. Pagés distingue 3 fases: uma tomada de consciência, um diagnóstico a uma ação. Essa ação, no entanto, não vai além da reforma do organograma, do estabelecimento de comissões e da mudança de algumas normas.

A intervenção Socioanalítica, ou Análise Institucional, ao contrário das outras, tem uma, constante preocupação em analisar sua própria implicação no progresso da intervenção. Teríamos uma Análise Institucional ao proceder da seguinte forma:

- análise da demanda oficial formulada pelos responsáveis pela organização, e da demanda implícita que se encontra atrás da demanda oficial;

- auto-gestão da intervenção, onde o grupo cliente vai determinar os horários, no de reuniões, pagamento etc;

- a regra do tudo-dizer, tentativa de explicitação do não-dito. Esses não ditos são tomados como reveladores da estrutura.

97

institucional e do não-saber que rege as organizações;

- elucidação da transversalidade, isto é, revelação dos reflexos, na organização, das funções macro-sociais de produção, educação, ideológicas, divisões de classe etc. A análise da transversalidade provocará resistências que revelarão as relações dos clientes com o micro-sistema social;

- elaboração da contratransferência - análise das respostas que o grupo fornece:

- elaboração ou elucidação dos analisadores, elementos que enunciam as determinações da situação, por sua conduta de rompimento com a lógica da organização. A Análise Institucional trabalha com o que chamamos três níveis de análise - o grupo, a organização e a instituição. Não se trabalha com esses níveis em separado, nem cronologicamente nem em termos de objetivos são instâncias de um desenvolvimento do determinante – a dimensão institucional, lugar onde se encontra o inconsciente político, onde se cruzam as transversalidades sociais e as instâncias do modo de produção. (Garcia et alli,1973).

Em 1971 Lapassade distingue duas tendências de Analise Institucional na França: a Análise Institucional dos sociólogos e dos Institucionalistas.

Max Pagés critica a Análise Institucional acusando-a de eliminar ou ocultar o psicobiológico. Em 1974 nos diz: do massagista, do dançarino, do artista ao agitador político, passando pelo psicanalista, não se sabe mais hoje em dia o que vem a ser o psicossociólogo. (Saidon, 1983).

O convênio entre a UFMG e a Embaixada Francesa possibilitou a vinda ao Brasil de M. Pagés (1968). André Levy (1969) e Lapassade (1972). Célio Garcia participou, em 1971, dos trabalhos de Lapassade e Lourau em Bruxelas. Em 1972 vários professores da equipe estavam em Paris fazendo cursos e entre entrevistando-se com Foucault, Lourau, Levy, etc. quando da visita de Lapassade, vivenciaram, como treinamento, um trabalho de Análise Institucional. O grupo desenvolveu uma produção teórica e prática reconhecida no país.

Em 1978 é realizado, no Rio de Janeiro, o Primeiro Simpósio Internacional de Psicanálise, Grupos e Instituições, com a presença de Basaglia, Guatarri, Bauleo, Rodrigué, Baremblitt, etc. Pouco depois é criado o IBRAPSI, Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições do Rio e de São Paulo, que vai trabalhar com o método de Análise Institucional.

Gregório Baremblitt, na sua exposição sobre o II Simpósio internacional de Psicanálise, Grupos e Instituições, de 1982; assinala que no espectro de posições que integram o que

98

denominamos Movimento Institucionalista, pode-se encontrar uma gama variada no que diz respeito a alcances, propósitos e resultados. O movimento precisa ainda de muita confrontação interna e externa, assim como de muita experiência prática para aproximar-se da maturidade.

A fala da Baremblitt nos remete a pensar a Análise Institucional como uma teoria não fechada, que provavelmente hoje continua se reformulando. Esse estar-se-fazendo nos leva a esperar e ensejar novas colocações da Análise Institucional para os fazeres desses anos 80.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Ardoino, J; El grupo de diagnóstico Instrumento de Formação. Madrid:

Rialp. 1967.

Baremblitt, G.; Grupos, Teoria e Técnicas, Rio de Janeiro:

Graal - IBRAPSI, 1972.

Baremblitt, G.; O Inconsciente Institucional, Petrópolis:

Vozes, 1984.

Bauleo, A.; Constrainstituicion Y Grupos, Madrid: Fundamentos, 1977. Dubost, J.; Os Métodos de Intervenção Psico-Sociológica, 1968 (mimeo).

Garcia, C e outros; Análise Institucional: Teoria e Prática, Revista de Cultura Vozes, no 4, ano 67, 1973.

Garcia, C.; Conjuntura Teórica e Controvérsia Experimental, 1970 (mimeo).

Garcia,C,:; Análise Institucional, 1970 (mimeo).

Guillerm, A. e Boudet, Y; Autogestão: Uma Mudança Radical, Rio de

Janeiro: Zahar, 1976. -

Lapassade, G.; Grupos, Organizações e Instituições, Rio de Janeiro:

Francisco Alves, 1983.

Lapassade, G. e Lourau, R.; Chaves da Sociologia, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.

Lapassade, G.; El Analisador y el Analista, Barcelona: Gedisa, 1979.

Lourau, R.; Analisis Institucional y Socioanálisis, México: Nueva Imagem, 1977.

Mata Machado, M. N; Mudanças em Organizações Sociais; Uma avaliação crítica, Rio de Janeiro, 1972 (Tese mimeo).

Mata Machado, M.N.; Transversos do Social e Alquimias da Prática em Psicossociologia, 1985, (mimeo).

Matos, O.C.F.; Paris 68, as barricadas do desejo, São Paulo: Brasiliense,

1981.

99

Moscovici, F.; Laboratório de Sensibilidade, um estudo exploratório, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1965.

Saidon, O.; Práticas Grupais, Rio de Janeiro: Campus 1983.

Weil, P. e outros; Dinâmicas de grupos e Desenvolvimento em Relações Humanas, Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.

100

OS TEXTOS DO PAINEL

HERESIAS A UM QUADRO:

PERCEPÇÃO SINGULAR DE UMA INSTITUIÇÃO

Concluímos, numa das sempre, tumultuadas reuniões no setor de "Psicologia Social, que algumas associações de Imagens ou palavras não poderiam ser feitas no interior da Universidade. Entre xícaras, ou melhor copos, de chá, pão de queijo e uma revista aberta num artigo sobre bruxarias, concordamos que um certo pensar deve, necessariamente, ser processado fora dos muros imaginários - pois os reais já foram abolidos por um arquiteto mais audacioso - da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Para mantermos mais arejadas as nossas mentes pensantes teríamos que investir no além muro, cujos resultados dificilmente retornaria ao saber acadêmico.

Em minha casa, despindo-me das roupas de trabalho e usando uma malha justa e confortável, relacionei tal fato à nossa Impotência de retirar um quadro da parede. Uma antiga pintura que representa Kant falando aos seus colegas ou discípulos e que está fixada numa sala do saguão principal. Os que chegam de fora se espantam com a representação pictórica e ao comentar o seu desagrado recebem, imediatamente, a aprovação de todos. Mas o quadro persiste ali fixado e com o tempo vamos nos acostumando a ele. O incômodo passa a desapercebido em pouco tempo. Os de fora que, por acaso, permanecem iniciam, por um processo ritualísco, a sua reverência ao conhecido quadro. Caso contrário, são detonadas as fórmulas misteriosas (ou nem tanto? ) de exclusão.

Uma instituição do saber, sobre a estética, a comunicação, a sociologia, a psicologia, a história, a política, etc, mantêm aquele grande quadro na sala de reunião da congregação, órgão máximo de seu funcionamento. Mantén-o ali, como um símbolo da razão crítica, desta razão que é a razão máxima do seu existir. Símbolo de uma instituição da racionalidade oriunda da ilustração e que tem na dialética sua conquista mais recente. Uma Instituição da modernidade que, com toda sua força, propõe um determinado pensamento filosófico-estético, fundado na razão técnica-científica para o domínio da natureza exterior e humana. Fundada no princípio racional que tem produzido, como fruto do seu próprio pensar dialético, a irracionalidade da destruição constante. Pois sabemos que a modernidade com toda sua, utopia, sua luta contra

102

o passado, sua crítica e sua estética de vanguarda não conseguiu produzir um momento ou um instrumento eficaz de contra dominação. Por isso, aquele símbolo continua ali, intocável, inquestionável.

Nenhum dos belos audio-visuais da estética de um Laterza, nenhum doa traços ainda indecisos dos cartazes do laboratório de Comunicação, nenhuma pesquisa historiográfica de um Inglésias, nenhum argumento político de Sandra, nem o toque feminino de Celina, nem a fúria do inconsciente psicanalítico de Célio substitui aquele quadro. Nada toca nele. O todo Poderoso patrimônio. A cada dia, como que martelado à noite, o prego que o sustenta penetra ainda mais fundo na parede parda.

Ninguém pergunta pelo autor da obra. Não importa quem construiu o objeto sacro. Ele continua como totem da nossa adoção.

Não perguntem pelas expressões, pela relação figura-fundo ou luz-sombra. Evidente que ele não existe como arte, senão como objeto sagrado. Como controlador de um pensar possível dentro da Universidade. É ele que vela por nossas mentes pensantes, que dita as normas do viável na casa. Como deus-pai, onipresente, mantêm-se imperturbável às diferentes camadas de tinta que são acrescidas à parede ao seu redor.

É hora de voltar ao trabalho. Coloco minha. larga calça jeans e, de súbito, lembro-me da poesia-ciência de Lúcia Afonso, minha discípula maior. De repente cresce a esperança de que, dedicando-lhe esta nota, a gente possa, um dia assistir a retirada de tão horripilante objeto e quem sabe, constituir alguma alternativa, que, ao ser emoldurada, possa substituir o terrível quadro.

Elizabeth de Melo Bomfim Novembro-1985

103

[pic]

MANIFESTO SOL-AR: EM PROL DO PÓS-MODERNO

Para que entre o sol nas instituições, quebrando a separação energia-matéria. Que invada as mentes pensantes, recriando as filosofias e ciências humanas. Que outra arte, não-moderna, vá de encontro às heresias da modernidade, questionando a super-importância da história, o hiper-racionalismo e o endeusamento da contradição dialética. Que possamos viver o presente sem necessidade de utopias, desfocando o futuro do centro de nossas atenções. Que a felicidade seja sentida e não consumida e que o homem tenha um valor além de uma embalagem descartável. Que seja importante o sentir, que um novo espetáculo possa mudar o gesto narcisista. Que possamos transpor as barreiras da forma-conteúdo, da figura-fundo, da luz-sombra. Que á arte, ao sair dos museus e casas de espetáculos, possa alcançar as ruas, praças e casas embelezando o cotidiano. Que o todo seja cada um, cada um o todo, o todo o nada, refazendo o lógica formal. Que possamos vislumbrar a

104

~ •... """

[pic]

saída, ponto de chegança e abrir os corações às novas visões. Universalismo no eu, eu no universal, que possamos revirar as legitimações éticas e estéticas do grande princípio racionalizador da tecnologia moderna. Que os movimentos ondulados possam questionar validade do progresso técnico desvairado. Que possamos reconhecer que a era das ideologias trouxe a sombra e a tristeza nas grandes metrópoles que a gerou. Que possamos recompor o sentimento autóctone da coletividade, e resistir ao impuro ar nos nossos pulmões. Que, além do direito á diferença cultural, possamos estabelecer o contato desafiador e sedutor. Que haja luz nos fins dos labirintos desta idade da crítica, da crítica, da crítica. Que a alegria, além do riso explodido, seja a aprovação da vida singularizada. Que a agradável sensação do sol em nossas peles possa enfrentar a guerra nas estrelas. Para que a distância entre as razões possa aproximar os corações, dedico esta manifestação à REGINA HELENA CAMPOS.

Elizabeth de Melo Bomfim

Outubro-1985

105

"-,

PRAÇA DA LIBERDADE (para Beth Bomfim)

Lúcia Afonso/85

Tenho um caso de amor com a praça

da liberdade que amei

de amores muitos na praça:

A imaginou a praça e ali,

eu passei com B, ocasionalmente C. me levava a ver

a fonte que hoje não trabalha.

E não amava a praça

o que me revelou suas falhas. J. e R. eram plantas vivas que só existiam na praça.

E até os meus amores noturnos, soturnos, se esvaíram e não por seu duplo caráter de amor e prostituição,

mas simplesmente enfraqueceram de uma doença rara:

ficando sempre na cama,

eles nunca foram à praça.

É os tristes estrangeiros minguaram porque lha faltava

a luz da lua minguante

que só penetra na praça.

A mesmo na memória

dos amores que eu não tive

mas circularam por mim,

a praça é quase tudo:

é noite que me embala,

o footing, a liberdade, o espaço amplo onde braços e olhos dados

se procuram e se encontram.

Como um gato ama a casa, Eu amo a praça.

106

E NÓS NA CONSTITUINTE?

À Comissão Mineira para a Constituinte A/c. do Prof. Edgard G. da Mata Machado

CAPITAL

Belo Horizonte, 31 de outubro de 1985.

Dentre as várias sugestões que poderíamos dar para a Constituição Brasileira, gostaríamos de destacar duas:

- Que a nossa constituição abra espaço para uma maior participação direta da sociedade brasileira nas decisões que afetem a nação como um todo (referendos, plebiscitos). Alguns países da Europa já facilitam esta participação, e alguns pensadores vêem ar um progresso no sistema democrático (ex. Jean Paul Sartre e a democracia direta). Os meios eletrônicos de telecomunicação viabilizam e barateiam estes sistemas de consulta aberta.

- Que os direitos da criança sejam contemplados na nova Carta Magna. para tanto, os direitos da criança elaborados pala ONU/Unicef poderiam servir de sugestão.

Na Oportunidade, assinalamos o nosso protesto pela maneira como o Governo e os grandes partidos têm tentado se apropriar da Constituinte, recusando a consulta popular que, já se sabe de antemão, decidiria por uma Assembléia Nacional Constituinte autônoma.

Atenciosamente,

Júlio de Miranda Mourão Professor do Depto, de Psicologia FAFICH - UFMG

Em tempo, uma terceira sugestão:

- Que o Meio Ambiente tenha também os seus "direitos" e não seja tão degradado e vilipendiado como vem sendo, por sistemas irracionais de explorações dos recursos naturais.

107

OS TEXTOS ANEXOS

SUGESTÕES PARA A DISCIPLINA DE PSICOLOGIA COMUNITÁRIA E ECOLOGIA HUMANA

Marilia Novais da Mata Machado

As sugestões que se seguem foram apresentadas oralmente em aula ministrada no encontro de 1985 da SBPC, em Belo Horizonte, na abertura do curso Psicologia Social e Educação Popular, promovido pela ABRAPSO (Associação Brasileira de Psicologia Social). Foram apresentadas sob o título de Reflexões sobre a Psicologia Comunitária. Decorrem da prática didática de um semestre na disciplina que tem o sugestivo nome de Psicologia Comunitária e Ecologia Humana.

A disciplina funciona no curso de Psicologia da UFMG desde 1974, tendo ar aparecido a partir de longos estudos e discussões em grupos de encontro envolvendo professores e alunos. O tema ecologia apenas começava a ser discutido no Brasil. A Junção dos dois temas - comunidade e ecologia - foi bastante oportuna. Em primeiro lugar, as questões de comunidade diretamente ligadas a problemas ecológicos, levou a abandonar imediatamente o modelo de desenvolvimento comunitário oriundo de trabalhos norte - americanos, bastante diretivos e visando sobretudo progressos definidos em termos de desenvolvimento econômico. O chamado desenvolvimento econômico vem quase sempre acompanhado de desenvolvimento de problemas ecológicos.

Em segundo lugar, o nome da disciplina, colocou para os professores e alunos a necessidade de articular os dois temas. Algumas vezes o curso foi dado levando-se em conta apenas a questão da comunidade - trabalhou-se sobretudo com problemas de saúde pública (mantidas as devidas ligações com os órgãos governamentais ligados à saúde pública), ou de questões sociais, especialmente urbanas. Outras vezes, na disciplina, discutiu-se quase que só a questão ecológica.

No primeiro semestre de 1985, Beth Bonfim e eu resolvemos aceitar o desafio de pensar os dois temas conjuntamente e neste trabalho estamos empenhadas.

O não saber

Trabalhos efetivamente realizados em comunidades brasileiras (alguns relatados em Boletim da ABRAPSO, de abril de 1985) e estrangeiras usualmente são assistencialistas, paternalistas e protecionistas. Uma equipe de cientistas sociais (sociólogos,

110

antropólogos, assistentes, psicólogos e outros) organiza-se com o objetivo de ajudar a comunidade e lá atravessam suas ideologias, valores, técnicas, conhecimentos, modelos e modos de vida.

A sugestão aqui é iniciar qualquer trabalho com a certeza do não saber do cientista social a respeito das comunidades junto às quais deve atuar.

Refiro-me aquele não saber que Freud tão bem demonstrou como relação aos sonhos. Sonhos são realizações de desejos inconscientes. Apenas um elaborado trabalho de psicanálise permitirá saber que desejos são estes.

Apenas um cuidadoso trabalho de socioanálise levará o cientista sociais saber a respeito da sua comunidade. Seu não saber decorre de sua própria inserção em um determinado lugar da sociedade, de sua posição(frequentemente privilegiada) na estrutura social.

A análise da posição do cientista social é parte de seu trabalho comunitário, uma vez que as comunidades detém também, com relação ao cientista social, um não saber relativo às suas técnicas, expectativas, valores e conhecimentos.

Uma vez que o cientista social sabe que não sabe a respeito das comunidades e de si próprio na estrutura social, vai buscar saber. A psicologia tem dispositivos e todo um instrumental de auxílio nesta busca. Trata-se de um instrumental de escuta (dinâmica de grupo, medidas, entrevistas e questionários não diretivos) e de devolução (análise do discurso , relatórios, documentação e discussões).

Hipóteses de base

Aqui são sugeridas algumas hipóteses para se trabalhar junto às comunidades:

1. As comunidades tem um saber, frequentemente desconhecido pelas Ciências Sociais e ás vezes pela própria comunidade. Cabe ao cientista, juntamente com a comunidade, descobrir este saber.

2. Qualquer comunidade tem uma cultura própria isto é, tem traços que lhe são característicos e uma criatividade ligada às suas estratégias de sobrevivência (Demo, 1982). Cabe ao cientista fazer surgir esta cultura, retirá-la de dentro da comunidade.

3. A cultura e o saber comunitário são a vida da comunidade como tal es energia. para. a sua transformação.

4. Qualquer comunidade tem um projeto autogestionário inconsciente. Cabe ao cientista, juntamente com a comunidade, explicitar tal projeto. Cabe ao cientista acompanhar a comunidade em suas soluções autônomas e, portanto, abandonar qualquer perspectiva de controle comunitário. Se o projeto autogestionário da comunidade não lhe agradar, resta-lhe apenas abandonar o trabalho.

111

A socioanálise

No instrumental da Psicologia Social, a socioanálise aparece como especialmente adequada a trabalhos junto a comunidades.

Na socioanálise, usa-se o analisador como dispositivo provocador de mudança, sem o apoio em qualquer postura assistencialista, paternalista ou protecionista. E analisador tudo aquilo que faz surgir os não-ditos da comunidade, levanta as lebres, mostra sua estrutura.

São analisadores especiais (Lapassade e Lourau, 1972);

1. Análise da demanda. Se não há demanda de trabalho, o psicólogo nada tem a fazer na comunidade. Se há, cabe a ele analisá-la e distingui-la da encomenda, Usualmente a encomenda vem de uma parte da comunidade (em geral líderes dirigentes) ou mesmo de fora dela. A demanda , própria da comunidade como um todo: todos os que fazem parte dela formam o coletivo cliente.

Autogestão do trabalho. É o coletivo cliente que se autogestiona, determinando número, local e duração de reuniões, ritmo de trabalho, distribuição de encargos, questões financeiras, etc. A equipe de cientistas sociais pode também, perfeitamente se autogerir.

3. Livre expressão. Segue-se a regra de tudo - dizer. Os não-ditos, os escondidos e disfarces são trazidos à luz.

4. Análise da transversalidade. Os atravessamentos da estrutura social (isto é, pertinências a diferentes grupos, ideologias e políticas) são descobertos e apontados.

5. Análise da transferência e contratransferência institucionais. Analise-se as relações que a comunidade mantém com a equipe de cientistas, que esta mantém com a comunidade e ambas com a instituição da análise.

Criação de outros dispositivos analisadores. Por exemplo, a análise das relações de dinheiro, idade, sexo, e cor são analisadores de grande potencial transformador. Dispositivos de escuta, pesquisa e devolução são também bons analisadores.

O Saber

De forma não impositiva, nem controladora, os cientistas sociais não apenas começam a aprender sobre a comunidade, como também a acompanham em sua transformação.

Abandonam todo e qualquer projeto pré-elaborado (que, em última instancia, diria respeito apenas a eles próprio e ao seu saber), trabalham sem objetivos fixados a priori. Usam instrumentos de trabalho, mas não tem modelos pré·fixados. Colocam-se, portanto, longe daqueles técnicas já consagradas pelas ciências sociais, em especial pela administração (administração por objetivos, por exemplo).

112

Respeitam a comunidade, seu saber, sua cultura, suas técnicas. Ai adotam uma postura realmente ecológica (Ecologia é a ciência da casa/grupo/comunidade ).

Finalmente, os cientista sociais aprendem a respeito de si próprios e dos grupos aos quais pertencem. Passam a conhecer seus valores, sua cultura, seu saber. Com sorte, podem até descobrir por que estão tão apegados e aderem tanto a seu modo de vida.

Referências

Boletim da ABRAPSO. Ano III Abril de 1985 no 10 Demo, P. Educação política e política da educação Niterói:

FUBRAE, 1982.

Lapassade, G. e Lourau, R. Chaves da sociologia, Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1972.

113

COMUNIDADES ALTERNATIVAS:

UMA REFLEXÃO EM TORNO DO TEMA (1)

Elizabeth de Melo Bomfim(*)

A disciplina Psicologia Comunitária e Ecologia Humana é oferecida, como disciplina optativa, no curso de Psicologia da UFMG, desde a reforma curricular de 1914.

No início deste ano, eu e Marilia Mata Machado resolvemos arriscar num programa diferente, que foi proposto aos alunos e incrementando a partir da colaboração dos mesmos. Em meados do curso, iniciei com a minha turma um trabalho comunitário dentro de sala de aula, a partir da decisão de transformar o trabalho final que, como de praxe, é individual, num trabalho comum a ser desenvolvido por todos. À este projeto, que visando ser comum, nada mais é que a Interpenetração de nossa diferenças, demos o nome de Comunidades Alternativas - uma reflexão em torno do tema.

Esteve presente, em vários momentos do curso, a discussão em torno da noção de comunidade.

Desde sua origem etimológica, a noção de comunidade está relacionada ao estado do que é comum, à reunião de interesses de identidades, crenças e ideais. Aparece sempre com especificidades tais como, herança cultural e histórica espaço físico, forma de governo, etc.

Contudo, a partir de uma perspectiva dialética, está presente e nas comunidades a todo momento, caracterizando uma relação dinâmica de forças, a desunião ,a diferença, o incomum.

E é ai que localizamos as alternativas comunitárias. Na relação, denominada pela sócio-análise de instituído-instituinte e pela lingüística de significante-significado, que entendemos à questão da comunidade-alternativa.

Observamos sempre presente nessa relação, a dialética do comumincomum, individual-coletivo, numa situação de alternância e revezamento periódico. A alternativa não é passageira mas, ao contrário, sempre presente na comunidade. Ainda que, utilizando um termo da Medicina, como medicamento alternante que, sem produzir efeito imediato sensível, modifica de maneira persistente a natureza do sangue e dos humores.

( * ) Professor Adjunto do Departamento de Psicologia - UFMG

(1) Trabalho apresentado na 37 a Reunião Anual da SBPC - julho/1985.

114

Na possibilidade de revezamento que iremos situar, outra questão proposta no curso, a da autogestão comunitária.

O momento da autogestão coincide com o momento do instituinte, do significante, ou mais especificamente, da diversidade comunitária. E é pelo seu reconhecimento que constata-se a diferença entre o discurso dos lideres e o discurso da comunidade, que em si é um discurso da diversidade.

E nos perguntemos, pelos momentos históricos, onde foi possível, a manifestação da autonomia comunitária. Os exemplos de Andaluz a Aragão (Espanha) e Comuna de Paris (França), nos fazem questionar: Por quanto tempo as comunidades suportam a sua autonomia? Ou, retomando uma frase medieval: Se o prazer permanece, será que permanece prazer?

Contudo, o trabalho de melhoria das condições de vida, leva-nos ao terceiro objetivo do curso: a crítica á visão do desenvolvimento exógeno que, com sua imposição de tecnologia, mais suga do que incrementa. Dar a importância de discussões sobre tecnologias alternativas e questões ecológicas que propiciem ver com nossos próprios olhos e criar com os nossos recursos.

Em quarto lugar, pareceu-nos importante a discussão de metodologias e trabalhos realizados em comunidades, nas áreas de:

a) educação comunitária: retomando a dialética do educare, entre o nutrir (preserva) e o tirar (criar, transformar); relacionando o saber comunitário com o saber acadêmico (aceito e valorizado universalmente (?); não esquecendo que a educação, como a ciência, é, irremediavelmente, ideológica, e o lugar da escuta é necessariamente o da fala. A fala do educador, ainda que o silêncio é ideológica; reconhecendo que o não saber, revelando diferenças e dificuldades, não significa ignorância.

b) Psicologia Comunitária: com toda a metodologia-ação (pesquisa ativa - pesquisa participante – crítica á pesquisa participante); com conhecimento de técnicas e práticas grupais ( que nos orientam nos trabalhos de reuniões, visitas e mesmo terapias grupais); e a sócio-análise {estudo das transversalidades) gera a visão social mais ampla.

Em quinto lugar, pareceu-nos pertinente discutir os movimentos alternativos, estes projetos autonomamente organizados, não necessariamente apolíticos, com propostas culturais diversificadas. Como: feminismo, movimento pacifista, movimento dos homossexuais, movimento Pugwash (organizados a partir do fato de que a desconfiança, o medo e a propaganda influenciaram na criação da bomba atômica e têm contribuído para a corrida armamentista, cujo arsenal, atualmente, é de 50.000 armas nucleares, com potencial para destruir de 4 a 5 vezes cada habitante da terra). E aqui encontramos o movimento psi alternativo, que parece

115

tratar-se de uma revolta contra o intelectualismo racional e analítico. Talvez numa busca do entendimento (togspa tibetano) e não só do raciocínio. Nas tentativas da busca da saúde mental essa utopia dos psicólogos destacam-se terapias energéticas e a meditação transcendental.

Finalmente, o estudo de algumas formações comunitárias não passaram sem consideração. A proposta dos cristãos primitivos, cujos ideais foram revividos por S. Francisco, em suas comunas de ofício. Os Sete povos das missões que entre a cruz dos jesuítas (interessados em renda e catequese) e a espada dos colonizadores constituíram, o que ficou conhecido como a república socialista cristã dos guaranis. Canudos, a tão discutida comunidade brasileira, através da figura de Antonio Conselheiro e sua proposta socialista e religiosa, inspirada na Bíblia e na Utopia de Thomas More, se manteve, após a morte de seu líder , até o massacre final pela 5 a. expedição militar. Canudos que tinha 30.000 habitantes, pode ser comparada, relativamente, à cidade de Belo Horizonte hoje, já que na ocasião, São Paulo tinha 50.000 habitantes.

Enfim, no aqui e agora, um levantamento da formação do movimento dos favelados em Belo Horizonte que poderá abrir a discussão da relação Estado X Associação de bairros e favelas.

IN-COMUM

Sérgio Augusto Chagas de Laia (*)

Durante todo o primeiro semestre deste ano, na disciplina Psicologia Comunitária I, pude trabalhar, juntamente com outros colegas, alguns textos e ouvir algumas pessoas que nos falaram sobre o tema comunidade. Durante o curso pudemos, também, percorrer temas mais específicos tais como: comunidades alternativas, ecologia, psicologia comunitária e outros.

Algo que, a meu ver, atravessou grande parte das nossas conversas (direta ou indiretamente) foi uma problemática que resumirei numa pergunta: o que é comum? Este texto pretende discutir essa pergunta, acrescentando-lhe uma outra: o comum é, realmente, comum?

(*) Aluno da disciplina Psicologia Comunitária e Ecologia Humana. UFMG

116

Tais questões também puderam se e apresentar pra mim a partir de um contato que venho tendo com uma outra forma de encararmos as formações sociais, tendo em vista a autonomia, do social. Aqui, as discussões nos seminários de Filosofia da Ciência no Mestrado de Filosofia da FAFICH/UFMG tiveram uma grande importância.

Essas perguntas sobre o comum e a constituição dos grupos estão muito presentes, tanto nos textos que vão tratar do social, do grupo, da comunidade, etc., como nas discussões que são travadas a nível do senso comum. Tanto em um campo como no outro, podemos perceber uma forte tendência de pensar o grupo, a comunidade a partir do que é comum e central a todos. Chamarei, como SIBONY (1982) esta tendência de sistema solar; através dela, o grupo (ou á comunidade, para utilizar o tema desse texto) se constitui, por exemplo a partir de um chefe, de uma idéia, de algo que é comum a todos. Esta posição encontramos, por exemplo, em FREUD (1923): amassa se une em torno de um chefe (ou algo similar) que se constitui como ideal do eu de cada indivíduo dela, tornando-se ideal do grupo e a possibilitando o laço libidinal e identificatório, isto é, a identificação com o chefe se articula com a identificação com os membros entre si e vice-versa.

O texto de FREUD (1923), contudo, não nos mostra apenas algo da ordem do mesmo, pois este ponto comum - em torno do qual os indivíduos se unem uns por amor aos outros - só é capaz de ser comum porque é diferente dos outros. Assim, desde já, penso que podemos encontrar algo precioso em Freud: a identidade se dá via a diferença. Freud, contudo, é adepto ao modelo do sistema solar, percebendo as massas como se constituindo a partir de algo exterior, de fora.Tal caminho tem sido questionado por autores como SIBONY ( 1982),DUPUY(1983), Célio GARCIA (1984) e outros. Pretendo, então, a partir de alguns textos deles, continuar as indagações, complexificar o assunto, como nos sugere DUPUY (1983).

Sibony, Dupuy e Célio Garcia, nos textos citados, trabalham com a noção de pânico, mencionada por FREUD(1923). O pânico, para este último, ocorre; por exemplo, quando a massa perde o chefe, a idéia unificadora, seu centro - ou como DUPUY (1983) o chama, sugestivamente, seu ponto fixo - entrando num processo de destruição enquanto massa. Todavia, como nota DUPUY (1983), é neste momento em que se expressa com mais força uma importante característica das formações sociais: o contágio, isto é, a homogeneização de certos comportamentos, de certas idéias, etc. O grupo, por exemplo, perde o chefe, mas nessa perda, continua se manifestando como uma formação social de uma forma muito intensa.

No pânico, então, o grupo regride para um estado narcísico, que o senso comum irá representar com a frase: foi cada um por si e Deus por todos. A figura de Deus ai, aparece – num segundo

117

momento da frase - como um atrator para os membros do grupo no estouro da boiada. Penso que é como se a comunidade não suportasse o cada um por si, a autonomia de seus movimentos e apelasse para algo transcendente exterior, imprevisível e inacessível com o intuito de se recompor. E como se o acontecimento de se ver marcada por uma falta tivesse que ser imediatamente recalcado. Assim, concordo com Célio Garcia quando diz que o grupo se reúne em torno daquilo que os seus membros se calam, mas, gostaria de indagar sobre o que eles se calam?

Penso que, aqui, o texto de DUPUY (1983) e a conhecida expressão popular que citei acima podem esclarecer esse calar. O que ambos mostram é que, usando as palavras de DUPUY (1983),é necessário conceber a capacidade de todo grupo "en effervescence" e creio que posso dizer que todo grupo está efervescente, umas vezes mais, outras menos: "não há grupo descontraído", nos diz SIBONY (1982), Célio Garcia (1983) a se projetar fora dele mesmo, e sua propensão a tomar por sinais exteriores as projeções do interior. Em outras palavras: a comunidade CONSTRÓI esse ponto fixo.

Ora, se a comunidade o constrói, podemos pensar em comunidades que não se pautariam, talvez, sobre o paradigma do ponto fixo, mas que se arriscasse a se confrontar com sua falta e sua autonomia. Penso que este é um passo extremamente político e libertário, em se tratando de comunidade, país trata-se de um certo conhecimento do não-reconhecimento (méconnaissance). Os efeitos desse conhecimento - que não passa, não é um projeto de conscientização, pedagogização, etc. - é uma tarefa a ser sempre feita e que está sempre presente. Politicamente, nos leva a lutar por uma sociedade em que, como nos diz CASTORIADIS (1983), haja um processo continuo de auto-organização e de auto instituição e a capacidade de transforma-los, de agir a partir daquilo que já esta dado e através do que já está dado, mas sem se assujeitar a ele. Em outras palavras, o conhecimento de nosso não-reconhecimento (méconnaissance) pode nos levar a articular uma comunidade que se paute pela instituição de suas próprias leis e prática de sua autonomia continuamente, pois o conhecimento do não reconhecimento é conhecimento de um objeto real (DUPUY, 1983) e, como tal, é um trabalho infinito.

BIBLIOGRAFIA

CASTORIADIS, C. Socialismo ou barbárie. São Paulo, Brasiliense

1983, pp.211-256.

DUPUY, J. P. Totalisation et méconnaissance, Comunication au Colloque de Cerisy: Autor de René Girard, juin 1983. (xerox)

118

FREUD, S. Psicologia de grupo e análise do ego. Obras Completas:

ESB. Rio de Janeiro, Imagor 1914, vol. 18, pp. 91·119.

GARCIA, C. A questão da Identidade como objetada Psicanálise. In: BIRMAN, J. e NICEAS,C. A. Teoria e prática psicanalítica. Rio de Janeiro, Campus , 03, 1984, pp . 110-127.

SIBONY, ologia, I azos y grupo in: TUSQUETS, J.L.M.y SATNE, L. Desarrolos en psicoterapia de grupo y psicodrama. Barcelona, Gediza, 1982.

MOVIMENTO DOS FAVELADOS EM BELO HORIZONTE

(Um relato segundo o topógrafo da UTP, Sr. Barnabé)

Cleide R. Andrade ( * )

O primeiro registro que se tem do movimento feito por favelados em Belo Horizonte, data de 1948, quando no atual bairro Barroca, ocorreu uma ordem de despejo das pessoas que viviam ali. Eram famílias pobres que disputaram na Guerra dos Bodoques o seu direito de ocupar aquele terreno.

Em 1950, se dá realmente o início do movimento favelado, com a participação de pessoas como Edgar da Mata Machado, Dimas Perrin, Padre Laje, que .se dispuseram a trabalhar (questionar) os direitos de habitação, saúde e condições de vida do favelado de BH. Entre os moradores favelados destaca-se Vicente Gonçalves que desde este tempo se pós a lutar.

No bairro D. Cabral cresce a Vila dos Marmiteiros, composta por pessoas de baixo poder aquisitivo e que vivem em péssimas condições de vida.

Cria-se a UDC- União de Defesa Coletiva que se propõe a lutar em prol dos direitos do favelado.

Em 1963, o movimento favelado cresce com as grandes invasões realizadas em terrenos de Antonio Luciano, ligados a Fayal, essa, uma grande construtora. Muitíssimos favelados se dispõem a não abrir mão da região em que habitam (atual Cabana Pai Tomás e Vila 31 de Março ) e lutam unidos pela posse do terreno.

O país passa por um momento de repressão e morte. Alguns líderes do movimento favelado são mortos e outros correm riscos. Cria-se o Movimento Clandestino Favelado que trata em sigilo do problema favelado.

( *) Aluna da disciplina Psicologia comunitária e Ecologia Humana.

Depto. de Psicologia - UFMG.

119

Em 1919, com a abertura democrática do país, a lei da anistia, um novo direcionamento da política social do governo, surge um espaço que busca congregar o movimento favelado: cria-se UTP, União dos Trabalhadores da Periferia. Surge, a princípio, com o apoio da ARENA, quando o seu presidente Chico Nascimento sabe que é preciso decisivo contar com as forças do poder para que se constitua um movimento organizado do favelado. As críticas ao apoio do governo são muitas, mas a União espera um momento em que se possa constituir livremente.

Em 1981, cria-se o Decreto-lei do Pró-Favela. Em 1982, quando o panorama político muda no país a UTP não mais precisa do apoio governamental estrutura-se como movimento autônomo.

Em 1983, o Decreto·lei do Pró - Favela ( •• ) torna·se Lei Nacional. Em 1984, o movimento favelado reivindica ativamente a regulamentação e aplicação do Pró-Favela, luta-se pela indenização mínima por terreno desocupado, os despejos judiciais são enfrentados.

Em 1985, a UTP continua em sua luta pela real aplicação do PróFavela em BH (usa do dinheiro da AVIS (* ** )em sua atuação).

A UTP, das 129 favelas que existem em BH, congrega 96 delas.

A prioridade.é dada a posse do terreno.

Muitas lutas ainda virão.

2) LIDERANÇAS: Se no princípio do movimento foi preciso a colaboração de lideranças universitárias, políticas, partidárias, porque o favelado era carente de informação, esclarecimento e o acesso ao poder se fazia pelo uso destas outras lideranças, atualmente, têm-se um quadro diferente: a longa caminhada do movimento favelado proporcionou um grande nível de conscientização dos direitos que possui o favelado e sua luta atual é marcada pele grande participação de todos e a resistência , exploração, seja ela econômica, social ou ideológica.

Os líderes favelados surgem no maio das favelas e conta com a confiança dos habitantes da favela.

3) ASSOCIAÇÕES DE BAIRRO FAVELADOS: A estrutura de funcionamento de uma Associação de Bairro favelado é semelhante em certos aspectos ao movimento de Associações de Bairro da Grande BH, mas marcado por uma diferença fundamental. Assim como nas Associações de Bairro de BH na Associação de Bairro favelado há disputas de chapas que concorrem numa eleição, em que os habitantes da região participam, através do voto direto, escolhendo os representantes que irão atuar frente aos órgãos do poder estadual e convocar os habitantes do local para reuniões onde as diretrizes do movimento são discutidas. A diferença fundamental entre os dois tipos de associação é que as

120

Associações de bairros favelado não são como as outras Associações, atreladas, mantidas ou criadas por grupos políticos que buscam manter-se no poder (ou o almejam).

A Associação de Bairro favelado nasce da necessidade da união dos favelados em torno de objetivos comuns, sejam eles, desde a posse de terreno em que habitam ate a organização de uma infra-estrutura da habitação sadia, com posto medico, esgoto canalizado, luz, e etc .

4) IGREJA: A Igreja já exerceu um papel de paternalismo assistencialismo, fruto do seu pacto com o poder com os atuais caminho da Igreja, a pastoral cristã que fez a sua opção pelos pobres (a luta por seus direitos) tem contribuído ativamente com a participação de padres que se engajaram na luta do favelado.

5) A QUESTÃO POLÍTICA : Diversidade de posições políticas dos elementos favelados e não –filiação a nenhum partido político.

A sua força reside justamente no seu não-atrelamento a grupos de poder. Reside no favelado, na questão da sua sobrevivência.

FINAL : O favelado, ciente dos seus direitos, da torça de sua união, prossegue reivindicando o que a sociedade lhe deve.

(**)Pró"Favela:Estabelece que nas áreas ocupadas pelos favelados, em caso de desapropriação por parte do dono do terreno, só será permitida a construção de casas para pessoas de baixo poder aquisitivo.

(***)AVIS: Verba dos países europeus (3%de sua renda bruta) aplicada no desenvolvimento dos países carentes.

A REPÚBLICA DOS GUARANIS

1610- 1768)

Vander Marcelo de Paula Oliveira ( *)

Na América do Sul do século XVII, teve início a existência de uma comunidade que, durante mais de 150 anos, mexeu tanto com o mundo e que até hoje mostra alguns de seus reflexos. Fala-se inclusive, que a grande richa existente entre os brasileiros, especialmente os do sul e os povos platinos, deve-se muito à forma bárbara com que os paulistas (ou portugueses ) trataram a comunidade guarani dessa época.

(*) Aluno de Psicologia Comunitária e Ecologia Humana - Depto, de Psicologia – UFMG

121

A existência da República Guarani (carga de 34 cidades ou missões ou reduções) foi o resultado da combinação de forças: índios guaranis-Estado Espanhol - Companhia de Jesus. Nesse momento, estava se processando a colonização da América Latina e a Igreja procurava difundir o cristianismo pelo mundo. Sendo assim o expansionismo europeu associado aos interessas evangelizadores dos Jesuítas e à limitação de escolha por parte dos índios serão ai bases nas qual a República Guarani se apoiará.

Num primeiro momento, a necessidade de se barrar os desejos de expando territorial portugueses na América irá explicar a aceitação pelo reino espanhol do surgimento da República Guarani. Outro fator importante foi a incapacidade espanhola de submeter os índios à escravidão. Foi ai, que os Jesuítas com todas as suas habilidades (Inclusive políticas) conseguem se insinuar, primeiro frente ao rei espanhol e, posteriormente, frente aos índios. Prometendo salvá-los da degradação física decorrente da escravidão e lhes acenando para condições de vida melhores das que vinham tendo, foi que os jesuítas se estabeleceram entre os índios e foram construindo a República Guarani. Por isso tudo, chega-se facilmente conclusão de que os índios se encontravam entre a cruz e a espada. É claro que essas comunidades apresentaram inúmeros fatores positivos, mas tudo isso foi pago com a submissão dos índios aos valores cristãos e europeus do século XVII, ou seja, observou-se uma desculturação dos índios, que se deu principalmente através do teatro e da música (artes que eram muito apreciadas pelos Guaranis).

A situação da República Guarani era bastante parecida à de um domínio do império britânico, o Canadá ou a Austrália, por exemplo. A República Guarani desfrutava de uma liberdade pelo menos tão completa, visto que possuía uma constituição original, suas próprias leis civis e penais, suas próprias autoridades, juízes, orçamento, exército, polícia e chefes militares próprios. A República Guarani tinha suas fronteiras bem delimitadas e definidas. Sua economia era a mais autônoma que a de todos os outros Estados do mundo.

Em termos econômicos, notamos que não há propriedade privada (assim que o índio se casa, ganha um terreno que lhe pertence até a morte; sendo sua viúva deslocada para a casa das viúvas da comunidade), não há circulação de dinheiro dentro das comunidades e não existem índios desempregados (tendo direito aos mantimentos somente aqueles índios que trabalhem); e o comércio interno funcionava na base da troca de produtos (o indivíduo era rico na proporção de sua assiduidade ao trabalho (Lugon, 154). Essa uma das reduções tivesse algum problema que atetasse a sua produção, as outras a ajudavam, pedindo somente que quando elas se encontrassem em situação semelhante, que esta as ajudasse também.

122

AGRICULTURA : muito rapidamente se tornaram no conjunto agrícola mais completo e melhor organizado da América, apesar da dificuldade de formar agricultores com os caçadores-guerreiros das antigas tribos nômades.

INDÚSTRIA : apesar da falta de metais brutos, a República Guarani teve um equipamento industrial tão completo quanto o de qualquer nação européia nos séculos XVII e XVIII. Fabricando armas, munições, sinos, embarcações, etc., reduzindo, assim, sensivelmente, a importação de objetos manufaturados.

Nessa República havia mestres profissionais (primeiramente foram os padres e depois operários do mundo colonial) que ensinavam os mais Úteis e variados ofícios para os índios guaranis.

Uma orientação mais geral das profissões e uma especialização por redução eram estabelecidas de acordo com as condições do solo, clima, gosto dos habitantes (as criança sejam mandadas para , diversas oficinas e fixadas nas quais demonstravam maior inclinação) e necessidades do conjunto da República. (Lugon, p.139).

O TRABALHO E A REPARTIÇÃO DA RENDA... O gênero de vida diferia segundo o gênero de trabalho, mas não se considerava útil conceder rendas privilegiadas a nenhuma categoria profissional. (Lugon,p.194). Geralmente trabalhavam 4 hs/dia e tinham 2 horas de descanso (se permitindo a esses horários elásticos devido à completa utilização da mão-de-obra).

Para o comércio exterior, só eram enviados os índios que apreenderam melhor o Evangelho a, mesmo eles, apenas contabilizavam os ganhos da Comunidade, sendo que o dinheiro propriamente dito só circulava pelas mãos dos Jesuítas. Esses fatos, por sua vez, levantavam diversas suspeitas quanto a possíveis ganhos monetários por parte da Companhia de Jesus, que até hoje não foram devidamente esclarecidos e, que, na época, foram fartamente utilizados com o objetivo de desestabilizar os Jesuítas junto ao rei e, conseqüentemente, acabar com a República Guarani.

O FIM

O fim da República Guarani também envolve uma considerável gama de fatores.

Internamente, a ausência de uma autoridade federal indígena, já que a integração das reduções era feita pelo Superior da Companhia de Jesus e, o medo dos Jesuítas de desagradarem às autoridades coloniais, impediram que as reduções tivessem uma coordenação militar durante a guerra contra as tropas coloniais, facilitando assim a sua destruição.

Externamente, o Tratado dos limites (1750) que dava 7 reduções situadas na margem esquerda do Rio Uruguai (região do atual RS)

123

para Portugal, em troca da cidade de Sacramento (extremo - sul do atual Uruguai); além da ameaça que os Jesuítas estavam se constituindo para o Estado Espanhol, ao fazerem da República Guarani um verdadeiro Estado Independente; soma-se ainda as animosidades suscitadas entre os colonos da América do Sul e os Jesuítas, devido ao fato desses últimos terem se colocado contra os movimentos de emancipação sul-americanos. Sendo assim, enfrentando o ódio colonial e a desorganização militar interna dos próprios - guaranis, no início do ano de 1768 tem fim a mais antiga experiência de sociedade igualitária e ecológica que se tem notícia na América do Sul.

BIBLIOGRAFIA BÁSICA:

1 - Lugon, Clovis. A República comunista cristã dos guaranis:1610- 1768. 3 a. edição - Rio de Janeiro, editora PAZ E TERRA, 1971.

AGRADECIMENTOS:

à Professora MARIA EFIGÊNIA LAGE DE RESENDE , à Professora: ELIZABETH BOMFIM.

CANUDOS

Robson P. Perry ( * )

Canudos foi a efetiva implantação de uma comunidade igualitária no sertão da Bahia, apesar de sua curta existência de alguns poucos anos na última década do século passado. A implementação do ideal igualitário só se tornou possível pela conjunção dos anseios dos camponeses nordestinos e da figura singular de Antônio Conselheiro.

O regime de exploração semi-feudal imposto aos camponeses até a época da proclamação da República não se extinguiu com esta: com efeito, a nova classe que ascendeu poder político não cumpria sua. tarefa histórica de realizar a reforma agrária na consolidação da nova ordem sócio-econômica. A burguesia ascendente aliou-se aos latifundiários que vinham descontentes com a monarquia e a abolição da escravatura. Produziu·se assim uma nova forma de poder político que não alterou a situação dos camponeses explorados, que continuaram vivendo em condições de extrema pobreza, desprovidos de terras e à mercê dos grandes proprietários do nordeste.

( * ) Aluno de Psicologia Comunitária e Ecologia Humana - Departamento de Psicologia - UFMG

124

Antônio Conselheiro era um homem de grande magnetismo pessoal e de imensa compreensão da realidade social de sua época. Conhecia os textos clássicos, à Bíblia e a Utopia de Thomas More; salientou-se pela fluência oratória e pela excepcionalidade de seu comando militar. Nasceu em uma família nordestina que, pela própria, história da luta a que se impôs peta posse de terras com outra família da região, mostrava-lhe o conteúdo da ordem social e toda a mesquinharia que envolviam o prestigio político e o poder econômico: Teve vida inconstante permeada de reveses que se alternavam desde a tenra infância pelos anos que se seguiam: a perda da mãe ainda novo, os maltratos da madastra ,a traição da esposa, enfim, sua experiência familiar, sua experiência no foro, suas andanças pelo nordeste e a humilhação e calúnias sofridos quando da prisão sob acusação deter matado a mãe e a esposa, todas essas experiências passadas já davam forças ao caminho a seguir. Após a prisão, peregrinou pelo nordeste em missão de fé, construindo obras de fins coletivos e reunindo vários adeptos ao seu redor; seus conflitos desenvolveram-se à partir daí, primeiramente com a igreja e continuaram quando se rebelou contra a ordem instituída arrancando e queimando , junto com seus seguidores, editais de cobrança de impostos afixados num município nordestino que então visitava. Enfrentou uma força policial destinada a prende-lo e a desmanchar seu bando e, em seguida, dirigiu-se ao empreendimento do ideal comunitário que comungava com inúmeros nordestinos.

Canudos foi. erguida num local estratégico do ponto de vista militar: era de difícil acesso e circundavam-na vários acidentes geográficos que facilitariam sua defesa contra um possível ataque inimigo; além disso, suas casas eram dispostas de forma irregular, não sendo possível distinguir na cidade nenhuma planificação que resultasse em ruas bem definidas, apenas becos entre as casas que se amontoavam como que jogadas ao acaso. Abrigaram-se ali cerca de vinte e cinco mil pessoas. O produto das atividades agropecuárias e artesanais era da coletividade. A propriedade individual se restringia aos bens pessoais e à moradia. A comunidade subsistia com certa tranqüilidade; os bens excedentes eram comercializados no mercado das cidades próximas, onde também eram adquiridos os bens de que necessitavam e não podiam produzir; mantinha-se, até mesmo, um comércio regular com a Europa através da exportação de couro.

A afluência de nordestino à cidade era enorme. Constituía-se livremente de brancos, negros e mestiços. Esses buscavam ali a possibilidade de uma vida na qual estivessem libertos da exploração a que estavam submetidos, uma vida de igualdade e respeito do homem pelo homem. Em Canudos a opção pelo não-casamento não importava em nenhum estigma social: uma mãe que não possuísse marido era tratada com o mesmo respeito, em termos de igualdade com uma mãe que o possuísse. O casamento era apenas na ordem

125

religiosa. E toda essa comunidade era gerida pela devoção, fé, aplicação da força de vontade desses nordestinos empenhados numa vida melhor e temerosos da pena de explosão da comunidade que cabia a quem cometesse. ato julgado crime - uma falta grave como o estrupo, e assassínio ou outro tipo de violência. Era ainda pelo magnetismo pessoal exercido por Antônio Conselheiro e pelo seu empenho prático na construção e organização da comunidade que ela se comportava dessa forma.

Contudo, a própria história da comunidade e o contexto em que se erigiu determinaram o processo de luta que levou ao seu aniquilamento pelas demais forças sociais existentes. Canudos era uma comunidade revolucionária, abrigava os descontentes, servia de experiência e exemplo aos explorados, polarizava a atenção dos poderes instituídos, principalmente, era razão de insegurança dos latifundiários nordestinos. Porém, foi ainda, dentro da conjuntura política do país na época, usada como trampolim para uma tentativa golpista de implantar uma ditadura militar frente à expectativa democrática brasileira. Dessa forma, travou-se uma verdadeira guerra civil no país, que durou cerca de um ano e terminou com a destruição, total da cidade. Organizaram-se quatro expedições militares à Canudos, sendo que a última, incluindo ar uma quinta expedição que lhe veio de reforço, contava da um efetivo de cerca de doze mil homens. Os sertanejos empenharam-se veementemente nessa guerra e demonstraram, com Antônio Conselheiro, grande habilidade tática e estratégica nas operações de guerra, além de comprometimento e solidariedade em torno do ideal comunitário. Finalmente foram derrotados e mortos e a cidade completamente arrasada. Antônio Conselheiro morreu em dia próximo ao fim da guerra devido a algum problema de ordem interna no seu corpo. A propaganda e lendas em torno de Antônio Conselheiro e de Canudos encarregaram-se, então, de distorcer o sentido dessa experiência histórica.

Bibliografia:

Moniz, Edmundo. _A Guerra Social de Canudos, Ed. Civil. Brasileira, RJ

126

A TECNOLOGIA PARA UMA NOVA SOCIEDADE

Vinícius Pawlowski Queiróz (*)

A questão tecnológica no que hoje interessa a psicologia comunitária permite dois enfoques. O primeiro diz respeito à primazia das tecnologias de ponta nas áreas de comunicação, produção de energia e da alimentos.

Existem já equipamentos e técnicas que representam verdadeiras revoluções nessas áreas, como por exemplo a televisão por cabo ligada a um banco de programas e a um computador (onde o acesso a memória da máquina permitiria um novo conceito de aprendizagem) e a ligação com outros aparelhos como um telefone.

A produção de energia em pequenas unidades solares ou eólicas já permite a uma casa ser independente da transmissão central por rede do tipo Cemig. O custo ainda é alto, mas principalmente devido à pequena produção. Produzidas em massa elas se tomariam rapidamente acessíveis à maior parte da população.

Algumas técnicas de construção usando materiais convencionais permitiriam que a energia solar fosse armazenada e utilizada como calor e eletricidade a baixo custo.

As técnicas de produção de alimentos em espaços reduzidos e o uso de outros vegetais para consumo humano direto, tornam possível que, dispondo de uma área de aproximadamente 500m2 e com pouca mão de obra, se produza alimento para uma família normal (3 a 4 pessoas).

Estas áreas estariam diretamente ligadas a uma casa, que se tornaria autônoma na alimentação dos morado.

O que interessa a psicologia comunitária nesses dados é a possibilidade de uma verdadeira revolução no conceito de espaço urbano e vida urbana.

Essas alterações significariam uma nova estrutura social menos necessitada de centralização urbana, o que provavelmente teria o sentido do movimento populacional que se tornaria em êxodo urbano. Uma fuga das grandes cidades (BH, São Paulo, Rio) que se espalharia pelas áreas rurais vizinhas.

Isto entretanto é uma perspectiva a longo prazo, alguns dos efeitos dessas inovações tecnológicas podem surgir e se incorporar à vida cotidiana sem que produzam alterações significativas.

Enquanto isso esperamos ...

O segundo enfoque recai sobre o que está sendo chamado de tecnologia apropriada ou de alternativa.

(*) Aluno da disciplina Psicologia Comunitária e Ecologia Humana.

Depto. de Psicologia - UFMG.

127

Representa um esforço no sentido de atender as deficiências da população de baixa renda urbana ou rural em diversas áreas como construção civil, alimentação, energia.

A perspectiva no caso é a de, pesquisando a estrutura dessas comunidades e o ambiente físico e social em que vivem, fornecer técnicas que lhes permitam melhorar seu nível de vida Talvez a diferença básica desse enfoque para o anterior seja o fato de que o usuário de uma técnica ou aparelho teria total compreensão do seu funcionamento e poderia reproduzi-la e alterá-la.

O que se propõe é o enriquecimento da bagagem tecnológica desses indivíduos dirigida as suas necessidades imediatas de sobrevivência.

Na área de construção civil são pesquisados materiais alternativos como terra, cinzas de usinas siderúrgicas, bambu que trabalhados de formas simples se tornariam em materiais de construção de 1 a. qualidade.

Técnicas construtivas são desenvolvidas no mesmo sentido e fornecem melhores e mais baratas moradias com materiais não industrializados. A técnica de construção em ogiva por exemplo representa uma significativa economia de material e mão de obra.

Na agricultura, princípios básicos de cultivo, combate a erosão e estudo do solo para determinar a cultura apropriada a uma determinada região são simples e provocam aumento significativo na produção.

O que nos parece importante pensar, é a pequena penetração que estas técnicas, tem conseguido nas comunidades. Percebemos um campo rico de trabalho frente a uma espécie de inércia social e contra uma atividade defensiva dos setores econômicos ligados as técnicas tradicionais que estão sendo superadas.

É claro para nós que devido a importância e complexidade desse trabalho, ele deve ser conduzido de forma interdisciplinar. Para isso estamos estudando a criação de grupos de trabalho com profissionais das áreas de arquitetura e engenharia.

128

CAMINHOS DA VIDA E OUTROS ATALHOS: andanças e reflexões em torno de uma igreja Pentecostal (1)

Sérgio Augusto ,Chagas de Laia"

1) HISTÓRICO

A igreja pentecostal surge em 1906, nos EUA, quando ex-batistas negros fundam uma nova religião, numa igreja abandonada em Los Angeles; baseada em elementos protestantes e anglicanos, visando reviver o mito de: Pentecostes. Em: 1908, alguns elementos brancos que já vinham participando aos poucos dos cultos assumem a nova igreja. A partir daí, o domínio dessa religião se expande e chega no Brasil em 1910. Aqui diferentemente dos outros ramos do protestantismo - ela vai incidir mais sobre as camadas populares.: Com a entrada dos brancos também, a origem negra, a preocupação com os problemas sociais e o rituais negros são denegados, esquecidos e retornarão nas práticas religiosas, de uma maneira" reformada, num processo que, a partir do texto de, FREUD (939) poderemos chamar de o retomo do recalcado, a volta de uma verdade material. "

São várias as igrejas pentecostais, mas elas guardam muitas semelhanças entre si. Segundo dados que encontrei em CARTAXO ROLIM (1934), elas se multiplicam e crescem vertiginosamente nos últimos anos. Tal crescimento se dá, como pude notar em minha pesquisa, tanto devido a demanda que aproveitam/criam nas classes populares via os meios de comunicação de massa, como a partir de cisões - estas mais de caráter administrativo segundo um missionário pentecostal - que vão ocorrendo dentro das igrejas, produzindo outras. Diante da enorme quantidade, igrejas desse tipo e da minha opção de fazer uma análise mais qualitativa do fenômeno religioso que ocorre no Pentecostalismo e as relações de poder que são tecidas aí, escolhi como campo de trabalho uma igreja; pentecostal que apareceu, em Belo Horizonte em Maio: de, 1934 sob o nome de Pronto Socorro Espiritual Caminhos da Vida e que, no fim deste mesmo ano; já "possuía mais alguns templos na Grande BH e no interior de Minas Gerais e outros estados. É sobre essa igreja, mais especificamente, que meus dados se referem, é em torno dela que eu refleti e andei.

129

2) CARACTERÍSTICAS

a) Importância dos meios de comunicação de massa na divulgação da obra, criação de outros locais de cultos e expansão da popularidade via os milagres operados e graças recebidas;

b} O pastor/missionário: figura importante. Homem religioso, escolhido, chamado por Deus. Muito carismático, ótima oratória; possui um vocabulário diferente da maioria dos freqüentadores da igreja, mas acessível. Espanta os demônios orando pela saúde, paz e prosperidade e esconjurando as fontes de onde ele emana. Faz o tipo de apresentador de programas populares gênero Silvio Santos.

c) Grande presença dos cultos de despossessão do demônio. Aqui se dá o processo do retomo do recalcado, uma vez que a cerimônia é muito parecida com a descida dos santos, caboclos e espíritos nos rituais umbandistas e espíritas. Outros sincretismos aparecem nos cantos, que misturam letras e/ou músicas do catolicismo popular e profanas. Paralelamente, aqui, ocorrem as condenações às outras religiões {umbanda, . espiritismo, católica,orientalismo, etc.} como divisoras da fé fontes do pecado e do demônio. Como agentes do satanás do condenados também o fumo, a bebida, o jogo, a bigamia, etc.

d) Importância do demônio como elemento estruturante da identidade do grupo: a re-ação, de que Nietzsche (1887) nos fala.

e) A estrutura dos cultos é sempre muito bem marcada: músicas - sermões - cultos de despossessão. - ofertório (parte maior e que possui muitos meios de obter '0 dinheiro dos freqüentadores via chantagens emocionais) - bênção final e avisos: contudo, há uma flexibilidade nas relações do profano com o sagrado, o que permite muitas vezes que um se transforme no outro e um calendário móvel dos eventos e cerimônias.

f) Grande investimento nos segmentos populares da sociedade: a constituição de uma outra identidade.

130

3) EFICÁCIA SIMBÓLICA E PODER:

Aqui se situa o processo de conversão, muito bem estudado por ALVES (1979) pelo qual a pessoa passa de um estado confuso e sem sentido (desemprego, doença, problemas familiares, etc.) para um estado onde o sentido é dado. No caso do Ministério Caminhos da Vida, o sentido desse estado confuso é explicado pelo demônio. Inicia-se, então, os procedimentos e processos de conversão, via a instauração de um código de comportamentos, baseado numa hermenêutica do desejo (2). Assim, o missionário de Caminhos da Vida, Emanuel Santos, diz que sua igreja recebe todo mundo, mas em termo de membro, aí já muda completamente. O convertido é, então, uma outra pessoa, suportadora de uma outra identidade.

A construção dessa identidade se dá nas redes de poder que se estruturam colocando o missionário - enquanto enviado direto de Deus - como o portador da verdade de Cristo" é, por conseguinte, da verdade dos homens. Constrói-se, então, também, uma verdade, a verdade histórica e a união do grupo - como nota GARCIA (1984) - se dá via o silêncio e a revelação da verdade pelo discurso do pastor pode ser melhor apresentada se a grafarmos assim: re-velar. Daí, acha-se um sentido - é o demônio, e isso produz efeitos - arranja-se empregos, melhora-se de saúde, etc. - (3), mas é necessário, para permanecer converso, permanecer acreditando que não houve a revelação, que o pastor detém toda a verdade e vai revelando-a aos poucos. O importante ponto ao qual cheguei á que a manutenção desse processo é estar sempre re-velando através de redes de poder que são tecidas e que, via os buracos, possibilitam as fugas, como nos casos - muitas vezes esconjurados pelos pastores - dos fiéis que vão à igreja, recebem as graças e vão embora para retornar sabe lá quando, dos fiéis que dividem sua fé em outros campos (religiosos ou não), mostrando que a verdade é não-toda, apontando o silêncio em torno do qual o grupo se constrói e denunciando sua de denegação.

NOTAS:

1) Trabalho referente a uma pesquisa realizada em 1984, sob orientação da professora Marilia Novaes Mata Machado, com o auxílio de uma Bolsa de Iniciação Científica, financiada pelo CNPq.

2} Expressão de FOUCAULT (984) que indica o modo pelo qual, atualmente, ligamos o conhecimento de nós mesmos ao conhecimento de nossa sexualidade.

3; Processo descrito e estudado minuciosamente por LEVI-STRAUSS (1958) e designado como eficácia simbólica.

131

BIBLIOGRAFIA

1) ALVES, R. Protestantismo e repressão. São Paulo. Ática, 1979.

2) CARTAXO ROLIM, F. Protestantismo e pentecostalismo. Rio de Janeiro, Univ. FEd. Fluminense, 1984, (xerox)

3) FOUCAULT, M. Secualitv and solitude. In: London Review of Books, 21 May - 03 June; 1981, pp.04-07.

4) FREUD, S. Moisés e o monoteísmo (1939). In - Obras Completas. Edições Standard Brasileira. Rio de Janeiro, Imago, 1974. vol. XXIII, pp. 13-161.

5) GARCIA; C. A questão da identidade como objeto da psicanálise, In: Birman, J. e NICEAS. CA. Teoria da prática psicanalítica o Objeto na Teoria e na Prática Psicanalítica. Rio de Janeiro, Campus, 03, 1984, pp. 110 - 127.

6) LEVI • STRAUSS, C. Antropologia Estrutural I (1958). Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975, pp. 193 - 276.

7) NIETZSCHE, F. La genealogia de la moral (1887). Madrid, Alianza

editorial, 1983, 7a. Edição.

132

Elas Queriam Se Chamar as;1

(Título Proibido)

Patrícia M. Lacerda2 Simone Cunha Fonseca2

O modernismo não surgiu como na Europa, visando uma corrente de idéias ou de valores estéticos.

Não se buscou o simultaneísmo... o expressionismo, ou o dadaísmo, nem mesmo o futurismo ou, afinal, o surrealismo.

A tendência foi em geral; modernista - tratava-se de renovar e qualquer coisa servia; principalmente o simultaneísmo, que foi utilizado tecnicamente sem uma consciência estética.

Pagu 1957

Afinal, o pós-moderno vem mesmo depois do moderno? Estágio, paga-se menos que um salário mínimo.

Posto de Saúde Tia Amância, em plena zona sul, bairro Santa Lúcia,. assistência na área de pediatria, ginecologia, clínica geral., enfermagem, serviço social, psiquiatria e a tal de psicologia.

Atende à favela da barragem Santa Lúcia, ao Conjunto Santa Maria, à Vila Antena, Vila Estrela, à Cidade Jardim; Vila Paris e lugares nunca antes, imaginados.

Fui conhecer a Barragem de Santa Lúcia

Saúde pública! Urgh!

Nova República ! Argh!

Meu salário! Ai!

Quanta pobreza e miséria!

Vidas diferentes e uma incrível esperança na vida por parte de alguns. A vida sem dinheiro em pleno capitalismo. Penso no que faço lá na favela, vou oferecer o meu serviço, ser samaritana, cristã...? ...?

Psicologia na favela, dá novela!

1. Relatório das atividades realizadas no Projeto Docente Assistencial do Centro Metropolitano de Saúde (Secretaria do Estado de Saúde), em convênio com a UFMG.

2. Estagiárias de Psicologia.

133

Doença mental e pobreza, tenho um enorme desânimo e uma sensação de inutilidade, dá vontade de fazer uma campanha no Bairro São Bento ao lado da favela, no estilo de Eduardo Dusek: Troque seu cachorro por uma criança pobre/sem parente, sem carinho/sem rango e sem cobre/ Deixe na história de sua vida uma notícia nobre/ tem muita gente por aí que tá querendo levar uma vida de cão/ eu conheço um garotinho que queria ter nascido pastor alemão...

Fui conhecer uma creche, que existe ao lado do Posto de Saúde; Obras Social, do Padre Aguinaldo, dirigida pelo Irmão Lázaro, que pretende educar crianças de 4 à 13 anos mais ou menos.

Estas crianças de manhã estudam no grupo lá no mesmo prédio e a tarde não tem onde ficar porque seus pais vão trabalhar; a maioria mora na barragem de Santa Lúcia. Ficam então, as tardes na creche de Irmão Lázaro onde jantam, antes de ir embora, uma gostosa e nutritiva comida. Elas tem uma professora que pode ajudá-las a fazer os exercícios de casa e a servir o exército; trabalha lá também um voluntário meio retardado, que usa vara na mão para ilustrar sua atuação e é o horror das crianças

Duas pessoas para tomarem conta, ensinar e brincar com mais ou menos cinqüenta crianças. É realmente difícil, é preciso uma rígida disciplina e uma televisão para adormecer os espíritos. Começamos então a trabalhar nesta creche e fomos bem acolhidas, parecíamos fadas madrinhas para as crianças.

Comecei a fazer grupos de crianças; quem quisesse podia entrar, misturando crianças de várias idades. Os grupos se formavam naturalmente quando eu chegava. Alguns me chamavam de professora, eu dizia que não era, eles muito se espantaram quando viram que podiam propor atividades, dirigir nosso horário, brincar junto e inventar o escambau ao invés de obedecer.

Estávamos ali por conta de nos divertir, fizemos várias atividades com bola, corda, peteca, tinta, cola, broches do Menudo, música, dança; criamos, fizemos teatro, vivemos.

Acho que foi um trabalho útil e compensador para todos nós, uma brecha na educação autoritária e cheia de receitas e performances da instituição, esta já esclerosada e difícil de mudar, sobretudo por ser cristã. Trabalhamos com a nossa diferença e procuramos proporcionar à estas crianças um outro espaço, um lugar onde pudessem se expressar e atuar e assim acho que abrimos caminhos nas nossas vidas e ficamos disponíveis ao novo, ao inusitado, ao vivo, ao trampolim.

134

Um trabalho, quando não é ao mesmo tempo uma tentativa de modificar o que se pensa e mesmo o que se é, não é muito agradável. Trabalhar é conseguir pensar algo que não seja o que se pensava antes. (M. Foucault, in Escobar, 1985)

Fomos com o antigo estagiário de psicologia no Conjunto Santa Maria conhecer um grupo de mulheres que ele reunia. Elas estavam com saudade do grupo e estavam dispostas à continuar com as novas estagiárias do posto. A demanda é delas, não é incrível?

Acham bom ter um lugar para falar, visitar, encontrar amigos, se sentem sozinhas como todos nós. Queixam que não se visitam mais,. Antes elas moravam na favela da barragem e foram desapropriadas. Foram então morar no conjunto, blocos de casas iguais, muros, esgoto estourado (o BNH devia contratar arquitetos), pobreza, uma alegria, um burburinho diferente.

Falam com saudade da vida na barragem, quando se encontravam, viviam mais em comunidade, chegam a dizer que eram mais felizes e dividiam até um pedaço de pão com os vizinhos.

Em nossas reuniões fizemos coisas variadas, conversamos, catamos mudas de plantas, fizemos quentão e falando da situação da mulher tem que ficar em casa e cuidar de filho, descobrimos que tínhamos jeito de ganhar dinheiro, trabalhando por nossa conta. Montamos uma cooperativa de brincos e broches, fomos na cidade, juntamos nosso dinheiro e compramos materiais e cada qual vendia como podia as bijuterias. Talvez continuemos nos encontrando para falar e rir, cantar ou seja o que for, até ir na benzedeira...

Tempo dedicado à nós, seja lá pra quê. Fizemos boas amizades e passamos horas bastantes agradáveis por lá e estas experiências não dão pra escrever, nem transmitir, vive-se!

O papel do intelectual não é dizer aos outros o que eles tem a fazer. O trabalho de um intelectual não é modelar a vontade política dos outros; é através das análises que ele faz nos domínios que são seus, reinterrogar as evidências e os postulados, sacudir os hábitos, as maneiras de fazer e pensar, dissipar as familiaridades aceitas, retomar a medida das regras e das instituições e a partir desta reproblematização (onde ele desempenha seu papel específico de intelectual) participar da formação de uma vontade política (onde ele tem seu papel de cidadão a desempenhar). (M. Foucault, in Escobar. 1985).

Bem, e o trabalho clínico?

Visitamos a comunidade informando nosso horário no posto para possíveis interessados e colocamos cartazes no posto, e nos outros postos de saúde da prefeitura fazendo nossa propaganda.

135

Apareceram poucos clientes e normalmente acabávamos atendendo clientes que surgiam no corredor, crianças que ficavam por lá enquanto as mães se consultavam com os médicos, e todos que os interpelavam pelos caminhos.

O trabalho clínico/cínico num posto de saúde me parece afastado da realidade e os clientes parecem famintos. Acho que o psicólogo pode ser mais útil, e fazer um trabalho preventivo ao invés de curativo, atuando junto à comunidade e não ficando em sua sala esperando clientes e tentando elocubrar em uma de teorias psicológicas. Mas, não dispensei clientes pois quem procura um psicólogo quer ser ouvido e fiz o papel de psicóloga (HIC), procurando caminhar no rastro das pistas para uma esquizoanálise do mestre de meia tigela Félix Guattari; o que não é difícil pois visa antes de qualquer coisa o bem-estar do terapeuta:

1. Não atrapalhar, deixar como está. Ficar bem no limite adjacência do devir em curso, e desaparecer o mais cedo possível.

2. quando alguma coisa acontece isto prova que alguma coIsa acontece.

3. a melhor posição para se escutar o inconsciente não consiste necessariamente em ficar sentado atrás do divã.

4. o inconsciente molha os que dele se aproximam.

5. as coisas importantes "nunca" acontecem onde esperamos.

6. toda idéia de princípio deve ser considerada suspeita.

Chega o menino de cinco anos, trazido pela professora, pela diretora do grupo onde estuda e pelo pai: Minha mãe morreu segunda-feira. Duvidei que ele soubesse o que era morte ou o que era segunda-feira. Começamos a conversar sobre a morte, a tristeza dos fins, doem por estar tão perto e soar como tão longe, como todos os fins são estranhos, lhe contei sobre o maravilhoso remédio do tempo, que meus 23 anos já conhecem.

Com o tempo tudo muda, a gente fica feliz de novo, triste de novo, feliz de novo, jogar bolinha e inventamos jogos deliciosos.

Maria Elza, 15 anos, brincos de acrílico e broches do Menudo. Queixa o Tio que ela á ruim da cabeça, não consegue aprender e ler e escrever: Esquece tudo, minha cabeça não da para guardar nada! Não deve ser ótimo? Amnésias, amnésias. Sabe escrever só o seu próprio nome quer aprender pra quê? Que tal ser manicure? Quer ser o que, engenheira? Adora estar lá, eu só para ouvi-la, seu rio foi levá-la e espera por ela, tudo pra ela... Me conta que come sabão: Qual marca? Em pó ou em barra? Era uma louca de pedra, já tinha engolido sabão. Dias depois encontro seu tio na cidade. Ele me diz que ela está ótima depois que foi falar comigo, aprendeu a ler e escrever e está feliz. Milagre!

136

Instituição fica sem ação!

Os estagiários têm uma característica interessante; são rotativos e provisórios. Só aí tem-se a dica de que eles fazem um outro tipo de investimento do que aqueles funcionários que entram para o serviço público jovens e acabam envelhecendo no mesmo lugar.

O estagiário, portanto,. tem o privilégio de enxergar certas situações que as pessoas que estão paradas no mesmo lugar já se acostumaram.

Quando chegamos ao Posto de Saúde Tia Amância, ele já havia sofrido uma intervenção por parte do Centro Metropolitano, por causa das constantes reclamações da clientela e por problemas de relações interpessoais.

Chegamos no posto no 1o. semestre de 1985 e o ambiente ainda era estranho a Comunicação básica era feita através de fofocas. O serviço de Psicologia existente era basicamente clínico e havia poucos clientes. Os antigos estagiários costumavam também fazer visitas à comunidade.

Fomos então convocadas para uma reunião geral no Posto. Lá estavam todos os funcionários, a chefe e nenhum médico. A pauta da reunião, pode pareçer brincadeira, mas era sobre o roubo de um grampeador. A chefe do posto sugeriu chamar a polícia, caso o grampeador não aparecesse e disse ter um suspeito para o caso.

Os médicos não foram chamados à reunião, pois estavam acima de qualquer suspeita.

Mas o que mais estranhamos é que ninguém lá no posto achou essa reunião, ridícula e esquisita.

Pergunto na reunião se é saudável trabalhar num lugar deste, com clima de desconfiança, polícia e tal. A chefe diz que eu cheguei atrasada e que devo calar a boca. Enquanto isso o ambiente ferveu, todos começaram a falar ao mesmo tempo e a perguntar quem eu era e como eu era atrevida.

A reunião toma outro foco e começam a discutir sobre o trabalho das serventes. A limpeza ou a sujeira do posto toma o lugar do roubo do grampeador.

Daí chovem reclamações e começa um bate-boca. Uma servente diz que gosta muito do seu serviço e não tem, vergonha dele, embora insista em afirmar isso mil vezes, Fala que trabalha muito Bem e que a servente da tarde é que é a culpada da sujeira do posto. Todos ficam felizes por terem achado, um bode expiatório ; para a instituição e começam a falar mal do serviço da tal servente.

137

Essa tal servente faz parte no grupo de mulheres que, reuníamos no Conjunto Santa Maria e, segundo a enfermeira-chefe, é por isso que ela deixa de limpar bem o posto e, com ar sarcástico pergunta pra que serve esse grupo de mulheres ou a Psicologia, além de nos avisar que a tal servente é louca de pedra.

Todos acusam a tal servente de não fazer o seu serviço, obrigatório. Perguntamos, então, quem ali dentro faz o seu serviço obrigatório (afinal de contas, quem não mama do serviço público) e por quem este é determinado.

Daí surge na boca dos chefes, o discurso da hierarquia, imutável na sua forma mais fascista e reacionária.

Sugerimos uma mudança nos esquemas de funcionamento do posto, já que alguns se dizem insatisfeitos.

Como seria esta mudança? perguntam alguns... Falamos que não somos a luz, nem temos fórmulas e que essa mudança precisa ser feita junto com todos os interessados. Sugerimos mudar o esquema de escolha do chefe do posto, certas tarefas triviais que alguns não gostam de fazer etc.

Daí alguns dizem que não temos experiência em posto de saúde ou que somos muito jovens ou que queremos anarquia.

E voltam ao problema da sujeira do posto, afinal de contas havia um vômito logo na porta da entrada.

Então a servente começa a contar que ela sabe de uma pessoa do posto, mulher, que faz xixi no chão, entre a parede e a privada, só para ela limpar. E conta mil vezes esse caso, com milhões de detalhes e diz que não é cachorra para limpar xixi de mulher velha. O grupo embarca no delírio e começam a discutir se era xixi ou se era água, se era mulher ou homem que faria Isso.

Nessa fofoca se dispersam na mesquinhez da doença e a chefe proclama o fim da reunião.

A psicóloga do posto, durante a reunião, não abriu a boca, a não ser para reclamar do café que a servente fez e foi embora antes que a reunião acabasse se justificando com a chefe. Esta psicóloga chegou ao posto nas asas da política e não era bem vista pois as pessoas do posto e a clientela desejavam que o antigo estagiário de Psicologia ocupasse este lugar de Psicólogo.

Não pudemos conhecer o seu trabalho, pois ela deixou bem claro que não tinha nada a ver conosco e nos mandou procurar o Centro Metropolitano para sabermos sobre o trabalho de Psicologia no Posto. E depois que soube que íamos utilizar a sala de psicologia (a única do posto que bate sol), alguns dias

138

à tarde, resolveu trabalhar de manhã, dizem as más línguas de, 11:30 às 12:00.

Mas nada disso é explicito; só se escutam rumores e antipatias sobre a psicóloga e a Psicologia lá dentro.

Dias após essa caótica reunião, pego alguns fofocando sobre nossa atuação na reunião e eles se sentem incomodados, pois insistem em afirmar que o ambiente do posto é saudável e amigável. Outros funcionários do posto chegavam a nós como aliados, conversando sobre seus problemas lá dentro e idéias de mudança. Já outros, preferiam fingir que nem nos conheciam.

Outro fato interessante é que após essa reunião, a tal servente foi mandada embora do posto e colocada à disposição do Centro Metropolitano, por decisão da chefe.

Inesperadamente, recebemos uma visita das supervisoras do estágio do Centro Metropolitano e da chefe do posto de saúde. Disseram ser uma visita de praxe e que elas iriam visitar todos os postos e começaram por acaso no Posto de Saúde Tia Amância. Queriam que nós prestássemos conta do nosso trabalho, tim-tim por tim-tim. Convidaram para a reunião, a estagiária de Serviço Social e queriam saber por que não trabalhávamos juntas.

Nos falaram que nosso trabalho era isolado e precisávamos de nos integrar com o resto do pessoal do posto.

E a nosso ver, elas tinham total desconhecimento do nosso trabalho, das nossas idéias e de nossos desejos.

A reunião nos pegou de surpresa, mas já sabíamos, por outras vias, que a chefe do posto já havia ido ao Metropolitano reclamar vagamente de nós, como por exemplo, falar que usávamos mini saia e roupas extravagantes.

Mas isto tudo não foi falado durante a reunião, até que tivemos que dizer que já sabíamos dessas reclamações.

Começaram a negar que a reunião fosse por isto e a falar que não havíamos entendido bem o que era e logo a psicóloga do Metropolitano quis ir embora. E quando sugerimos um outro encontro onde pudéssemos elucidar os fatos, disseram que estavam com a agenda cheia e que só era possível daí a uns três meses.

A chefe da Posto se mostrou interessada em o que um analista institucional pode fazer e reconheceu a esclerose do Posto e inclusive \ se dispôs a marcar, ela mesma, uma outra reunião geral, onde fosse possível retomar as coisas.

Esta reunião foi marcada e, por azar ou coincidência, caiu no meio de uma greve de funcionários e não foram tomadas as providências para uma próxima reunião.

139

Pensávamos, então, que esta novela toda era analisável em si e que podíamos continuar a trabalhar.

Foi então, no ato de renovação do contrato de estágio, que soubemos que havíamos sido mandadas embora. A enfermeira chefe do Posto reclamou de nossa atuação e falou que não nos queria mais lá. Mas aceitava outros estagiários de Psicologia, mais dóceis. Achamos o caso inédito: estagiários que geralmente passam despercebidos, causando tanto desconforto.

Essa questão da nossa despedida ficou suspensa, diante de nossa indignação e nos prometeram então uma reunião com representantes da Universidade, do Posto e do Centro metropolitano.

Fomos, então, procurar o Centro Metropolitano e a Universidade. A psicóloga do Centro Metropolitano veio com panos quentes e nos disse com argumentos teóricos sobre a vida suicida de um analista institucional, nos falou das doenças crônicas das instituições e da sua própria insatisfação no seu trabalho e tentou nos oferecer a chance de trabalhar num outro posto de saúde que não o Tia Amância e com isso demonstrou sua cegueira.

O representante da Universidade no Centro Metropolitano confessou que sentia antipatia por nós: falou que éramos jovens e imaturas e que ele no seu íntimo desejava que a gente nem tivesse aparecido naquela reunião, pois éramos estagiárias que davam dor de cabeça. Falou que o nosso "caso verdade" poderia ser reestudado e que só voltaria a pensar no assunto quando entregássemos para ele um relatório falando tudo sobre nosso trabalho.

Ficou claro que se este caso fosse muito esmiuçado, iríamos nos deparar com sérios problemas institucionais, pois quantas instituições não estão envolvidas neste caso: Centro Metropolitano, UFMG, Posto de Saúde, Brasil, Terceiro Mundo, FMI...

E todos nos deixaram explícito que mudar é impossível e que o jeito é conviver com o morto apodrecido.

E agora, pós-tudo, fico mudo.

Referências Bibliográficas

ESCOBAR, C.H. O Dossier. Rio de Janeiro: Taurus, 1984. GUATTARI, F. Revolução Molecular. São Paulo: Brasiliense, 1985.

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download